Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

domingo, 31 de março de 2013

RHODE ISLAND, LIÇÕES PARA SANTA MARIA

ZERO HORA 31 de março de 2013 | N° 17388

RHODE ISLAND, 10 ANOS DEPOIS

CARLOS GUILHERME FERREIRA | WEST WARWICK (EUA)

Separados por 8 mil quilômetros, Rio Grande do Sul e Rhode Island enfrentaram, cada um a seu tempo, um trágico incêndio. Aos gaúchos, porém, existe a possibilidade de aprender com os erros e acertos dos americanos na condução das investigações e, mais tarde, na atribuição de responsabilidades por perdas irreparáveis. É do que trata a reportagem a seguir.

Uma triste prévia da tragédia de Santa Maria aconteceu 10 anos atrás, em uma fria noite de inverno no Estado de Rhode Island, nordeste americano.

Eram 23h7min de 20 de fevereiro de 2003 quando Daniel Biechele, integrante da banda de rock Great White, acendeu um sinalizador no palco da The Station, casa noturna montada em um prédio de madeira construído na década de 1940. Em questão de segundos, a espuma negra colada nas paredes para fins de isolamento acústico foi tomada pelo fogo, provocando fumaça e instaurando pânico entre os pelos menos 462 frequentadores.

Em 180 segundos, o prédio estava consumido pelas chamas. Após seis minutos, saía o último sobrevivente. Dez anos depois, em meio a sisudos prédios de tijolinho e ao laranja das paisagens rurais, Rhode Island ainda chora os cem mortos e mais de 200 feridos.

À semelhança do que apontam as investigações do incêndio na boate Kiss, o caso The Station originou-se de uma mistura de negligência e legislação permissiva. Localizada na pequena West Warwick, na Região Metropolitana de Providence, capital de Rhode Island, a boate passou por duas vistorias dos bombeiros meses antes da tragédia. A espuma tóxica – semelhante à usada na Kiss – acabou ignorada duas vezes pelo inspetor Denis Larocque. Ele notou nove pequenas irregularidades e constatou as correções – “All OK”, escreveu em laudo.

Sobre a espuma, nenhuma linha. Assim como o nome Larocque entre os indiciados. Só Biechele e os irmãos donos da The Station, Michael e Jeffrey Derderian, responderam pelas mortes. Graças a um acordo, Jeffrey escapou da prisão. Michael e Biechele passaram menos de três anos atrás das grades. Estão livres.

Às 329 pessoas, entre vítimas e familiares dos mortos, restou repartir – inclusive com os advogados – uma indenização de US$ 176 milhões, paga por 65 réus, sete anos após a tragédia. E o consolo de ver mudanças concretas na legislação estadual de prevenção de incêndios, transformada em referência mundial.

The Station, de fato, mudou para sempre Rhode Island.


O renascimento de Gina


As palavras suaves e o sorriso da americana Gina Russo, 45 anos, rosto redondo e cabelos escuros com mechas vermelhas, levam a uma pergunta inevitável.

Como é possível?

Porque Gina sobreviveu de forma bárbara ao fogo. Figurou entre as últimas vítimas a deixar a boate The Station, carregada e já sem consciência. Passou 11 semanas em coma e quatro meses e meio hospitalizada. Queimou 40% do corpo e prejudicou de maneira permanente os pulmões. De tão grave o quadro, acabou desacreditada pelos médicos. A ponto de um padre ir ao hospital, três dias após o incêndio, para a extrema-unção.

Mas Gina sobreviveu para contar a própria história, como fez em uma tarde de enregelar as mãos e congelar a tinta da caneta. Encontrou a reportagem de ZH no local onde ficava The Station, agora um gramado queimado pelo frio, do tamanho de uma quadra de futsal, circundado por dezenas de cruzes e objetos em homenagem às cem vítimas. Da antiga estrutura, só restaram a moldura de uma placa onde havia o logo da boate, à margem da pista da Cowesett Avenue, e um pouco de madeira apodrecida, usada nas cruzes.

Pois Gina, secretária em um hospital de Rhode Island, em nada se intimida com o cenário onde escapou da morte e perdeu o noivo, Alfred. Carrega no peito um broche vermelho, em formato de coração, com a inscrição “2003-2013”. Diz ser uma pessoa melhor.

– Nos primeiros cinco anos, foi muito difícil de entender o que aconteceu. É uma estrada bastante longa – constata.

Para superá-la, tomou o caminho da ajuda aos companheiros de tragédia. Gina escreveu um livro e preside uma fundação que pretende construir um memorial no terreno da boate, talvez nesta primavera americana, se o dinheiro assim o permitir. Também criou fortes laços com outros sobreviventes. Conforme o jornalista G. Wayne Miller, que cobriu a tragédia pelo The Providence Journal e acompanhou ZH em Rhode Island, ela virou amiga de Joe Kinan – outro exemplo de superação.

O fogo consumiu cabelos, orelhas, um dos olhos e a sensibilidade das mãos de Kinan. Confinou-o por 11 meses em um leito hospitar. Em 10 anos, submeteu-se a 123 cirurgias. Na última, em janeiro, foi a Boston receber uma nova mão de um adolescente chamado Troy Pappas, 18 anos, autodeclarado doador de órgãos. O procedimento correu bem: em 17 de fevereiro, três dias antes do 10º aniversário da tragédia, Kinan posou para a capa do The Providence Journal ao lado da noiva, Carrie Pratt. Ambos sorriam.

Gina também se casou, com Steve, há cinco anos. Ela cria os filhos Alex, 19 anos, e Nick, 16. E conta conhecer Paula e John Arpen, que marcaram o primeiro encontro na The Station, na noite do incêndio. Ela se feriu. Ele, não. Hoje estão juntos. Uma cerejeira plantada pelo casal agora ocupa o terreno.

Nem todos, porém, domaram traumas responsáveis por muitas noites mal-dormidas.

– A raiva pode tomar conta da sua vida. Muita gente ainda está revoltada – lembra Gina.

Sentimentos à parte, The Station virou local de peregrinação. Em duas horas por lá, ZH presenciou a chegada de seis pessoas – nenhum parente de vítima. Entre eles, estavam Gary Gebler e o sobrinho, Randy Jorgesen, ambos das redondezas. Randy, um músico com cabelos grisalhos presos em um rabo de cavalo, tocava com sua banda em outro estabelecimento na noite da tragédia. Ao voltar para casa, disse contabilizar mais de 30 ligações na secretária eletrônica.

– Um amigo teve o primo morto – afirma.

– Conheci gente que morreu. Duas ou três pessoas – esforça-se Gary, um homem franzino, de modos simples e sinceridade crua.

Ele comenta, sem piedade:

– Vocês (brasileiros) tiveram um incêndio também. Com a mesma espuma.


Só três acabaram presos

Se em Santa Maria já são 28 pessoas oficialmente responsabilizadas pela tragédia na boate Kiss, em Rhode Island ainda há revolta com o desfecho do caso The Station na esfera criminal. As cem mortes acabaram atribuídas a somente três pessoas: os irmãos Michael e Jeffrey Derderian, donos da casa noturna, e Daniel Biechele, integrante da banda Great White e responsável pelo início do incêndio. Nenhum deles passou mais de três anos na prisão.

As penas dos três foram definidas em 2006, três anos após o incêndio. Primeiro, Biechele. Ao aceitar acordo em troca da confissão de culpa por cem homicídios culposos, em maio, pegou quatro anos de prisão em regime fechado – dos quais cumpriria somente dois. Quatro meses depois, viria a definição do destino dos irmãos Derderian. Era setembro e a formação de um júri popular já se desenrolava quando surgiu um controverso acordo a portas fechadas.

O settlement impôs a Jeffrey três anos de liberdade condicional, mais 500 horas de serviços comunitários, e quatro anos em regime fechado a Michael. Nada de júri, para tristeza da sobrevivente Gina Russo:

– Foi perturbador saber que só três foram responsabilizados.

Corretor de seguros e consultor financeiro, Michel passou dois anos e nove meses na prisão. Hoje mora em Saunderstown, 31 quilômetros ao sul de West Warwick, com a nova mulher, ex-funcionária da The Station. Antes da tragédia, ganhava US$ 95 mil por ano e tinha barco, avião Cessna, Mercedes-Benz, BMW e uma casa de meio milhão de dólares. Ex-repórter de um canal local de TV, Jeffrey vive com a mesma mulher, na mesma casa. Abandonou o jornalismo e aceitou emprego em uma empresa de amigos.

Biechele está na Flórida, onde tenta recomeçar a vida. Nunca mais se envolveu com bandas de rock.

Menor valor pago ficou em US$ 16 mil

Exatos 2.702 dias se passaram entre o incêndio em Rhode Island e o início do pagamento das indenizações às vítimas e familiares dos mortos. Após sete anos de batalha judicial, chegou-se à soma de US$ 176.193.718, bancada por 65 réus e dividida entre 329 pessoas. Por meio de um intrincado sistema de cálculo (leia ao lado), cada envolvido na tragédia recebeu determinada quantia – a maior ficou em US$ 12,3 milhões, reduzida a US$ 7,7 milhões líquidos após dedução de custas de processo e honorários de advogados. Os representantes, aliás, dividiram US$ 58 milhões, ou 33,3% das indenizações.

O menor valor pago alcançou US$ 16,6 mil líquidos (pouco mais de R$ 33 mil) e contemplou quem escapou ileso da casa noturna. Estado e prefeitura de West Warwick arcaram com US$ 10 milhões, cada – o maior valor, US$ 30 milhões, coube à uma emissora local de TV. A Justiça decidiu que o trabalho de um repórter cinematográfico no momento da tragédia prejudicou a saída dos frequentadores.












Killer Show: The Station Nightclub Fire, America’s Deadliest Rock Concert, escrito por John Barylick, detalha a tragédia que marcou o show do Great White em West Warwick, Rhode Island. O evento, ocorrido em 20 de fevereiro de 2003, teve fim abrupto após um incêndio consumir o local. 100 pessoas morreram, entre elas o guitarrista da banda, Ty Longley. Outros 240 se feriram.

AS CULPAS E OS CULPADOS

ZERO HORA 31 de março de 2013 | N° 17388 ARTIGOS

Flávio Tavares*



A tragédia de Santa Maria evolui, agora, para um patamar perigoso, que pode, até, beirar a indecência. Num trabalho minucioso e coerente, o inquérito policial indiciou ou responsabilizou 28 pessoas, mas nenhuma delas admite qualquer vinculação, ingerência ou participação nos fatos que levaram ao horror da madrugada de 27 de janeiro. Todos permanecem atrevidamente altivos, sem esboçar arrependimento por terem sido negligentes, ineptos e descuidados. Ou por conivência com a corrupção.

Começando nos donos da boate Kiss e terminando no prefeito, cada qual parece ver nos 241 cadáveres apenas um número ao acaso, como os que apostamos na loteria ou na Mega Sena. Para eles, nada significam as detalhadas 13 mil páginas que reconstruíram os labirintos da tragédia, como se os testemunhos, filmes e documentos não comprovassem que a desídia plantou o crime. O prefeito Cezar Schirmer eximiu-se de toda responsabilidade com uma expressão infeliz que soa, até, como escondida culpa. Chamou a conclusão do inquérito de “aberração jurídica”, como se aberrante não fosse a negligência municipal ao licenciar a boate. Ou a pilha de corpos inertes!

Enquanto os implicados continuarem a atribuir a tragédia à “fatalidade”, a obscenidade da mentira triunfará. Até se, no futuro, os responsáveis forem condenados, faltará o essencial. O elo de confiança estará quebrado e é terrível viver sem confiar na autoridade ou em quem nos oferece um produto ou um divertimento. Ou em quem nos deleita com música e nos queima com fogo.

A partir do minucioso inquérito policial, como atuará o Ministério Público? Talvez o processo desemboque no Tribunal de Justiça, pois o prefeito de Santa Maria usufrui de “foro privilegiado”, essa duvidosa regalia distante do preceito de que “todos são iguais perante a lei”. Então, num paradoxo, Santa Maria não poderá julgar seu prefeito. A tarefa recairá num tribunal que pouco o conhece, mesmo legalmente apto.

O comandante regional dos bombeiros e seus subordinados também terão “foro especial”: a Corte da Brigada Militar, tribunal corporativo, pouco afeito a lidar com crimes tão amplos como os de agora.

Com o mesmo atrevimento com que os responsáveis se dizem “inocentes”, indago se a Corte Militar ousaria aplicar a teoria do “domínio do fato” e chegar às chefias da Brigada? Ou, mais alto ainda, ao próprio governador, que – mesmo sem qualquer participação – nomeou e manteve chefes que, por sua vez, designaram negligentes ou foram apáticos com a corrupção?

No crime de Santa Maria, as culpas são extensas e muitos os culpados. Ninguém quis matar, mas uma soma de atitudes acabou construindo a matança coletiva.

Os vizinhos da rua protestaram pelo ruído da música e o Ministério Público firmou um Termo de Ajustamento de Conduta com a boate para usar material acústico. E, sob fogo, a tal espuma acústica (barata e inadequada) expeliu cianeto e morte. Nos donos da boate, a obsessão pelo lucro fácil. Na Gurizada Fandangueira, o perigo da ingenuidade. Na prefeitura, nos bombeiros e nos inspetores do Crea, o desleixo. E, talvez em contraponto, a propina.

A culpa extensa recai em muitos, mas não para confundir, e sim para punir a todos com rigor. Não cabe apenas chorar pelos que jamais retornarão, mas punir todos os responsáveis de forma exemplar. Só assim, o horror não se repetirá como macabra rotina no futuro.

P.S. – O filme documentário O Dia que Durou 21 Anos, lançado agora em sete capitais (aqui, no Espaço Itaú do Shopping Bourbon), desvenda os segredos da participação dos EUA no golpe de 31 de março de 1964. O diretor Camilo Tavares é meu filho e eu realizei as entrevistas com americanos e militares brasileiros.

*JORNALISTA E ESCRITOR

sexta-feira, 29 de março de 2013

O FOGO NO TAIM

ZERO HORA 29 de março de 2013 | N° 17386 ARTIGOS

Marcelo Dutra da Silva*


O incêndio que ocorre na Estação Ecológica do Taim, apesar das proporções, para a paisagem representa apenas uma grande mancha de perturbação, formada a partir de um evento natural (raio).

É claro que espécies estão sendo atingidas pelo fogo. Mas, para o sistema como um todo, esse não chega a ser um dano de grandes consequências. As áreas úmidas, de maneira geral, apresentam grande resiliência, ou seja, capacidade muito elevada de se autorregenerar.

No caso de incêndios, essa reorganização do sistema é rapidamente ativada e em pou-co tempo vamos ver a área atingida verde e recolonizada.

Outro aspecto importante, que precisa ser considerado, é que para alguns sistemas o fogo é benéfico, por mais estranho que pareça.

Um sistema protegido como o do Taim acumula muita matéria que, submetida ao tempo seco, torna-se de fácil combustão. E, para pegar fogo, basta uma faísca, uma ponta de cigarro, um raio. Por último, esse não é o primeiro incêndio no Taim e talvez isso se torne mais frequente.

É preciso dizer que boa parte do sistema alagado dessa região, ou que permanece encharcado por um longo período, se deve à barreira imposta pela BR-471, que mudou a dinâmica hídrica regional.

Em outras palavras, temos um sistema muito bonito, de alta produtividade, que abriga uma enorme biodiversidade, uma área protegida, talvez uma das unidades de conservação mais importantes do país. Mas que não seria assim se não fosse o efeito barreira produzido pela BR-471.

Então, por conta dessa grande intervenção espacial, muita coisa mudou, não apenas o volume de água, mas com ele a extensão da área sujeita a inundação, o aumento da vegetação de banhado e fauna característica, bem como o aumento na produção e acúmulo de matéria seca. Que é justamente a que fica sujeita ao incêndio, toda vez que o volume de água diminui e o tempo fica seco.

Assim, por qualquer razão, pode pegar fogo e acaba funcionando como uma válvula de escape. Ao mesmo tempo, é fácil perceber que nem tudo é queimado, observe-se que o fogo passa “lambendo” a superfície e vai continuar até onde tiver matéria seca combustível.

De outra parte, talvez devamos aprender a manejar o risco de incêndios em unidades de conservação. Devemos atentar para o acúmulo anormal de matéria seca, particularmente em sistemas gerados como o do Taim, que possivelmente não funcionava assim, não produzia tanta matéria assim, até que a estrada chegou e mudou tudo. Às vezes, aprendemos na tragédia.

*Ecólogo, doutor, professor de Ecologia de Paisagem do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande


FALTA ESTRUTURA PARA FISCALIZAR SEGURANÇA


ZERO HORA 29 de março de 2013 | N° 17386

ALERTA NAS CIDADES

Em pesquisa, 60% dos prefeitos dizem não ter como examinar locais de lazer



Dois meses depois de a tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, ter tirado a vida de mais de duas centenas de jovens, a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) divulgou ontem pesquisa que aponta um dado alarmante: 60,3% dos prefeitos declararam não contar com estrutura suficiente para fiscalizar itens de segurança em locais públicos de lazer, como boates.

Outros 17,2% dos 216 mandatários ouvidos no levantamento afirmaram desconhecer a situação da cidade no quesito da prevenção e fiscalização do cumprimento da legislação anti-incêndio. O presidente da Famurs, Ary Vanazzi, definiu a situação como “grave” e argumentou que é necessário investir na qualificação de técnicos que possam assessorar as prefeituras no tema da segurança em ambientes fechados.

– Hoje, os municípios, em maioria, não contam com equipes técnicas ou condições de fazer fiscalização. Não há conhecimento profundo da legislação, que é muito genérica e cria conflitos de competências entre Estado e municípios – avaliou Vanazzi, que classificou como “urgente” a necessidade de atualizar a lei de prevenção de incêndio.

Elaborado e consolidado pelo Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais (InPro), coordenado pelo cientista político Benedito Tadeu César, o levantamento se baseou em um questionário de 67 perguntas aplicado aos prefeitos entre 6 e 8 de fevereiro.

Confrontados com um cenário econômico e político pessimista, apenas 4,4% dos mandatários não pretendem realizar algum tipo de alteração na “matriz tributária” para combater as dificuldades financeiras. Na prática, isso significa elevar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) em pequenas cidades – onde as taxas são consideradas modestas – e cobrar Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) de setores que hoje estão livres do imposto, como os cartórios.

Os dados apurados também confirmam a dependência dos municípios em relação ao governo federal. Dos entrevistados, 37,6% pretendem resolver as carências das cidades com recursos próprios e da União. Enquanto isso, apenas 6,9% esperam somar verbas do Estado ao caixa municipal para consolidar a gestão.

Dentre as demandas mais citadas pelos gestores, estão a saúde, dívidas herdadas do antecessor, rodovias e acessos asfálticos.

CARLOS ROLLSING

O levantamento - 216 prefeitos responderam a um questionário com 67 perguntas. Veja os principais resultados:
- Dentre os principais problemas herdados da gestão anterior, o item dívidas a pagar é o mais citado.
- A saúde é apontada como o principal problema dos municípios. Depois, surgem itens como habitação, urbanismo, ambiente e saneamento.
- 20,6% responderam que não contam com técnicos capazes de elaborar projetos de políticas públicas.
- 20,4% dos prefeitos não dispõem de técnicos que elaborem projetos para a captação de recursos da União.
- Na avaliação de políticas públicas, 51,3% disseram que os projetos e programas do Estado para os municípios não funcionam na prática.
- 48,2% dos prefeitos deram conceito bom e ótimo ao governo do Estado.
- Na avaliação de políticas públicas, 41,3% disseram que os projetos e programas da União para os municípios não funcionam na prática.
- 60,8% dos prefeitos deram conceito bom e ótimo ao governo federal.
- Entre as demandas para o Estado e a União desponta o investimento em rodovias e vias de acesso.

quarta-feira, 27 de março de 2013

O EXEMPLO DE SANTA MARIA

O Estado de S.Paulo 27 de março de 2013 | 2h 13


OPINIÃO


O que se esperava das autoridades policiais depois da tragédia do incêndio na boate Kiss em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, dia 27 de janeiro - que deixou até agora (ainda há feridos internados em hospitais) um saldo de 241 mortos -, era uma investigação rigorosa e abrangente do caso. O trabalho da polícia civil gaúcha, que acaba de apresentar o resultado do inquérito - 52 volumes com 13 mil páginas e 810 depoimentos -, correspondeu à expectativa. O número e a qualificação das pessoas indicadas como responsáveis pela tragédia - em vários graus - mostram que a polícia não se dobrou a influências e conveniências de qualquer tipo.

Foram responsabilizadas direta ou indiretamente pelo incêndio 28 pessoas, das quais 9 indiciadas por homicídio doloso, por terem assumido o risco de matar. Entre eles, os dois donos da boate, a mãe e a irmã de um deles, que também aparecem como proprietárias do estabelecimento, o cunhado de um deles, que era gerente, e dois músicos da banda que tocava naquela noite. Estes dois e os empresários estão presos. Completam esse grupo dois bombeiros responsáveis pelos alvarás de licenciamento da boate. Afirma a polícia que eles permitiram o funcionamento da boate mesmo diante de irregularidades comprovadas, como a existência de apenas uma saída - logo, sem porta de emergência -, número insuficiente de extintores e a colocação de obstáculos que dificultaram a fuga.

A surpresa da população de Santa Maria - e até mesmo das famílias das vítimas -, que esperavam o indiciamento apenas dos dois donos da boate e dos integrantes da banda, começou com os dois bombeiros e culminou com a presença entre os responsáveis do prefeito Cezar Schirmer, acusado de homicídio culposo e improbidade administrativa, porque - afirma a polícia - houve falhas da prefeitura na emissão de alvarás e na fiscalização da boate. Também por homicídio culposo foram responsabilizados dois secretários e dois funcionários municipais. Como o prefeito tem direito a foro privilegiado, cópia do inquérito foi enviada ao Tribunal de Justiça.

A reação da população de Santa Maria é a mesma de todos os brasileiros, que ficaram chocados com essa tragédia. Em casos semelhantes, a regra tem sido o inquérito restringir ao máximo o número de indiciados, em geral aos donos do estabelecimento afetado. Os outros - como os bombeiros e as autoridades municipais, que verificam as condições de segurança do local e concedem os alvarás de funcionamento - costumam ficar de fora, embora as suas responsabilidades sejam evidentes. Seria muito bom que essa mudança de comportamento se tornasse a regra para as autoridades policiais de todo o País daqui para a frente.

Segundo o delegado Marcelo Arigony, que fez a apresentação do inquérito, "houve uma conduta no mínimo temerária, muito ruim, dos gestores do local", referindo-se a instalações inadequadas, a reformas feitas sem a necessária assistência técnica e a "uma série de irregularidades quanto aos alvarás". Para ele, "foi uma temeridade muito grande a casa funcionar daquele jeito". A tragédia, que tirou a vida de tantos jovens, é a triste comprovação de que o delegado tem inteira razão no que diz.

O governador Tarso Genro fez o que devia, elogiando o trabalho da polícia e afastando o coronel Moisés Fuchs, comandante do Corpo de Bombeiros de Santa Maria. Quanto ao prefeito Cezar Schirmer, ao dizer que "estamos diante de um processo de natureza política", reage como em geral costumam fazer as autoridades quando se veem em dificuldades.

A palavra está agora com o Ministério Público, que dirá se aceita ou não as conclusões do inquérito policial. Em seguida, o caso irá para a Justiça. É claro que cada uma dessas instituições tem seus critérios técnicos e padrões de conduta para determinar a responsabilidade de cada um dos acusados pela polícia, que é preciso respeitar e acatar. Isso não impede a população - a tragédia de Santa Maria diz respeito a todo o País - de esperar uma decisão rigorosa que previna sua repetição.

terça-feira, 26 de março de 2013

OFICIAL DOS BOMBEIROS EMITE CARTA ABERTA À COMUNIDADE SOBRE KISS


ZERO HORA 26/03/2013 | 12h15

Tragédia em santa Maria. Bombeiro fala sobre o seu indiciamento no inquérito policial


Na manhã desta terça-feira, o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros (4º CRB) divulgou uma carta-aberta à comunidade sobre a atuação dos bombeiros na caso da boate Kiss.

O major foi indiciado no inquérito da Polícia Civil, por crime processual, porque teria incluido documentos na pasta referente ao alvará da Kiss em meio ao inquérito. Depois de ter preferido não se manifestar ao Diário sobre o indiciamento, ele emitiu o documento, onde diz que busca "esclarecer a incompetente imputação de crime" a que foi "vítima amplamente divulgada na mídia escrita e falada".

Em outro trecho (confira a íntegra abaixo), o major diz: "Minha família e vida pessoal foram feridas de morte sem qualquer possibilidade de reparo, nem mesmo qualquer indenização ou retratação pelos responsáveis poderá desconstituir a exposição que sofri.".


Carta:

MAJOR GERSON DA ROSA PEREIRA - CHEFE DO ESTADO MAIOR DO 4º

CARTA ABERTA A POPULAÇÃO


Muita exposição e ridicularização sofreram os Bombeiros Militares do 4º Comando Regional de Bombeiros, mas que serão devidamente esclarecidas no Inquérito Policial Militar em curso e a futura apuração e julgamento pela Justiça Militar Estadual.

Contudo, num primeiro momento, sem técnica processual e jurídica, busco esclarecer a incompetente imputação de crime a que sou vítima amplamente divulgada na mídia escrita e falada.

Minha família e vida pessoal foram feridas de morte sem qualquer possibilidade de reparo, nem mesmo qualquer indenização ou retratação pelos responsáveis poderá desconstituir a exposição que sofri.

Minha opinião é de que todo o comportamento policial até a divulgação do Relatório na UFSM seria desnecessário, em respeito às vítimas, mas principalmente, para preservar a imagem e individualidade das pessoas, desde o Prefeito Municipal até o Bombeiro Militar (dito "indiciado") que seria mais prudente ser denominado " indicado" pois estamos num primeiro momento do processo, uma mera peça ilustrativa, que será processado pela Justiça Militar, se for o caso.

Publicar um Relatório na integra, com nomes de pessoas e suas individualidades, além de depoimentos não autorizados na imprensa se assemelha as execuções de guerra e as degolas em praça pública do século medieval. Dentre estas pessoas, certamente, teremos pessoas inocentes, ao menos aos olhos da Justiça dos homens. Estamos diante de uma nova modalidade de execução sumária.

Quanto a mim, a exposição no auditório do CCR da UFSM ( e não existe lugar mais doloroso e emblemático) feita pelo Delegado Arigony abriu os trabalhos desta nova e moderna execução sumária citando meu nome e de um Sargento que tem sofrido muito, como eu, por este ato.

Meu crime: Artigo 347, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro que assim diz:

Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.

E no decorrer do relatório, em sua pg. 177, na margem superior, "...................delito não previsto no Código Penal Militar.

Como sou militar e não há previsão desta conduta típica no Código Penal Militar, não haveria nem como "enxovalhar" o nome que defendo e defendi durante toda minha vida pessoal e profissional, "arrumando" às pressas, alguma coisa à me imputar.

Talvez não saibam esta conduta praticada por militar é reprovável e contrária a educação familiar que tive, um ato vergonhoso, ridículo e que na educação de meus filhos sempre priorizei a honestidade.

Embora não concorde sobre a exposição deste relatório e de meu nome, minhas declarações estão lá, nunca deixei de contribuir , nunca ocultei ou inseri qualquer documento que comprometesse a investigação.

Seria muita insensibilidade de minha parte adotar a postura criminosa "vendida" pela Polícia Civil, em memória às crianças que vi durante toda aquela operação e que choro aquelas vidas perdidas, pois muitos amigos lá ficaram e minhas próprias filhas lá poderiam estar.

Somos os maiores interessados em trazer à lume a verdade, mas não é o tempo recorde de um Inquérito Policial que vai fazer justiça, pelo contrário, muitas injustiças já ocorreram: eu sou um exemplo.

Mais ainda, o Código Penal Militar é tremendamente rigoroso em relação ao Código Penal Comum, basta comparar as penas de crimes idênticos praticados por civil ou militar para que se perceba as diferenças.

Alegar que é corporativa, enganem-se, é tremendamente rigorosa com os desvios de conduta de seus militares. Insistir em dizer que é corporativa, então terminemos com os julgamentos em foros privilegiados de políticos, juízes, promotores, etc.etc, etc.....

Delegado Arigony:

Tenho me dado ao luxo de chorar desde o dia 29 de janeiro daquele fatídico dia, chorar na madrugada, em silêncio, ao acordar com pesadelos. Assim como todos os Bombeiros Militares por não terem podido salvar todas aquelas vidas, impotentes, enfraquecidos, tristes ao longo deste trinta e poucos dias diariamente sendo massacrados pela opinião pública induzida pela mídia e por sua investigação;

Como o senhor, chorei por todas as pessoas que conhecia, pelos 241 inocentes e sua família com suas casas vazias e pelas calúnias e difamações que sofremos como Instituição e pessoas.

Todos os seus termos, me permito compartilhar.

Mas choro pelo espetáculo proporcionado por sua Instituição, do qual poderíamos ser poupados;

Choro pela desconsideração em relação aos militares que o senhor não tinha competência de indiciar e, que, na "maior boa vontade" prestaram depoimentos desnecessários à sua Instituição.

Choro, pois o senhor poderia, em sua fala dizer: "Deixo de indiciar os Policiais Militares por não ser de nossa competência constitucional investigar crimes militares" e quanto a mim poupar meu nome e dignidade por não ter praticado qualquer crime e se praticado, não seria da sua competência o indiciamento.

Choro, pois não esperava do senhor e de sua instituição meu indiciamento por crime comum (crime impossível), expondo minha vida, minha família, minha carreira. Caso ache que fez justiça, creio que sim ou não, mas à custa de muitos inocentes vivos e mortos.

Não acredito que possam reparar este erro, pois jogada ao vento minha dignidade impossível o resgate, mas lhe reputo toda minha indignação e à sua instituição pela maldade e falta de escrúpulos. O senhor hoje pode ser herói, mas não esqueça de que nosso heroísmo e bravura remonta 175 anos de história no cenário gaúcho, nacional e internacional e não é a toa, somos a única instituição de Policia Militar com nome próprio: "Brigada Militar" e pelo que nossos telefones são conhecidos: 193 e 190 este é o último baluarte de proteção da sociedade gaúcha.

GERSON DA ROSA PEREIRA

Major da Brigada Militar e Chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional de Bombeiros

DEBATE MENOR



ZERO HORA 26 de março de 2013 | N° 17383

EDITORIAIS


Criou-se uma situação aberta aos mais variados entendimentos a decisão da Polícia Civil de sugerir também a responsabilização do prefeito de Santa Maria pela tragédia na boate Kiss. A partir desta citação, até mesmo como estratégia de defesa, setores políticos ligados ao governante passaram a questionar a suposta omissão de gestores estaduais, como se o dramático episódio devesse ser reduzido a uma disputa partidária. Ora, este debate é inaceitável, pois desrespeita as vítimas, seus familiares e não condiz com as expectativas da sociedade pela plena apuração dos fatos e pela correção das falhas que provocaram a morte de tantas pessoas.

Em primeiro lugar, cabe reconhecer o trabalho objetivo e bem fundamentado da Polícia Civil, que resultou em um exaustivo inquérito com mais de 13 mil páginas e na apresentação de provas testemunhais e técnicas convincentes. Ao propor, no relatório final, que o senhor Cezar Schirmer seja processado por homicídio culposo e improbidade administrativa, a polícia apenas provoca o Ministério Público e a Justiça, como é da praxe jurídica, a se manifestar sobre a existência de nexo causal entre as atribuições do administrador e o fato ocorrido. Caberá agora a essas duas instâncias, nos prazos estabelecidos, corroborar ou corrigir as investigações policiais, para que sejam bem conduzidas essas e outras questões.

O que a população deseja é que o caso seja plenamente esclarecido. Para que tal desejo se cumpra, nesta etapa decisiva para o MP e para a Justiça, as instituições precisam trabalhar sem os ruídos de interferências políticas. Nesse sentido, a cadeia de responsabilidades deve se estender até onde seja necessário, para identificar as negligências e as omissões criminosas que provocaram o infortúnio de tantas famílias, para que o julgamento dos responsáveis seja justo e no tempo adequado e também para que tragédias como essa sejam evitadas.

Investigações policiais que incluem ocupantes de cargos públicos entre seus personagens estão, naturalmente, propensas a questionamentos políticos. Não interessa à sociedade que esse tipo de abordagem se propague para além dos ambientes que reúnem, de um lado, setores ligados ao prefeito e, de outro, defensores do governador. O que as famílias das vítimas e a comunidade de Santa Maria, em especial, e todos os gaúchos e brasileiros esperam é que se faça justiça, sem a discriminação de even- tuais envolvidos e sem que qualquer gesto, antes dos veredictos, represente julgamentos públicos sumários. Ministério Público e Judiciário estão diante do processo sobre a maior tragédia do Estado e certamente farão tudo para que as melhores expectativas não sejam frustradas.

O julgamento da tragédia da boate Kiss deve ficar alheio a ruídos políticos, para que a lei alcance todas as esferas envolvidas.

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Este inquérito teve a propriedade de mostrar o quanto custa o esforço da polícia civil para produzir uma carga burocrática que é o inquérito policial, uma peça considerada meramente acessória na justiça. Todos os depoimentos podem ser anulados, mas o relatório e as perícias serão peças essenciais ao processo. Na justiça, haverá um retrabalho com a retomada de depoimentos até o julgamento do fato, cuja sentença não será definitiva, pois recursos serão providenciados tanto pelas defesas como pela promotoria, podendo cair o transitado em julgado lá nas cortes supremas. Se tivéssemos no Brasil uma descentralização do transitado em julgado e um sistema de justiça criminal integrado, ágil e desburocratizado, com investigação policial se baseando no relatório policial, perícias e depoimentos em vídeo, a justiça assumiria seu papel tomando depoimentos e dando andamento bem mais rápido e oportuno, com recursos dentro do âmbito federativo.

UM CLAMOR POR TRIBUNAL DO JÚRI

ZERO HORA 26 de março de 2013 | N° 17383

SANTA MARIA, 27/01/2013

HUMBERTO TREZZI

Está nas calçadas. Está na Boca Maldita, tradicional ponto em que frequentadores de cafés comentam as últimas fofocas da cidade. Está nos bares, nas universidades e quartéis, verdadeiros motores da sociedade santa-mariense. A busca por Justiça é o assunto dominante. Só se fala na Kiss e na possibilidade de que 16 sejam submetidos a julgamento.

É quase consenso, em Santa Maria, que o julgamento deve ser lá. Mesmo entre aqueles que não podem, por dever de ofício, falar a respeito... mas sempre deixam escapar a opinião a parentes e amigos. Os 241 mortos e 623 feridos no maior incêndio da história gaúcha são motivos suficientes para que os 16 indiciados sejam submetidos a um júri popular, no qual pessoas escolhidas na comunidade santa-mariense (os jurados) darão o veredito.

Esse posicionamento, dominante entre membros do Ministério Público e do Judiciário de Santa Maria, esbarra em uma controvérsia. É que os autores do inquérito policial recomendam que o prefeito Cezar Schirmer (PMDB) seja processado por homicídio culposo. Isso pode carregar todo o caso – não apenas a questão de Schirmer – para Porto Alegre.

Opinião nesse sentido tem, por exemplo, o desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, presidente da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (que julga prefeitos). Ele acredita que o fato de haver um prefeito citado (que tem foro privilegiado e, por isso, deve ser processado no TJ) faz com que todos os demais implicados também sejam processados na 4ª Câmara.

A verdade é que para a maioria dos crimes vale mesmo essa regra: se alguém tem prerrogativa de função, os demais crimes conexos e os demais agentes são julgados por um tribunal. Exemplo típico foi o do Mensalão, que acabou julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) porque vários ex-ministros eram réus.

Mas essa regra tem uma clara exceção, alerta o criminalista Aury Lopes Jr.: os crimes contra a vida. Mesmo que um dos réus tenha prerrogativa de função (o prefeito, no caso da Kiss) e os demais não, existe jurisprudência no STF de que deve haver cisão. Ou seja, o prefeito é julgado por desembargadores e os demais são julgados na sua própria cidade, num Tribunal do Júri. É que a competência do Tribunal do Júri é constitucional e a regra da conexão (que determina a reunião dos réus) não está na Constituição.

Trocando em miúdos: são escassas as chances de que os réus sejam julgados no TJ. Mais provável é que apenas Schirmer o seja, se for denunciado – algo que ainda não se sabe se ocorrerá.


Protesto contra o prefeito

Dezenas de pessoas concentraram-se na Praça Saldanha Marinho, em Santa Maria, para protestar contra o prefeito Cezar Schirmer. A Polícia Civil sugeriu ao Tribunal de Justiça do Estado que o chefe do Executivo fosse investigado porque, durante o inquérito policial, foram encontrados indícios de homicídio culposo (por negligência) pelo incêndio na boate Kiss.

Os manifestantes deslocaram-se para frente da Sociedade União dos Caixeiros Viajantes (SUCV), onde funciona o gabinete do prefeito, e, com palavras de ordem, pediram a saída de Schirmer. No começo da manifestação, ocorreu um princípio de tumulto e empurra-empurra, logo contido por soldados da Brigada Militar.

– Um prefeito que não tem poder sobre seus subordinados não pode seguir na administração pública – disse Carina Correa, mãe de uma das vítimas, que participou da mobilização.

Procurado pela reportagem, o prefeito Cezar Schirmer preferiu não comentar o episódio. Em nota, a assessoria da prefeitura definiu o protesto como “uma manifestação de natureza político-partidária ”. No texto, porém, a prefeitura ressaltou que “respeita democraticamente esta ou qualquer outra manifestação”.


ZERO HORA 26 de março de 2013 | N° 17383

SANTA MARIA, 27/01/2013

O magistrado de 2,8 mil processos


LETÍCIA COSTA

Apesar da fala calma e do semblante fechado aparentar, o juiz da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, Ulysses Fonseca Louzada, 55 anos, não é uma pessoa reclusa. Jogador de futebol amador, ele figura nas colunas sociais dos jornais da cidade. Agora, mais do que nunca, deve ter suas decisões perseguidas pelos olhos da imprensa. É ele que receberá a denúncia do Ministério Público (MP), onde estarão os acusados criminalmente pela morte de 241 pessoas no incêndio da boate Kiss. Há quase três décadas formado em Direito, Louzada é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Na aulas onde aborda os meandros do Processo Penal, terá de conter a curiosidade dos estudantes sobre o processo em que o mundo está de olho.

Com cerca de 1,4 mil júris realizados e com aproximadamente 2,8 mil processos para julgar, ele não teme a repercussão e considera este mais um dos tantos desafios que enfrenta na carreira. Desde que entrou na profissão, tem o objetivo de “tentar, de alguma forma, diminuir as dores do mundo”.

– As pessoas têm de esperar de mim tranquilidade para que haja efetividade no processo e que, no final, por meio de uma sentença, o Judiciário possa dar uma resposta, seja condenando ou absolvendo. O povo de Santa Maria quer uma resposta, preciso manter o equilíbrio – avalia.

É esta pressa por Justiça que magistrado precisa lidar a partir de agora. Louzada sabe que o caso é de extrema importância, mas diz que irá se dedicar igualmente como faz com os outros tantos processos que chegam à 1ª Vara Criminal de Santa Maria.

Ao receber, na tarde de sexta-feira, a reportagem de Zero Hora no Fórum de Santa Maria – onde estavam os 52 volumes e as 13 mil páginas do maior inquérito policial da história do Estado –, Louzada não arriscou um prazo para o julgamento e possíveis condenações. Alega que, após a denúncia do MP chegar para ele, ainda existem muitos recursos que podem ser solicitados pelas defesas. Sem ter perdido ninguém conhecido na tragédia, Louzada garante imparcialidade na decisão.




segunda-feira, 25 de março de 2013

SÓ O RUIDO INCOMODAVA

ZERO HORA 24 de março de 2013 | N° 17381

PÁGINA 10 | ROSANE DE OLIVEIRA


Concluído o inquérito sobre a tragédia que matou 241 jovens na boate Kiss, o Ministério Público tem, em instâncias diferentes, duas tarefas espinhosas pela frente. Primeiro, estudar as mais de 10 mil páginas da investigação para denunciar, ou não, os indiciados pela Polícia Civil. Segundo, dissecar os procedimentos dos promotores que firmaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os proprietários da Kiss para acabar com os ruídos que incomodavam a vizinhança. Foi a partir da assinatura desse TAC que os donos da Kiss instalaram a espuma que se incendiou na madrugada de 27 de janeiro, provocando a morte de 241 jovens por intoxicação.

O advogado Jader Marques, defensor de Kiko Spohr, um dos donos da boate, tem insistido desde o início em responsabilizar os bombeiros e os promotores pela tragédia. Os bombeiros, por falhas na concessão do alvará e por terem estimulado a entrada de civis na boate em chamas para tentar resgatar vítimas presas no seu interior. O MP, por ter exigido o isolamento acústico e, na vistoria, não ter detectado os outros problemas que tornavam a Kiss uma arapuca.

O MP defende a conduta adotada com o argumento de que não caberia aos promotores avaliar o tipo de material usado no revestimento acústico. Que, para efeito de cumprimento do TAC, a boate tinha de comprovar que fez as obras e um engenheiro habilitado atestar que estavam dentro das normas técnicas. Se o barulho persistisse, seria feita nova vistoria.

Eis uma das chaves para entender por que até janeiro tantas casas no Brasil inteiro funcionavam sem condições de segurança: o único objeto de denúncias era o barulho que incomodava os vizinhos. Ninguém procurava o Ministério Público para denunciar a superlotação ou a falta de saídas de emergência, de sinalização ou de exaustores. Do lado de fora, sim: os vizinhos da Kiss reclamavam por não conseguir dormir, como reclamam, rotineiramente, moradores das cercanias de casas noturnas em qualquer cidade do país.

Foi a reclamação de vizinhos que fez o Ministério Público Federal pressionar a prefeitura de Santa Maria para apertar a fiscalização na boate do DCE da Universidade Federal. Quando a prefeitura enfim fez a vistoria, descobriu tantas irregularidades, que não teve alternativa senão fechar a boate, sob protesto dos universitários.


ALIÁS

É provável que o Tribunal de Justiça livre o prefeito Cezar Schirmer de um processo criminal, mas dificilmente ele escapará de uma ação de improbidade administrativa.

CASO KISS: 241 HOMICÍDIOS QUALIFICADOS E 623 TENTATIVAS

24 de março de 2013 | N° 17381

SANTA MARIA, 27/01/2013

Indiciados podem pegar pena máxima, avalia criminalista




O indiciamento por 241 homicídios dolosos qualificados e 623 tentativas deste mesmo crime pode levar nove indiciados pela da tragédia de Santa Maria a pegar pena máxima: 30 anos de prisão. A avaliação é do criminalista Mário de Oliveira Filho, 36 anos de experiência na área e com participação em casos de repercussão, como os julgamentos de Suzane Von Richtofen e do casal Nardoni.

O raciocínio, explica, parte do princípio da aplicação de uma figura jurídica chamada crime continuado – quando o sujeito, em única ação, provoca várias vítimas. Em caso de condenação por homicídio doloso, o réu pega a pena mínima (12 anos), que é acrescida de dois terços à metade. Somaria-se a isso, ainda, uma decisão desfavorável nas acusações de tentativa de homicídio doloso.

– Pela expressão e consequência (do crime), se o réu for condenado, deve dar 30 anos – diz Oliveira.

A prisão, neste contexto, ocorre em regime fechado. Para haver direito ao pedido de progressão para o semiaberto, observa o criminalista, deve-se cumprir dois quintos da pena. E só o julgamento do requerimento de progressão levaria, pelo menos, um ano. Por isso, Oliveira prevê possibilidade de até 16 anos em regime fechado para quem receber pena máxima.

Ele não estima, porém, quanto tempo será necessário para os réus irem a julgamento, por júri popular. Depende do andamento na Justiça estadual: em São Paulo, arrisca, haveria desfecho em três anos.

Em relação ao prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, Oliveira contabiliza o fator político como componente importante para uma possível perda de mandato. Além de ser afetado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara de Vereadores, o prefeito poderá ser responsabilizado pelo Tribunal de Justiça do Estado – já que tem foro privilegiado. Se for condenado por homicídio culposo e por improbidade administrativa e a pena superar oito anos, Schirmer seria preso em regime fechado.

– O Tribunal de Justiça vai avaliar também se, com a condenação, haveria a pena do cargo. Acredito que sim – avalia Oliveira.

Para o criminalista, o enquadramento do prefeito por homicídio culposo é correto:

– Ele não teria intenção de matar ou assumir o risco. Ele foi negligente e imprudente.

Promotores já trabalham na denúncia

Chegaram ao entardecer de sexta-feira na sede do Ministério Público Estadual em Santa Maria as 13 mil páginas do inquérito policial sobre o incêndio na boate Kiss. E já no sábado pela manhã dois promotores de Justiça começaram a examinar o calhamaço, a maior peça já produzida pela Polícia Civil gaúcha.

Entre as 18h e as 20h de sexta, os promotores Joel de Oliveira Dutra e Maurício Trevisan leram com atenção o relatório de 188 páginas. No sábado, por volta das 6h, os dois despertaram, tomaram café e foram direto à sede do MP, retomar a leitura de todas as 13 mil páginas. A pressa tem motivação legal: quatro dos 16 indiciados pela Polícia Civil estão presos desde o dia posterior à tragédia. Quando existem presos, a denúncia deve ser oferecida em até cinco dias, mas os promotores já estudam uma possibilidade: denunciar os quatro presos por homicídio doloso qualificado (dois sócios da boate e dois músicos da banda Gurizada Fandangueira, que compraram os fogos deflagradores do início do incêndio). E deixar para um segundo momento a análise da possível denúncia contra os outros 12 indiciados.

Joel de Oliveira Dutra e Maurício Trevisan pretendiam passar o sábado e o domingo dentro do prédio do MP, analisando o inquérito. Na segunda-feira, começam a atuar também os promotores Ivanise Jann de Jesus e César Augusto Carlan.


A luta dos familiares

ANANDA DELEVATI | ESPECIAL

Força e vontade de justiça são os sentimentos que movem o pai de Jennifer, Adherbal Ferreira, e o pai de Érika, Léo Becker. O presidente e o vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia em Santa Maria (AVTSM) acompanharam emocionados a divulgação da conclusão do inquérito do incêndio da boate Kiss.

Eles consideram uma surpresa positiva o resultado do inquérito e o trabalho da polícia. Agora, os pais esperam a continuidade do processo na esfera judicial. Neste domingo, pais das vítimas se encontrarão para um almoço e para conversar sobre os próximos passos.

Um dos momentos mais emocionantes da divulgação do resultado do inquérito na sexta-feira, no Centro de Ciências Rurais da Universidade Federal de Santa Maria, foi a exibição de dois vídeos da noite do incêndio. Adherbal Ferreira se emociona e diz que nem pode pensar no sofrimento que a filha passou naquela noite. Ele conta que muitos pais ainda se sentem culpados por terem deixado os filhos sairem ou mesmo por terem levado à festa. Assim, acredita que a justiça e a punição correta podem trazer paz para esses pais e, principalmente, fazer com que o episódio jamais se repita em nenhum local do mundo. Confira ao lado a entrevista dos dois integrantes da associação.



“Nosso clamor é que a justiça seja feita” 

Adherbal Ferreira e Léo Becker - da associação dos familiares de vítimas da tragédia


Como vocês receberam esse inquérito?

Adherbal Ferreira – Foi uma surpresa para nós todos. A gente de certa forma está satisfeito. Agora, esperamos o Ministério Público. Semana que vem, faremos uma reunião com eles. Esperamos que eles realmente façam justiça, porque a justiça divina com certeza será feita. Nós não queremos nenhum tipo de vingança, só queremos que a justiça seja proporcional a cada um que cometeu os seus delitos, os seus erros.

Léo Becker – Nós confiávamos no trabalho da Polícia Civil. Foi exemplar, incansável. Assim como nós confiamos no Judiciário, que irá julgar esse processo. O mundo todo está olhando para Santa Maria, precisamos dar o exemplo. Que sirva de exemplo para a humanidade, doa a quem doer. A associação vai estar vigilante nesse sentido, para que os culpados sejam punidos.

Vocês ficaram surpresos com o indiciamento da mãe e da irmã de Kiko (Elissandro Callegaro Spohr, um dos sócios da boate) por homicídio doloso?

Ferreira – Foi uma surpresa, mas acho que nada mais justo. Perante a lei, a casa estava funcionando no nome delas e, portanto, têm de ser responsabilizadas. Cabe à Justiça agora tomar essa decisão.

E quanto à situação do prefeito e dos secretários?

Ferreira – Acho que eles vão ter de provar sua inocência, se a polícia os relacionou é porque algo tinha de errado.

Becker – O que nos deixou bastante tristes, em um primeiro momento, foram entes públicos dizerem que estava tudo certo. Qualquer leigo sabe que essa casa noturna não tinha condição de funcionar. A Polícia Civil com competência esclareceu esse fato. Esse inquérito foi muito bom para nós. Não podemos ficar vivendo de acordos e favores políticos. Está na hora de dar um basta nisso.

Daqui para frente, como a associação pretende atuar?

Ferreira – Nós temos que ter um novo objetivo na nossa vida. A semente foi plantada hoje. A partir daqui, o nosso clamor é que a justiça seja feita para nossa paz interior.


CAOS KISS: UMA ABERRAÇÃO JURÍDICA COMETIDA PELA PC?

ZERO HORA 24 de março de 2013 | N° 17381

SANTA MARIA, 27/01/2013. A investigação deveria ter ido além de Schirmer?


Figurar entre aqueles responsáveis pelas 241 mortes e 623 feridos na boate Kiss levou o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, a reclamar do que seria uma “aberração jurídica” cometida pela Polícia Civil. Segundo ele, faltou responsabilizar o governo do Estado, o que não ocorreu porque a relação de envolvidos se restringiu à esfera regional. A apuração apontou indicíos de improbidade administrativa e homicídio culposo por parte do prefeito.

Além de Schirmer, os delegados também recomendam processo contra o tenente-coronel Moisés Fuchs, agora afastado do 4º Comando Regional dos Bombeiros de Santa Maria. Entendem que só eles têm conhecimento direto do que se passa na cidade – governador e autoridades da Segurança Pública não teriam como controlar de perto a fiscalização das casas noturnas de todos os 497 municípios gaúchos.

Trata-se, no entanto, de uma decisão com precedente. Ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante lembra do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, quando 19 sem-terra morreram em decorrência da ação da Polícia Militar do Pará. O Inquérito Policial-Militar (IPM) paraense excluiu o então governador, Almir Gabriel, e o secretário da Segurança Pública.

O ex-presidente da OAB, porém, reforça a necessidade de se avaliar a questão conforme cada caso. Não descarta, ainda, a possibilidade de o Ministério Público vir a aumentar a cadeia de responsáveis em relação a Santa Maria, se assim entender necessário. Certo é que, de forma geral, as autoridades máximas não costumam ser responsabilizadas – a não ser quando tenham pleno conhecimento do ocorrido.

– Generalização pode inviabilizar administrações. Todo presidente, governador, prefeito seria responsável (por casos) – observa.

Com o processo do mensalão, explica Gandra Martins, houve a introdução de uma nova teoria no Brasil, a do Domínio do Fato. Por essa ótica, de origem alemã, a apuração sobe na cadeia do comando – ou seja, quem está no topo deve ter ciência dos fatos. Mas o jurista ilustra os casos do ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, julgado no Mensalão, e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deixado à margem apesar de chefiar Dirceu, para classificar a teoria como “ainda em evolução”.

Gandra Martins afirma que a tese dominante no Brasil – e da qual ele é defensor – aponta para o benefício do réu, em caso de dúvida.

– Tem de ficar bem claro que o réu seja responsável – explica.

O também criminalista Jader Marques, advogado de um dos sócios da Kiss, Elissandro Spohr, o Kiko, defende colocar autoridades do governo do Estado no mesmo barco do prefeito Schirmer:

– Não tem por que ser diferente.

CARLOS GUILHERME FERREIRA


CASO KISS: REVELAÇÕES DO RELATÓRIO DA PC


ZERO HORA 24 de março de 2013 | N° 17381

SANTA MARIA, 27/01/2013. Um mergulho no inquérito histórico

As 188 páginas do relatório do inquérito policial sobre a tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, revelam indícios de falso testemunho, ofícios que estariam sendo escondidos e papéis supostamente forjados. O documento é uma síntese do inquérito, que ouviu 810 pessoas, soma 13 mil páginas e alcança 52 volumes.


ADRIANA IRION, JULIANA BUBLITZ E HUMBERTO TREZZI

De modo geral, a síntese ratifica o que já se sabia: a danceteria jamais poderia funcionar. Um dos trechos mais dramáticos do relatório do inquérito policial é o que descreve a sequência dos acontecimentos. Por meio de vídeos, fotos e depoimentos de sobreviventes, a polícia reconstitui os últimos instantes antes de a fumaça tomar conta do ambiente e envenenar centenas de jovens. O fogo se iniciou às 3h17min, após o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, indiciado por homicídio doloso, usar um artefato pirotécnico no palco.

Uma chama atingiu o forro, que possuía um isolamento acústico inflamável e tóxico. Em 40 segundos, as chamas se propagaram e a fumaça invadiu o ambiente. Era o começo do horror:

“O pânico tomou conta dos indivíduos que estavam na boate, fazendo com que as pessoas se desesperassem e tentassem deixar o local, mas apenas uma saída dava acesso ao seu exterior. A referida saída foi absolutamente insuficiente para dar vazão à quantidade de pessoas que se amontoaram na tentativa desesperada de deixar o local, sendo que muitas delas morreram buscando a saída. Não bastasse a existência de uma única saída, contribuiu também para o resultado danoso a existência de diversos obstáculos físicos, guarda-corpos (barras de contenção) nas rotas de saída, degraus, deficiência da iluminação de emergência, falta de indicação ou sinalização das rotas de fuga, além do local estar superlotado, fatores que em conjunto dificultaram a rápida evacuação do local.”

Fraude

O relatório traz à tona fatos que permaneciam desconhecidos. Entre eles, a suposta tentativa de dois bombeiros – o major Gerson da Rosa Pereira e o sargento Renan Severo Berleze – de inserir documentos nos arquivos da Kiss após o incêndio, em uma provável tentativa de maquiar o fato de que a corporação desconhecia a capacidade da casa noturna e induzir policiais ao erro:

“... o Corpo de Bombeiros e a prefeitura, além de não fiscalizar, sequer tinham conhecimento da capacidade populacional comportada pela boate, pois os bombeiros não possuíam qualquer documento neste sentido (…) O mais grave é que (...) os bombeiros introduziram no arquivo atinente à Kiss dois documentos, um croqui e outro nominado de cálculo populacional... depois da concessão do primeiro, os quais foram entregues para o bombeiro Renan Severo Berleze no dia do incêndio, o qual entregou os documentos para o Major Gerson (Pereira), que os introduziu no acervo documental. A posteriori, quando a Polícia Civil solicitou os documentos da boate, (...) os documentos foram dolosamente autenticados e introduzidos, induzindo as autoridades policiais ao erro.”

Inverdades

Outros dois bombeiros teriam “faltado com a verdade. Os soldados Vagner Guimarães Coelho e Gilson Martins Dias, responsáveis por fiscalizar a boate, teriam dito que não havia obstáculos na saída da Kiss quando vistoriaram o local. Os agentes ouviram os serralheiros que montaram as estruturas e concluíram que os bombeiros estariam tentando se “eximir de responsabilidades”.

“Gilson e Vagner (soldados Vagner Guimarães Coelho e Gilson Martins Dias, responsáveis pela fiscalização que resultou no segundo alvará de prevenção de incêndio) faltaram com a verdade em suas declarações, pois já existiam obstáculos nas rotas de fuga do local, os quais podem ser verificados no croqui (...) elaborado pela equipe de investigação, a partir do depoimento dos serralheiros da época, que compareceram ao local e demonstraram como montaram as estruturas para a equipe (…) As falsas afirmações demonstram o claro intento dos bombeiros no sentido de eximir-se de suas responsabilidades (…) Estes dois bombeiros que fiscalizaram o local tinham o dever de ter verificado as diversas falhas gravíssimas, que indubitavelmente contribuíram sobremaneira para a proporção do desastre.”

Irregularidades

O relatório também é duro em relação à prefeitura. Conforme os delegados, a dificuldade em conseguir todos os documentos e uma denúncia anônima levaram policiais a encontrar, nos arquivos municipais, um texto elucidativo. É o projeto que transforma o prédio onde funcionava um curso pré-vestibular na boate Kiss. O documento aponta 29 irregularidades na reforma. Após idas e vindas, acabou ignorado pelos gestores, que liberaram o Alvará de Localização mesmo diante dos alertas:

“(...) recebemos denúncia anônima dando conta de que a prefeitura estaria sonegando documentos (...) verificou-se que o mais importante documento relativo às irregularidades, realmente não havia sido encaminhado pela prefeitura, no qual constam as 29 anotações apontadas (...) e que são o atestado mais claro de que essa boate não poderia estar funcionando e de que há evidentes falhas na fiscalização e liberação dos respectivos alvarás.”

Falhas

Para os policiais, é um atestado “claro” de que a “boate não poderia estar funcionando e de que há evidentes falhas na fiscalização e liberação dos respectivos alvarás”.

Outro trecho é ainda mais duro:

“Fica evidente, a partir de seu relato e cotejo com a prova testemunhal, que antes do sinistro na boate Kiss, imperava a falta de comunicação entre as secretarias e entre estas e o prefeito.”

Responsabilidade

Ainda em relação ao Poder Executivo, o relatório sintetiza as conclusões sobre o depoimento prestado por Schirmer, que vinha sendo alvo de especulação desde a madrugada de 27 de janeiro.

Para os delegados, Schirmer não poderia “alegar desconhecimento” das irregularidades documentais.

“Em contrário a suas alegações, quanto à boate, não pode o prefeito alegar desconhecimento fático da situação irregular... é imperioso salientar que... foi oficiado pelo promotor ao Corpo de Bombeiros e ao prefeito, solicitando o alvará de funcionamento e a licença de operação da Boate. Em resposta a esse ofício, a prefeitura junta a licença de operação, respondendo que estava vencida desde 04/03/11. Diante de tais dados, indiscutivelmente, conclui-se que o senhor prefeito tinha conhecimento dos problemas de licenciamento da boate.”

Insegurança

No capítulo “proprietários e gerentes”, Elissandro Sphor, o Kiko, merece atenção especial. Principal responsável pelo funcionamento da danceteria, o empresário, conforme os investigadores, demonstrou:

“... total descaso com a segurança das pessoas que frequentavam a boate, tendo o agente mantido seu agir, mesmo diante de um resultado previsível, sem se importar com as graves consequências”.

Socorro

A atual administração municipal teve sua imagem arranhada, o Ministério Público, cuja conduta de promotores locais será submetida à análise da procuradoria de Justiça, também foi atingido, mas nenhuma instituição saiu do episódio tão maculada como o Corpo de Bombeiros. Além das suspeitas de irregularidades administrativas, o que já se intuía desde o dia da tragédia, a qualidade do socorro foi colocado sob suspeição. Nove bombeiros correm o risco de serem processados por homicídio culposo – negligência e imperícia ao prestar socorro às vítimas. A Polícia Civil remeteu à Justiça Militar cópia do inquérito, sugerindo que esses militares sejam responsabilizados. O resumo dessa investigação está entre as páginas 107 e 119 do relatório.

O estudante Luciano Buchholz, por exemplo, afirmou à polícia que, apesar de equipados com máscaras de oxigênio, bombeiros não teriam ingressado naquele inferno para resgatar vítimas:

“Somente pessoas civis adentraram na Kiss para prestar socorro. Os bombeiros apenas jogavam água para o interior da boate e pegavam as vítimas que os civis retiravam dali”.

Omissão

Jovani Brondani Rosso, outro jovem que tentou debelar as chamas, entrou e saiu rastejando, com camiseta molhada sobre nariz e boca. Retirou 15 pessoas de dentro da danceteria. Em depoimento, falou:

“Os bombeiros não só permitiram, como incentivaram a nossa entrada para fazer salvamentos.”

Risco

O inquérito conclui:

“Importante destacar que os colaboradores não possuíam qualquer qualificação técnica ou treinamento específico para enfrentarem situações de elevadíssimo risco como aquela, razão pela qual não poderiam ser a elas expostas por quem tinha o dever legal de salvar, resgatar, as vítimas.”

Despreocupação

Ao analisar a conduta do vocalista da banda, a polícia registra:

“Outro fato absolutamente reprovável cometido pelo vocalista da banda Marcelo é que, apesar de ter visto que o incêndio tomaria maiores proporções, não se preocupou em nenhum momento em pegar o microfone e anunciar que estava iniciando o fogo para que as demais pessoas pudessem ter a chance de sair do local, alegando que não o fez porque havia ocorrido uma queda de luz no palco, no que foi desmentido pela testemunha Rodrigo Moura Ruoso (p. 64 e p. 3590), que alegou ter feito uso do microfone para avisar as pessoas...”

Saídas

No item “Da segunda vistoria realizada pelos bombeiros”, a polícia aponta que um bombeiro que inspecionou a casa noturna atestou que o prédio deveria ter duas saídas de emergência, o que não foi exigido depois para a emissão do alvará.

“...o bombeiro Renan Severo Berleze realizou uma vistoria, na qual apontou, no documento relativo à inspeção feita no prédio da Kiss, que o imóvel onde funcionava a boate deveria possuir duas saídas de emergência, conforme NBR n.º 9077. Em nova inspeção, realizada pelos Soldados Coelho e Dias, o local foi liberado e, consequentemente, emitido alvará sem duas saídas, sem qualquer justificativa plausível para isso. Deve-se ressaltar que, como bem esclareceu o Parecer Técnico do CREA-RS: ‘Edificações com classe de risco F6, locais de reunião de público, segundo a NBR 9077:2001, demandam duas saídas de emergência, no mínimo localizadas o mais distante possível uma da outra.’ Duas portas justapostas e separadas por uma coluna central de um metro de largura, não poderiam ser consideradas como duas saídas de emergência independentes e afastadas entre si.”

Controle

Relatório diz que fiscalização mais efetiva poderia ter evitado tragédia:

“Curioso – todavia – é que após o incêndio na boate Kiss, Miguel Caetano Passini, por provocação do Ministério Público e da Polícia Civil, fez, em poucos dias, o que não havia feito nos dez meses em que é Secretário de Controle Mobilidade Urbana. Montou e coordenou uma força tarefa composta por fiscais de diversas Secretarias, a fim de fiscalizar os estabelecimentos com aglomeração de público. Se isso fosse a rotina que se espera da Pasta que tem atribuição para fiscalizar, o evento trágico não teria ocorrido.

PREFEITURA INTERDITA CASA DE SHOWS POR FALTA DE PPCI

ZERO HORA 25 de março de 2013 | N° 17382

FISCALIZAÇÃO EM CENA
Prefeitura interdita casa de shows na Zona Norte. Sem alvará de proteção contra incêndio, local foi fechado antes de evento


A falta da documentação completa para operar levou a prefeitura de Porto Alegre a fechar, na tarde de ontem, o Pepsi On Stage, no bairro São João, uma das casas de shows mais conhecidas da cidade. Com a interdição, a apresentação do músico Nando Reis, marcado para o domingo, teve de ser transferida para o bar Opinião, proprietário do Pepsi On Stage.

A Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic) informou ter antecipado a visita que faria ao estabelecimento durante a operação nas casas noturnas da Capital porque ficou sabendo do evento. Segundo o titular da Smic, Humberto Goulart, a casa não tem alvará de proteção contra incêndio.

A interdição se concretizou um dia depois de um tiroteio no mezanino da casa de espetáculos durante a festa Funk Samba Show, na madrugada de sábado, mas os fatos não têm relação direta.

– O Pepsi estava na nossa lista. Tivemos de antecipar a visita porque seria um show com muita gente e sem alvará de incêndio. Talvez a situação tenha nos chamado a atenção por causa do tiroteio, mas não foi uma visita diretamente por causa disso – afirmou Goulart.

O alvará já havia sido solicitado e tem relação com uma obra. Conforme o dono do Opinião, Alexandre Lopes, o Alemão, a empresa já havia pedido a renovação do documento:

– Os bombeiros estão extremamente rígidos. Não vão analisar nenhum pedido de vistoria enquanto não cumprirmos todos os oito itens que eles pediram. Só falta um, que é um papel que a prefeitura tem de dar, sobre um aumento de área.

CASO KISS: OS INTRICADOS RUMOS DA TRAGÉDIA


ZERO HORA - 25 de março de 2013 | N° 17382

SANTA MARIA, 27/01/2013

ADRIANA IRION E HUMBERTO TREZZI

A quem caberá a hercúlea tarefa de examinar 13 mil páginas de inquérito, interrogar 16 réus, ouvir centenas de testemunhas e presidir o julgamento sobre o incêndio que matou 241 pessoas na boate Kiss, em 27 de janeiro? A um juiz de Santa Maria, seria a resposta mais plausível. Mas a situação não é tão simples. Complicou quando os policiais que investigavam o caso resolveram sugerir processo por homicídio culposo contra o prefeito Cezar Schirmer por negligência na fiscalização da boate. Como Schirmer tem foro privilegiado, só pode ser julgado pelos desembargadores da 4ª Câmara do Tribunal de Justiça (TJ) – caso as suspeitas levantadas pela polícia contra ele se transformem em denúncia e esta seja aceita pela Justiça.

A interpretação majoritária entre juristas é que, nesse caso, todos os processados criminalmente pela tragédia deveriam ser julgados no TJ. Há jurisprudência definindo isso. Os dois promotores de Santa Maria que analisam as 13 mil folhas do inquérito desde a tarde de sexta-feira, Joel Oliveira Dutra e Maurício Trevisan, informaram ontem que não pretendem se manifestar sobre Schirmer por entenderem que a análise de eventual denúncia contra o prefeito não é de sua alçada.

– A Procuradoria de Justiça é que vai analisar essa cópia do inquérito que foi para lá para tratar do assunto Schirmer. Enquanto isso, nosso trabalho segue aqui, não tem por que a gente ficar aguardando – sustenta Dutra.

Trevisan afirma que uma eventual denúncia contra Schirmer pode ser encaminhada pelo procurador-geral ou pela chamada Procuradoria de Prefeitos. Se isso se confirmar, seria um raríssimo caso de julgamento por homicídio decidido por desembargadores. Isso já aconteceu em 1990, quando um parlamentar suspeito de assassinar o radialista e deputado estadual José Antônio Daudt foi julgado – e absolvido – no TJ.

Os promotores, porém, preferem a realização de júri popular dos indiciados em Santa Maria. Isso ocorrerá se Schirmer não for denunciado pelo MP ou caso o prefeito seja responsabilizado mediante a divisão do processo. Dutra e Trevisan poderiam invocar, por exemplo, o artigo 80 do Código de Processo Penal. Ele estabelece a possibilidade de que os processos por homicídio sejam separados, entre outros motivos, quando há excessivo número de acusados – o caso tem 16 réus.

MP deve insistir por júri em Santa Maria

Na hipótese de abertura de processo no TJ, o caminho provável do Ministério Público é insistir para que Schirmer seja julgado em separado (se houver elementos para isso), pelos desembargadores, destinando aos demais acusados julgamento em Santa Maria. A decisão sobre isso caberia à 4ª Câmara do TJ. Uma terceira possibilidade é que a procuradoria de prefeitos faça denúncia contra o prefeito e a Justiça decida arquivá-la, o que faria o julgamento permanecer na cidade.

Como há quatro suspeitos presos, os promotores de Santa Maria têm cinco dias úteis para encaminhar as denúncias. Porém, esse prazo pode ser prorrogado por tempo indeterminado se houver necessidade. Dutra disse que tem um “sentimento” de que será necessário um pouco mais de tempo para a análise do inquérito.

– A regra é encaminhar as denúncias de todos no mesmo momento, presos ou não, salvo se não houver elementos suficientes em algum caso. Aí, a denúncia pode ser encaminhada posteriormente – completou Trevisan.


Advogado promete “nitroglicerina pura”


Entre hoje e amanhã, o criminalista Jader Marques, advogado de defesa da família de um dos sócios da Kiss, Elissandro Sphor, o Kiko, pretende ingressar na Justiça com novos pedidos que, segundo ele, vão adicionar “nitroglicerina pura” às investigações sobre a tragédia da boate Kiss.

Defensor da inclusão de autoridades estaduais no processo, o advogado passou o final de semana estudando ponto por ponto as competências e elaborando o material a ser apresentado.

– Não vou antecipar, vou agir – disse ontem Jader Marques.

Um dos prováveis pedidos será para que todo o julgamento seja remetido para o Tribunal de Justiça, em Porto Alegre. Para a defesa, ter mais autoridades com mandato denunciadas além do prefeito Cezar Schirmer seria vantajoso porque reforçaria a tese de que todo o julgamento deve ser repassado à 4ª Câmara do TJ.

Isso evitaria que os donos da Kiss e os demais indiciados por homicídio doloso (dolo eventual, quando alguém assume o risco de matar) fossem a júri popular em Santa Maria, o que diminuiria a pressão popular e o clamor em que a cidade está mergulhada desde a tragédia. O julgamento ficaria sob responsabilidade da 4ª Câmara do TJ em Porto Alegre, delegando a decisão a três desembargadores.

Contrário à posição, o MP vai defender que o júri popular seja realizado em Santa Maria e que apenas as autoridades com foro privilegiado sejam julgadas pelo TJ.


Desagravo e carta aberta dos bombeiros

MATHEUS BECK

A repercussão do inquérito policial que indiciou ou responsabilizou 13 bombeiros e um oficial da reserva pela tragédia na boate Kiss levou a corporação a reagir. Uma reunião realizada pela Associação dos Oficiais da Brigada Militar (AsofBM) na tarde de sábado, na Capital, expôs a insatisfação dos militares com o que consideram más condições de trabalho. Em uma carta aberta, foi listada uma série de reivindicações como a desvinculação da Brigada Militar e um percentual mínimo de 10% do orçamento da Secretaria da Segurança Pública.

– Há tempos, (os bombeiros) não são tratados como deveriam. É uma instituição, não uma peça da polícia – afirmou o tenente-coronel José Carlos Riccardi Guimarães, presidente da AsofBM.

Hoje, os investimentos dependem de repasses da BM e de arrecadações de cada companhia. O coordenador do núcleo de bombeiros da AsofBM, major Rodrigo Dutra, disse que a falta de efetivo afeta várias unidades. A reunião serviu como desagravo aos colegas citados no inquérito. O major Gerson da Rosa Pereira, indiciado pela Polícia Civil por fraude processual, declarou:

– O delegado não tem competência para me indiciar, só a BM ou a Justiça Militar.

O tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs, comandante do 4º Comando Regional dos Bombeiros, responsabilizado por homicídio culposo (sem a intenção de matar) e improbidade administrativa, teve seu afastamento anunciado pelo governador Tarso Genro. O fato foi criticado pelos colegas de farda.




sábado, 23 de março de 2013

CASO KISS: 16 APONTADOS CRIMINALMENTE

ZERO HORA 23 de março de 2013 | N° 17380

SANTA MARIA, 27/01/2013 - 16 apontados criminalmente

A Polícia Civil indiciou 16 pessoas envolvidas direta e indiretamente na tragédia da boate Kiss. Nove foram enquadradas no crime de homicídio doloso (dolo eventual, quando alguém assume o risco de matar) e poderão ser submetidas ao Tribunal do Júri.

Desse grupo, fazem parte os donos da boate, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, os bombeiros Gilson Martins Dias e Vagner Guimarães Coelho, além de familiares de Kiko – Ângela Aurelia Callegaro, irmã dele, Marlene Teresinha Callegaro, mãe, e Ricardo de Castro Pasche, cunhado.

Kiko e Hoffmann, segundo os delegados, erraram ao colocar em funcionamento um estabelecimento “sem a mínima segurança”.

– Eles reformavam a casa da maneira que queriam, sem nenhum cuidado. Essa circunstância desfigurou a boate a ponto de nós sequer sabermos por quantas reformas ela passou. Além disso, o laudo do IGP (Instituto-geral de Perícias) mostrou que havia uma série de problemas, desde extintores que não funcionaram e que estavam em locais inadequados até a colocação de grades que dificultaram a saída – afirma o delegado Sandro Meinerz.

Os dois membros da banda foram indiciados devido ao uso do sinalizador, que, conforme a Polícia Civil, não poderia ter sido utilizado em local fechado e deu início ao fogo no teto da danceteria. Já os dois bombeiros foram responsáveis por uma fiscalização considerada insuficiente pela Polícia Civil e que resultou no segundo alvará de prevenção a incêndio da Kiss. Os familiares de Kiko entraram no grupo, de acordo com o delegado Marcelo Arigony, não só porque sabiam das irregularidades, mas porque seriam coniventes com elas.

Além dos indiciamentos por homicídio doloso eventual, foram listados mais sete pelo crime de incêndio, dois por fraude processual, um por falso testemunho e três por homicídio culposo (sem intenção de matar). Abaixo, veja quem foi apontado pela Polícia Civil.


ZERO HORA 23 de março de 2013 | N° 17380

EDITORIAIS - CULPAS APONTADAS

Depois de um trabalho exaustivo e detalhado que durou 54 dias, a Polícia Civil gaúcha apontou ontem a responsabilidade de 28 pessoas pelo incêndio na boate Kiss, indiciando diretamente 16 delas pelos crimes de homicídio, fraudes processuais e falso testemunho. Outras foram citadas por indícios de crime, entre as quais o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, secretários e funcionários da prefeitura e o comandante do Corpo de Bombeiros na região, além de outros integrantes da corporação. Agora, caberá ao Ministério Público, dentro dos prazos processuais, transformar o inquérito policial em denúncia a ser encaminhada à Justiça. Como bem disse o chefe de Polícia Ranolfo Vieira Júnior, o relatório ontem apresentado foi só o começo de um trabalho de apuração dos crimes e negligências que causaram a maior tragédia da história do Estado, com 241 mortos e 623 feridos. Espera-se que as demais etapas do processo sejam executadas com a mesma celeridade, seriedade e transparência da fase policial, para que a sociedade rio-grandense tenha certeza de que a dolorosa lição foi aprendida.

As provas periciais e testemunhais apresentadas pela polícia, que incluíram vídeos e fotos inéditas do episódio, não deixam dúvida de que um conjunto de ações e omissões geradas pela irresponsabilidade e pela ganância concorreram para o infortúnio de dezenas de jovens que caíram numa verdadeira armadilha. A superlotação da casa, o uso irresponsável de fogos de artifício, a falta de sinalização para a saída, o despreparo dos funcionários e a inexistência de um plano eficiente de combate a incêndio foram os fatores que deram efetividade ao sinistro, mas as condições prévias para a ocorrência foram construídas de maneira ainda mais perversa – por servidores públicos ímprobos, por fiscais negligentes e por autoridades omissas.

Punir os culpados – na forma da lei, evidentemente, e depois de amplo direito de defesa – é uma imposição moral, para que as famílias enlutadas tenham o consolo da justiça e para que fatos semelhantes não venham a se repetir. Nada vai atenuar a dor dos parentes e amigos das vítimas, mas eventuais impunidades podem agravá-la. Então, temos que reconhecer o trabalho policial como profissional e responsável, mas ainda falta muito para que a sociedade rio-grandense tenha uma resposta satisfatória para a angústia de saber-se vulnerável à incúria de quem deveria dar-lhe proteção, à ganância de quem só pensa nos próprios interesses e à cumplicidade deletéria entre uns e outros.

O inquérito policial sepulta de vez a tese estapafúrdia de acidente e dá o nome verdadeiro à tragédia de Santa Maria: crime.


CASO KISS: 28 A CAMINHO DA JUSTIÇA

ZERO HORA 23 de março de 2013 | N° 17380

SANTA MARIA, 27/01/2013

28 a caminho da Justiça


CARLOS WAGNER E HUMBERTO TREZZI

O Dia D das investigações sobre a maior tragédia da história gaúcha teve solenidade, impacto e, sobretudo, surpresa. A divulgação dos resultados do inquérito que apura as causas das 241 mortes no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (ocorrido em 27 de janeiro), foi um petardo que impactou as esferas políticas e administrativas. Das 28 pessoas que, no entender da Polícia Civil, deveriam ser responsabilizadas direta ou indiretamente no episódio, 13 (quase a metade) são bombeiros. Mas a prefeitura santa-mariense também sofreu abalo, com seis integrantes da administração municipal apontados por crimes ou ações que levaram às mortes. A começar pelo prefeito Cezar Schirmer, quadro histórico do PMDB, a quem os policiais sugerem que seja processado por homicídio culposo (negligência) e improbidade administrativa (má gestão).

Os indiciamentos, a rigor, se dividem em três grandes grupos: pessoal envolvido com a boate, os músicos, administradores municipais e bombeiros. Sobrou para todos, fizeram questão de ressaltar os delegados que atuaram no inquérito. Primeiro o núcleo de administradores da danceteria, todos indiciados por homicídio. A preocupação dos policiais em dar uma satisfação à comunidade fica também evidente nos detalhes. A começar pela transmissão do anúncio do relatório do inquérito, feita ao vivo pela mídia. Não por acaso, o palco da divulgação foi um auditório do Centro de Ciências Rurais, a faculdade mais atingida na tragédia que ceifou, sobretudo, alunos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Bombeiros foram duramente atingidos

O inquérito foi esmiuçado num powerpoint, no qual o delegado regional de Polícia, Marcelo Arigony, enumerou detalhes dos detalhes. O incêndio, iniciado às 3h17min da madrugada do dia 27, deixou além de 241 mortos outros 623 feridos. Só a soma deles supera a capacidade de lotação da boate, que era de 691 pessoas. Além da superlotação, o inquérito concluiu que a danceteria não tinha luzes e sinais de emergência (153 testemunhas afirmaram isso) e, também, que os seguranças e barras de contenção dificultaram a saída das vítimas.

Os responsáveis pelo inquérito criticam – e muito – o trabalho dos bombeiros. A primeira falha seria a concessão, sucessivas vezes, de alvará de funcionamento para uma casa noturna sem condições de segurança. Dois bombeiros seriam responsabilizados por homicídio doloso (intencional) por essa liberalidade e outros dois, por homicídio culposo (não intencional). Além disso, como já havia adiantado Zero Hora, outro grupo de bombeiros também foi apontado, pela Polícia Civil, como possível culpado pela morte de cinco voluntários civis que ingressaram na boate para salvar vidas e acabaram morrendo envenenados pelos gases liberados no incêndio. A sugestão dos policiais civis é que sete bombeiros respondam na Justiça Militar por homicídio culposo.

– Os bombeiros não impediram a entrada dessas pessoas na boate e, em alguns casos, estimularam que tentassem o salvamento, sem condições técnicas e sem equipamento. Essa irresponsabilidade resultou em mortes – comenta o delegado Arigony.

Em 40 segundos, as luzes se apagaram

Os bombeiros, os primeiros a liberar o funcionamento da boate, foram duramente atingidos pelo inquérito. Incluindo aí o comandante regional dos bombeiros de Santa Maria, tenente-coronel Moisés Fuchs, que poderá responder por homicídio, na Justiça Militar. Junto com 10 subordinados. Já na esfera municipal o prefeito Schirmer e três secretários encabeçam uma lista de seis atingidos pelo inquérito, cinco dos quais podendo vir a sofrer processo judicial por homicídio.

A Polícia Civil teve o cuidado de convidar para a cerimônia, além de repórteres e policiais, representantes das famílias das vítimas. É o caso de Leo Becker, pai da estudante Erika, 22 anos, e Adherbal Ferreira, pai de Jenifer, 22, que perderam as filhas no incêndio. Os dois choraram quando o delegado Marcelo Arigony rodou dois vídeos de vítimas que mostram o inferno em que se transformou a Kiss. Em 40 segundos, as luzes se apagaram e a fumaça envolveu o ambiente. Ao ver a divulgação de 28 nomes como possíveis culpados pela tragédia, Becker elogiou. Entre lágrimas, resumiu:

– Foi um trabalho maravilhoso. É um importante primeiro passo.

Um primeiro passo que já causou baixas. O tenente-coronel Moisés Fuchs, comandante dos bombeiros de Santa Maria e um dos que a Polícia sugere que seja processado por homicídio, foi afastado do cargo ainda ontem.

Caso de 13 mil páginas

FRANCISCO AMORIM

Ao reunir 810 depoimentos, o maior inquérito da Polícia Civil gaúcha ultrapassou as 13 mil páginas.

Para que o calhamaço de folhas fizesse sentido, as informações relevantes foram catalogadas em um banco de dados que subsidiou a redação do relatório final de 188 páginas entregue ontem à Justiça de Santa Maria.

A estratégia deu fôlego à investigação. Em um caso sem precedentes no Estado, o enorme volume de declarações poderia ser um obstáculo. Em vez de emperrar a apuração, as pilhas de papel foram transformadas em dados estatísticos que ajudam a dar contorno à tragédia.

– Esse levantamento nos permitia encontrar dados importantes rapidamente e reunir trechos de depoimentos que davam conta de uma mesma questão – explica o delegado regional Marcelo Arigony.

O trabalho silencioso da jovem delegada Luiza Sousa, há pouco mais de dois anos na instituição, não foi feito com ajuda de programa de computador específico para o trato de informações estatísticas.

A policial listou cada depoimento em um software de texto comum, usando as horas de folga para a missão adicional imposta a si. Com o trabalho quase artesanal, no entanto, os delegados à frente do caso puderam apresentar com exatidão quantas pessoas presenciaram, por exemplo, o início do incêndio, viram o extintor falhar ou foram barradas por seguranças. Além de ajudar a equipe policial a firmar convicção nos indiciamentos, o levantamento permite a compreensão dos fatos que desencadearam o incêndio que matou 241 pessoas.

O relatório sobre os 52 volumes do inquérito revela ainda que os policiais não se limitaram a ouvir suspeitos, analisar documentos e aguardar laudos do Instituto-geral de Perícias (IGP). Quebras de sigilo telefônico e de e-mails foram solicitados ao Judiciário. Parte do material reunido, no entanto, será usado em outras investigações que surgiram a partir do incêndio. Entre elas, a de irregularidades envolvendo empresas em nome de bombeiros e familiares.

– Nem tudo pode ser apurado agora em apenas 55 dias. Alguns fatos que surgiram serão apurados em seu tempo – explica o delegado Sandro Meinerz.


Comandante afastado

O governador Tarso Genro afastou ontem à tarde o comandante regional dos Bombeiros de Santa Maria, Moisés da Silva Fuchs. O inquérito apontou indício de que o tenente-coronel praticou crime de homicídio culposo (não intencional). Tarso informou o afastamento pouco depois de deixar uma reunião em Brasília e de tomar conhecimento do relatório da polícia.

– Isso não significa uma condenação prévia – ponderou Tarso.

Segundo o governador, apenas não é adequado que um oficial incluído no relatório da Polícia Civil por indícios de prática de homicídio culposo permaneça no comando. Tarso acrescentou que o resultado da investigação não deve manchar a imagem do Corpo de Bombeiros, que teve outros integrantes citados:

– Os bombeiros fazem um trabalho extraordinário. Se algum bombeiro teve conduta irregular, isso não deve atingir a corporação. A corporação de bombeiros do Rio Grande do Sul é de alta qualidade e amada pela população. As pessoas que erraram, e isso vai ser verificado agora, vão pagar de acordo com as penas determinadas em lei.

O governador elogiou o trabalho policial, que qualificou como “exaustivo” e “muito bem feito”, mas sublinhou que cabe ao Ministério Público definir se os indiciados serão denunciados ou não.


Cezar Schirmer, a grande surpresa

A sugestão de que o prefeito Cezar Schirmer seja processado por homicídio culposo e por improbidade como um dos responsáveis pelo incêndio na Kiss é a bomba – e a controvérsia política – do inquérito divulgado ontem. Até uma semana atrás, os cinco delegados encarregados de elucidar a maior tragédia gaúcha tinham uma dúvida: o prefeito seria responsabilizado no inquérito? Dificilmente, era o consenso entre eles. A atuação do mandatário da cidade na tragédia foi indireta. Nomeou secretários, que chefiavam fiscais, que olharam papéis, produzidos por bombeiros. E só os bombeiros teriam entrado na boate para fiscalizar as condições de segurança.

Ou seja: assim como Lula no caso Mensalão, Schirmer – um quadro histórico nacional e fundador do PMDB – teria sido o último a saber da arapuca que era a Kiss. E então o relatório veio com a surpresa, um golpe na biografia do prefeito: os policiais acreditam existirem fatos capazes de fazer Schirmer enfrentar processo criminal por homicídio culposo. Teria sido negligente na fiscalização da danceteria.

O que fez os delegados mudarem de opinião? Schirmer acredita que há motivações políticas, já que bateu duas vezes o PT (partido do governador Tarso Genro) em eleições num dos seus redutos, Santa Maria.

Os policiais juram que foi escolha técnica. Justificam que Schirmer pode responder por homicídio com base na teoria do domínio do fato. Muito citada no Direito, ela diz que a autoria de um crime não pode se limitar a quem pratica pessoal e diretamente o delito. Ela estabelece diferença entre autoria e participação. Schirmer, claramente, não é autor do incêndio, nem estava perto da boate. O problema é que o prefeito é, em última instância, responsável por nomear aqueles que devem fiscalizar locais públicos, entre eles as casas noturnas. É como o engenheiro que responde, criminalmente, por uma obra malfeita pelos trabalhadores da construção e gerenciada pelo capataz.

Os capatazes de Schirmer, aliás (os seus secretários), também foram responsabilizados. É o caso de Miguel Passini e Luiz Alberto Carvalho Junior, secretários municipais. Eles chefiavam fiscais que deveriam ter fechado a boate e não apenas aplicado multas. E que não viram que os alvarás dos bombeiros estavam vencidos. Secretários e fiscais agora correm risco de processo pelas mortes.

O delegado Sandro Meinerz, relator do inquérito, justifica a inclusão do nome do prefeito e também a recomendação de processo por improbidade (má gestão) contra Schirmer:

– A sociedade foi ferida de morte. O prefeito administra as secretarias que se omitiram na fiscalização. Há nexo causal entre as mortes e a administração municipal.


“Absurdo jurídico”, afirma prefeito

CARLOS WAGNER E MARILICE DARONCO

Foi pelo rádio, em seu gabinete, no prédio da Sociedade União dos Caixeiros Viajantes (SUCV), no Centro de Santa Maria, que o prefeito Cezar Schirmer (PMDB) ouviu a coletiva da Polícia Civil sobre o encerramento do inquérito policial que apura responsabilidades relativas à tragédia da Boate Kiss. Minutos depois, ele deixou o prédio, visivelmente abalado e dizendo que falaria com a imprensa somente mais tarde. Segundo sua assessoria, ele “precisava de um tempo para se recompor”.

Como desdobramento da investigação, o inquérito será remetido à Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada pela Câmara de Vereadores de Santa Maria, para apurar supostos atos de improbidade administrativa do prefeito e para a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para averiguar a eventual responsabilidade criminal de Schirmer, “havendo indícios da prática de homicídio culposo”, de acordo com o texto do documento. Além disso, será enviado um ofício ao Ministério Público, noticiando possíveis práticas de improbidade administrativa por nove pessoas, entre elas dois servidores da prefeitura – Beloyannes Orengo de Pietro Júnior e Marcus Vinicius Bittencourt Bierman, dois secretários – de Mobilidade Urbana, Miguel Caetano Passini, e do Meio Ambiente, Luiz Alberto Carvalho Júnior–, o ex-secretário Marcelo Zappe Bisogno e o prefeito.

Assim que deixou o prédio, Schirmer foi para casa e conversou com os secretários, que foram indiciados por homicídio culposo e teriam manifestado a intenção de colocar o cargo à disposição. Ele ficou no local pouco menos de duas horas durante as quais o telefone não parou de tocar. De lá, só saiu para um pronunciamento. Visivelmente abalado, com as mãos trêmulas e, em alguns momentos procurando pela mão de sua mulher, Fátima Schirmer, ele falou por 11 minutos e 22 segundos. Aceitou responder apenas cinco perguntas da imprensa.

Schirmer garantiu ter colaborado com a investigação e disse ter sido tomado de surpresa com o inquérito, que ele classificou como “aberração jurídica” e “absurdo jurídico”. Afirmou, ainda, que observa indícios de tentativa de manipulação política da investigação e que os delegados envolvidos nela teriam feito afirmações sobre questões que não são de sua competência.

Pelo Faceboock, o delegado Marcelo Arigony respondeu a Schirmer: “Aberração é brincar com sentimento de 241 famílias.”



A quem caberá julgar?

ADRIANA IRION

Ao afirmar na conclusão do inquérito que há indícios da prática de crime – homicídio culposo – por parte do prefeito Cezar Schirmer, a Polícia Civil causou alvoroço não só no executivo municipal de Santa Maria, mas também no Ministério Público (MP) e no Judiciário.

Promotores e juízes foram bombardeados pela seguinte questão: onde passaria a tramitar o caso, já que Schirmer goza de foro privilegiado para ser processado – criminalmente – no Tribunal de Justiça (TJ)?

Há controvérsia na resposta e vários cenários possíveis. Por enquanto, como o inquérito foi entregue na Justiça de Santa Maria e há réus presos, o entendimento é de que o MP local tem cinco dias para se manifestar, com denúncia, ou remetendo o caso ao TJ com base no suposto envolvimento de Schirmer.

A tendência é de que os quatro suspeitos presos sejam denunciados (a lei determina que, depois da conclusão do inquérito, o MP tem prazo de cinco dias para denunciar quem estiver preso) e os promotores peçam mais diligências para, só depois, dizer se entendem que há mesmo indícios de crime cometido pelo prefeito. Se detectar isso, o MP terá de enviar o caso para a Procuradoria-geral de Justiça, que o repassará ao TJ. A análise sobre eventual crime cometido pelo prefeito passaria então a ser feita pela procuradoria de prefeitos (MP de 2ª instância). Os procuradores poderiam denunciar o prefeito, se entenderem haver elementos para isso, pedir mais diligências ou até o arquivamento do caso em relação a Schirmer.

Cisão do processo é uma possibilidade

Qualquer que seja a manifestação dos procuradores, ela será ainda apreciada por três desembargadores, em julgamento realizado em sessão no TJ. Conforme o presidente da 4ª Câmara, desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, o caso só voltaria a tramitar na Justiça de Santa Maria se a decisão da 4ª Câmara fosse pelo arquivamento da investigação contra Schirmer.

Segundo o desembargador, o fato de Schirmer ter foro privilegiado e, por isso, ser processado no TJ, faz com que todos os demais denunciados também sejam processados na 4ª Câmara. Há entre advogados, promotores e até juízes, um entendimento, considerado minoritário, de que poderia haver cisão do processo. Ou seja: ficaria no TJ apenas a parte relacionada ao prefeito.


Familiares se emocionam

O vice-presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Léo Becker, parabenizou a Polícia Civil pelo indiciamento de 16 pessoas e elogiou a inclusão do prefeito Cezar Schirmer:

– Toda vez que o prefeito se manifestava, ele se blindava. A polícia desmascarou essa blindagem. Parabéns à polícia pela coragem. Concretizou-se o que eu esperava.

Becker disse, ainda, que acredita num julgamento exemplar para mostrar, a nível nacional e mundial, a Justiça sendo feita. O presidente da entidade, Adherbal Ferreira, avaliou que ainda precisa analisar o resultado para dar uma opinião mais embasada. Segundo Ferreira, a investigação foi considerada satisfatória e a associação vai se reunir para debater o inquérito.

Seis representantes da entidade acompanharam a divulgação do resultado do inquérito. Eles ficaram bastante emocionados e se abraçaram durante a apresentação de um vídeo que mostrava o momento do inicial do incêndio. Um segundo vídeo, com imagens do momento em que o fogo toma conta da boate e todas as luzes se apagam, também foi passado. O áudio foi cortado por ser considerado muito pesado pela Polícia Civil. Os familiares se abraçaram durante a divulgação dos indiciados.