ZERO HORA 02 de dezembro de 2015 | N° 18373
HUMBERTO TREZZI E LIZIE ANTONELLO
CASO KISS. As versões de um acusado de 242 mortes
EM UMA SESSÃO de oito horas e meia, Elissandro Spohr, o Kiko, dono da boate onde aconteceu a tragédia, respondeu a perguntas
Mais magro, pálido e com visual abatido, Elissandro Spohr, o Kiko, pivô da maior tragédia da história gaúcha – a morte de 242 jovens em um incêndio na boate Kiss –, depôs ontem pela primeira vez ao Judiciário. Ele era um dos donos da danceteria e foi interrogado em Santa Maria, onde ficava seu estabelecimento. De camisa social para fora da calça jeans, tênis, olheiras e barba por fazer, avisou logo nas primeiras palavras: “vou falar tudo”.
E cumpriu a promessa. Em audiência de oito horas e meia, só fez pausa para ir duas vezes ao banheiro, tomar uma taça de café preto e muita água – foram três copos de mineral. Pediu compreensão aos pais das vítimas – dezenas deles lotavam o salão do júri, trajando camisetas com fotos dos filhos mortos. E desmoronou quando o juiz Ulysses Louzada lhe perguntou: o que motivou o fogo?
Ao fazer isso, o magistrado que preside o interrogatório ecoou a maior angústia dos familiares dos 242 mortos na boate Kiss. Fez sua a voz deles. Aí, Kiko respondeu em meio a uma crise de choro:
– O que causou o fogo foi a brincadeira errada. Foi um erro o Marcelo (de Jesus dos Santos, vocalista de uma banda) ter usado o artefato luminoso que causou o incêndio. Mas ele não queria matar ninguém. Com certeza, não. Ninguém queria – disse Kiko ao juiz Louzada, sem conter as lágrimas.
Eram 15h15min de uma longa e abafada tarde no Fórum santa- mariense. O choro de Kiko provocou murmúrios entre os parentes de vítimas.
– Não aguento mais ouvir tanta mentira – disse uma mulher, familiar de um dos jovens mortos no incêndio da Kiss.
Disposto a convencer a plateia, Kiko continuou:
– Não queria que isso acontecesse. Nunca imaginei que fosse acontecer, que uma banda fosse acender o artefato e o incêndio acontecer. Não fui lá pular com o negócio na mão. Talvez, devesse ter visto algo que não vi. Quis fazer o melhor – analisou.
PREFEITURA E MP ALFINETADOS POR KIKO
O réu aproveitou para alfinetar as autoridades, entre as quais Ministério Público, prefeitura e bombeiros, que permitiram que a boate estivesse funcionando no período em que se incendiou.
– Tudo o que foi pedido, fiz. Me deram documentação em 2009, me deram em 2011. Vão dizer que comprei, que corrompi? Não tinha rolo com ninguém. É como se eu tivesse construído a boate e me concedido os alvarás. Não, me deram permissão. Fiscalizaram. Tava tudo ok, e, aí, aconteceu o acidente. Acabou que deu no que deu. Só eu sento aqui para explicar? É complicado. Junto comigo também deveria ter bem mais gente dando explicação. O senhor não deveria ter aceitado denúncia só contra quatro bocós – disse Kiko ao juiz.
Outros dois réus por homicídio, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão (integrantes da banda Gurizada Fandangueira), acompanharam a sessão. Mauro Hoffmann, sócio de Kiko e também réu, não foi.
CASO KISS - O que disse o réu
AS LICENÇAS DA KISS
Conseguir licença para funcionar era um horror, por causa da burocracia.
Quando comecei a fazer festas, os vizinhos nem me cumprimentavam, me odiavam.
Se lá atrás as autoridades tivessem fechado a Kiss, eu, boca-aberta, não teria comprado a boate.
Os guarda-corpos eram para evitar que alguém entrasse armado e matasse alguém. Não é como tão dizendo, para evitar saída de quem não pagasse. É questão de segurança. Banco não tem porta giratória?
Quem sabe o que fiz não foi suficiente. Achava que era seguro. Tinha ok de prefeitura, Ministério Público, bombeiros.
SURPRESA COM O INCÊNDIO
Tinha saído para resolver um problema. Entrei no prédio e alguém gritou: “Fogo, fogo!”. Olhei para palco e já estava uma função ali. Muita gente começou a vir e era uma barulheira. Saí pela porta dos fumantes.
Ninguém gritou na hora do incêndio: abre a porta. Fui eu quem abriu a primeira porta do fumódromo.
No início, pensei que era briga. Tinha ido apartar uma lá fora. Quando cheguei de volta, na porta, vi o tufão de fumaça. Olhei para o palco e os guris já estavam em função de extintor. Vi que era coisa séria. Os seguranças não seguraram o pessoal, não tinha como segurar. Ninguém seguraria.
Acho que se bombeiros tivessem mais equipamentos, poderiam ter salvo mais pessoas.
A SUA RESPONSABILIDADE
Posso ter parcela de culpa, tudo bem. Mas não sou assassino.
Se tenho de responder pelo que aconteceu, outros também, até antigos donos. Não é justo que seja só eu.
Não queria que acontecesse. Quem sabia que essa espuma ia dar esse problema? Onde diz que é proibido colocar espuma? Não sabia que alguém iria lá e botar fogo.
Mauro era meu sócio, mas quem fazia as coisas era eu. Ele cuidava da boate Absinto, eu cuidava da Kiss. E assim foi. A Kiss não era essa bagunça que falam. Tinha responsável pelo bar, pelo financeiro, por tudo. Contabilidade semanal. Falam que o Mauro fez obras. Quem conhece ele, sabe que não é de carregar saco em obra.
Kiko defenderá pais de vítimas
Uma ação judicial que teve como origem o incêndio da Kiss será objeto de uma situação incomum. Pela primeira vez desde o acidente, devem ficar do mesmo lado do processo parentes das vítimas e os principais acusados de serem responsáveis pelas mortes.
É que alguns pais de jovens mortos na Kiss estão sendo processados por calúnia pelo Ministério Público. Eles disseram que um promotor de Justiça permitiu que a boate ficasse aberta, mesmo com todos os defeitos que acabariam por gerar a mortandade: uma só saída do prédio, barreiras de metal próximas às portas (que funcionaram como armadilhas), espuma isolante de ruído (que se revelou tóxica e mortífera ao pegar fogo). No contra-ataque, o promotor moveu ação contra Flávio Silva (presidente do Movimento do Luto à Luta) e integrantes da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia em Santa Maria.
Silva arrolou como testemunha um dos donos da boate Kiss, Kiko, e seu advogado, Jader Marques. Em entrevista a Zero Hora, Kiko disse que a boate funcionava naqueles termos porque o MP permitiu e fez acordo nesse sentido.
– O Kiko vai mostrar à Justiça que meu cliente, pai de vítima, está certo: um promotor permitiu que a boate funcionasse. Isso é verdade e não calúnia – resume Pedro Barcellos, advogado de Flávio Silva.