ZERO HORA 24/01/2015 | 13h02
por Adriana Irion
Kiss, 2 anos. Leis criadas para prevenir incêndios como o da Kiss ainda não trazem resultado. No Estado, aprovada às pressas em dezembro de 2013, legislação esbarra em burocracia e há brechas para interpretações. No Congresso, norma federal está engavetada
Após limpeza da boate, em 2014, familiares pintaram fachada de preto e mantiveram porta branca Foto: Andréa Graiz / Agencia RBS
Ela foi a primeira a sentar no banco dos réus como culpada pelas 242 mortes no incêndio da boate Kiss. Mal a tragédia completara 24 horas e autoridades apontavam em entrevista coletiva, em Santa Maria, a legislação de prevenção a incêndio como responsável. Ou melhor, irresponsável. Assim, o então governador Tarso Genro (PT) definiu a lei em vigor: débil e irresponsável.
A partir da célere definição, desencadeou-se um longo processo de discussão para criação de novas leis – uma estadual e uma federal. Dois anos depois, a norma feita em Brasília e aprovada na Câmara – do deputado Paulo Pimenta (PT) – em abril do ano passado está em uma gaveta no Senado, esperando acordo da presidência da Casa com líderes para entrar em pauta de votação.
– Não chamo de tragédia. Foi um ato criminoso, e dois anos se passaram sem que a lei seja aprovada. Só posso acreditar que tem algo errado. Que atuaram forças ocultas, o lobby de grandes empresas do setor – indigna-se o senador Paulo Paim (PT), que foi relator da lei na Comissão de Direitos Humanos do Senado e faz pressão pela votação.
No cenário estadual, a chamada Lei Kiss, do deputado Adão Villaverde (PT), foi aprovada na Assembleia no apagar das luzes de 2013, às pressas, para marcar presença quando as homenagens de um ano pela tragédia ganhassem as ruas. Sofreu reformulação em julho de 2014, vista por alguns como uma “flexibilização” forçada por prefeituras e empresas. Em novembro, houve outra mudança aprovada no Legislativo, mas vetada por Tarso. O veto ainda tem de ser apreciado pela Assembleia.
Hoje, na prática, a nova lei ainda pouco interfere no tão buscado processo de prevenção para prédios já existentes. Isso ocorre porque os prazos dados pela lei para adequação são longos, chegando a 60 meses para que todos os itens de segurança previstos estejam contemplados no imóvel. Além disso, o Corpo de Bombeiros calcula que só em Porto Alegre existam até 120 mil prédios que deveriam ter Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI), mas apenas 32 mil estão regularizados.
– Os sistemas previstos na nova lei para prédios que estão sendo construídos estão valendo, podemos cobrar 100%. Mas para os prédios existentes, que são a maioria, não. A lei fracionou os prazos. Somente a partir da conclusão de resoluções técnicas é que vamos conseguir cobrar. Para casas noturnas, não há exceção. O rigor com essas já está valendo – afirma o tenente-coronel Adriano Krukoski, comandante dos bombeiros em Porto Alegre e membro técnico do Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndio.
O conselho é o órgão com responsabilidade por criar as resoluções técnicas que vão orientar a aplicação do que diz a legislação. Até o momento, cinco resoluções foram colocadas no papel e aprovadas pelo conselho, mas nenhuma foi publicada para entrar em vigor.
A questão do "preferencialmente"
Fácil lembrar de uma das mais debatidas falhas encontradas na Kiss: a falta de saída de emergência. O Corpo de Bombeiros defendia ter dado liberação para a boate com base na norma que diz que as portas de emergência devem “preferencialmente” estar em lados opostos. O raciocínio era simples: preferencialmente não é igual a obrigatoriamente. Então, a Kiss estava, para eles, adequada com uma única porta. Já a investigação do incêndio, baseada em minuciosas perícias, apontou a falta de mais portas como uma das razões para tantas mortes terem ocorrido.
– Isso (a tragédia) pode se repetir se medidas rápidas não forem tomadas não somente pelas prefeituras na fiscalização como também reformas normativas importantes, para deixar claras as responsabilidades. Onde diz coisas dúbias, como por exemplo “preferencialmente”. Uma norma nunca pode dizer isso, porque o “preferencialmente” já é uma oportunidade de evasão para o administrador – afirmou Tarso em janeiro de 2013.
Dois anos depois, ainda está em vigor o “preferencialmente”. A resolução técnica que trata do tema das saídas de emergência ganhou 87 páginas de sugestões do conselho estadual e ainda não está valendo.
Outro longo capítulo de debates jurídicos e políticos deve ocorrer se a lei nacional for aprovada como está. O texto remete a resolução para normas brasileiras, que estariam acima das estaduais. Desta forma, todo o trabalho que vem sendo feito para moldar resoluções técnicas para a nova lei estadual cairia por terra. E o tempo de mudanças normativas urgentes, a fim de evitar novas tragédias, vai se alongando.
A CRONOLOGIA DA LEI KISS ESTADUAL
- A Lei Kiss foi aprovada pela Assembleia Legislativa em 11 de dezembro de 2013 e sancionada dia 26, um mês e um dia antes de a tragédia completar um ano.
- Passou a vigorar em meio às férias e à Operação Verão, quando os efetivos são reduzidos.
- Em fevereiro 2014, para não parar o trabalho de prevenção, os bombeiros emitiram instrução normativa com orientações sobre como aplicar a nova lei. Também criaram grupo de trabalho para formular as resoluções técnicas necessárias para regulamentar a lei, mas as resoluções precisavam ser aprovadas por um conselho que sequer existia.
- Em maio de 2014, foi criado por decreto do governador o Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndio, composto por 10 representantes do Executivo e nove de outras entidades. O conselho se reúne uma vez por mês. Ocorreram cinco reuniões, e cinco resoluções aprovadas aguardam publicação pelo governo.
- Em junho de 2014, a lei foi alterada. Houve quem considerasse que foi “flexibilizada” por pressão de empresas e de prefeituras.
- Em setembro de 2014, foi publicado decreto para regulamentar os dispositivos da Lei Kiss, mas até hoje ainda não há resolução técnica nova sendo aplicada.
- O item “saídas de emergência” foi um dos mais debatidos depois da tragédia na Kiss, pelo fato de a lei em vigor remeter para uma norma da ABNT (9077) que diz que as portas devem ser “preferencialmente” em lados opostos. Ou seja, a lei deixa brecha para interpretações, não obriga que as portas sejam opostas. Na Kiss, não eram. E hoje, dois anos depois da tragédia e mesmo existindo uma nova lei, ainda está em vigor essa norma (menos em cidades que tenham uma lei com determinação mais rigorosa em relação às portas). A lei de Porto Alegre, por exemplo, determina portas em lados opostos ou separadas por uma distância de três metros.
- Em novembro passado, nova alteração na lei foi aprovada pela Assembleia, permitindo que estabelecimentos com mais de 750 metros quadrados pudessem ter apenas PPCI simplificado. Pelo projeto, ginásios e CTGs seriam beneficiados. O projeto foi vetado pelo então governador Tarso Genro. O veto tem de ser apreciado pela Assembleia a partir de 1º de fevereiro, pois tranca a pauta.
ENTENDA CADA PASSO PARA A LEI FUNCIONAR
Lei
- A legislação diz os itens que os estabelecimentos devem ter. Por exemplo: extintor.
Regulamentação
- Diz que o extintor vai ser do tipo e instalado da forma que a Resolução Técnica determinar.
Resolução Técnica
- Detalha o tipo de extintor, quantidade e distâncias para ser instalado em cada estabelecimento, por exemplo. É a resolução que dá todas as orientações sobre cada item previsto na lei.
- A lei Kiss, aprovada e sancionada em dezembro de 2013, ainda não tem resoluções técnicas próprias valendo. Ela funciona com remissões a resoluções já usadas à época da tragédia (normas brasileiras) ou a resoluções dos bombeiros de São Paulo.
DEMANDA PARA ANÁLISE DE PPCIs
- A nova lei criou exigências sem que o efetivo dos Bombeiros aumentasse. Com isso, é maior o tempo de análise de documentos e vistorias.
- Em Porto Alegre, para quem já tinha PPCI e precisava apenas renovar alvará, o prazo era de 20 dias. Agora, é de dois meses. Para quem nunca teve PPCI, o prazo que era de 20 dias passou para seis meses.
A LEI NACIONAL
- Em 29 de janeiro de 2013, foi anunciada criação de uma comissão na Câmara dos Deputados para discutir a legislação sobre prevenção a incêndio.
- Em julho de 2013, o projeto de lei 2.020/07, com alterações, foi proposto pela Câmara e aprovado em plenário em abril de 2014.
- Tramita no Senado Federal desde 16 de abril de 2014.
- Em 13 de novembro, foi para a Comissão de Direitos Humanos e, em 10 de dezembro, aprovado.
- Agora, aguarda inclusão em pauta para votação no plenário.
- Se aprovada como está, a lei deve interferir na nova legislação estadual: uma vez que prevê que a regulamentação deve ser feita com base em normas brasileiras e não estaduais. Dessa forma, todo o trabalho que está sendo feito no Estado para aprovação de resoluções seria perdido.
por Adriana Irion
Kiss, 2 anos. Leis criadas para prevenir incêndios como o da Kiss ainda não trazem resultado. No Estado, aprovada às pressas em dezembro de 2013, legislação esbarra em burocracia e há brechas para interpretações. No Congresso, norma federal está engavetada
Após limpeza da boate, em 2014, familiares pintaram fachada de preto e mantiveram porta branca Foto: Andréa Graiz / Agencia RBS
Ela foi a primeira a sentar no banco dos réus como culpada pelas 242 mortes no incêndio da boate Kiss. Mal a tragédia completara 24 horas e autoridades apontavam em entrevista coletiva, em Santa Maria, a legislação de prevenção a incêndio como responsável. Ou melhor, irresponsável. Assim, o então governador Tarso Genro (PT) definiu a lei em vigor: débil e irresponsável.
A partir da célere definição, desencadeou-se um longo processo de discussão para criação de novas leis – uma estadual e uma federal. Dois anos depois, a norma feita em Brasília e aprovada na Câmara – do deputado Paulo Pimenta (PT) – em abril do ano passado está em uma gaveta no Senado, esperando acordo da presidência da Casa com líderes para entrar em pauta de votação.
– Não chamo de tragédia. Foi um ato criminoso, e dois anos se passaram sem que a lei seja aprovada. Só posso acreditar que tem algo errado. Que atuaram forças ocultas, o lobby de grandes empresas do setor – indigna-se o senador Paulo Paim (PT), que foi relator da lei na Comissão de Direitos Humanos do Senado e faz pressão pela votação.
No cenário estadual, a chamada Lei Kiss, do deputado Adão Villaverde (PT), foi aprovada na Assembleia no apagar das luzes de 2013, às pressas, para marcar presença quando as homenagens de um ano pela tragédia ganhassem as ruas. Sofreu reformulação em julho de 2014, vista por alguns como uma “flexibilização” forçada por prefeituras e empresas. Em novembro, houve outra mudança aprovada no Legislativo, mas vetada por Tarso. O veto ainda tem de ser apreciado pela Assembleia.
Hoje, na prática, a nova lei ainda pouco interfere no tão buscado processo de prevenção para prédios já existentes. Isso ocorre porque os prazos dados pela lei para adequação são longos, chegando a 60 meses para que todos os itens de segurança previstos estejam contemplados no imóvel. Além disso, o Corpo de Bombeiros calcula que só em Porto Alegre existam até 120 mil prédios que deveriam ter Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI), mas apenas 32 mil estão regularizados.
– Os sistemas previstos na nova lei para prédios que estão sendo construídos estão valendo, podemos cobrar 100%. Mas para os prédios existentes, que são a maioria, não. A lei fracionou os prazos. Somente a partir da conclusão de resoluções técnicas é que vamos conseguir cobrar. Para casas noturnas, não há exceção. O rigor com essas já está valendo – afirma o tenente-coronel Adriano Krukoski, comandante dos bombeiros em Porto Alegre e membro técnico do Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndio.
O conselho é o órgão com responsabilidade por criar as resoluções técnicas que vão orientar a aplicação do que diz a legislação. Até o momento, cinco resoluções foram colocadas no papel e aprovadas pelo conselho, mas nenhuma foi publicada para entrar em vigor.
A questão do "preferencialmente"
Fácil lembrar de uma das mais debatidas falhas encontradas na Kiss: a falta de saída de emergência. O Corpo de Bombeiros defendia ter dado liberação para a boate com base na norma que diz que as portas de emergência devem “preferencialmente” estar em lados opostos. O raciocínio era simples: preferencialmente não é igual a obrigatoriamente. Então, a Kiss estava, para eles, adequada com uma única porta. Já a investigação do incêndio, baseada em minuciosas perícias, apontou a falta de mais portas como uma das razões para tantas mortes terem ocorrido.
– Isso (a tragédia) pode se repetir se medidas rápidas não forem tomadas não somente pelas prefeituras na fiscalização como também reformas normativas importantes, para deixar claras as responsabilidades. Onde diz coisas dúbias, como por exemplo “preferencialmente”. Uma norma nunca pode dizer isso, porque o “preferencialmente” já é uma oportunidade de evasão para o administrador – afirmou Tarso em janeiro de 2013.
Dois anos depois, ainda está em vigor o “preferencialmente”. A resolução técnica que trata do tema das saídas de emergência ganhou 87 páginas de sugestões do conselho estadual e ainda não está valendo.
Outro longo capítulo de debates jurídicos e políticos deve ocorrer se a lei nacional for aprovada como está. O texto remete a resolução para normas brasileiras, que estariam acima das estaduais. Desta forma, todo o trabalho que vem sendo feito para moldar resoluções técnicas para a nova lei estadual cairia por terra. E o tempo de mudanças normativas urgentes, a fim de evitar novas tragédias, vai se alongando.
A CRONOLOGIA DA LEI KISS ESTADUAL
- A Lei Kiss foi aprovada pela Assembleia Legislativa em 11 de dezembro de 2013 e sancionada dia 26, um mês e um dia antes de a tragédia completar um ano.
- Passou a vigorar em meio às férias e à Operação Verão, quando os efetivos são reduzidos.
- Em fevereiro 2014, para não parar o trabalho de prevenção, os bombeiros emitiram instrução normativa com orientações sobre como aplicar a nova lei. Também criaram grupo de trabalho para formular as resoluções técnicas necessárias para regulamentar a lei, mas as resoluções precisavam ser aprovadas por um conselho que sequer existia.
- Em maio de 2014, foi criado por decreto do governador o Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndio, composto por 10 representantes do Executivo e nove de outras entidades. O conselho se reúne uma vez por mês. Ocorreram cinco reuniões, e cinco resoluções aprovadas aguardam publicação pelo governo.
- Em junho de 2014, a lei foi alterada. Houve quem considerasse que foi “flexibilizada” por pressão de empresas e de prefeituras.
- Em setembro de 2014, foi publicado decreto para regulamentar os dispositivos da Lei Kiss, mas até hoje ainda não há resolução técnica nova sendo aplicada.
- O item “saídas de emergência” foi um dos mais debatidos depois da tragédia na Kiss, pelo fato de a lei em vigor remeter para uma norma da ABNT (9077) que diz que as portas devem ser “preferencialmente” em lados opostos. Ou seja, a lei deixa brecha para interpretações, não obriga que as portas sejam opostas. Na Kiss, não eram. E hoje, dois anos depois da tragédia e mesmo existindo uma nova lei, ainda está em vigor essa norma (menos em cidades que tenham uma lei com determinação mais rigorosa em relação às portas). A lei de Porto Alegre, por exemplo, determina portas em lados opostos ou separadas por uma distância de três metros.
- Em novembro passado, nova alteração na lei foi aprovada pela Assembleia, permitindo que estabelecimentos com mais de 750 metros quadrados pudessem ter apenas PPCI simplificado. Pelo projeto, ginásios e CTGs seriam beneficiados. O projeto foi vetado pelo então governador Tarso Genro. O veto tem de ser apreciado pela Assembleia a partir de 1º de fevereiro, pois tranca a pauta.
ENTENDA CADA PASSO PARA A LEI FUNCIONAR
Lei
- A legislação diz os itens que os estabelecimentos devem ter. Por exemplo: extintor.
Regulamentação
- Diz que o extintor vai ser do tipo e instalado da forma que a Resolução Técnica determinar.
Resolução Técnica
- Detalha o tipo de extintor, quantidade e distâncias para ser instalado em cada estabelecimento, por exemplo. É a resolução que dá todas as orientações sobre cada item previsto na lei.
- A lei Kiss, aprovada e sancionada em dezembro de 2013, ainda não tem resoluções técnicas próprias valendo. Ela funciona com remissões a resoluções já usadas à época da tragédia (normas brasileiras) ou a resoluções dos bombeiros de São Paulo.
DEMANDA PARA ANÁLISE DE PPCIs
- A nova lei criou exigências sem que o efetivo dos Bombeiros aumentasse. Com isso, é maior o tempo de análise de documentos e vistorias.
- Em Porto Alegre, para quem já tinha PPCI e precisava apenas renovar alvará, o prazo era de 20 dias. Agora, é de dois meses. Para quem nunca teve PPCI, o prazo que era de 20 dias passou para seis meses.
A LEI NACIONAL
- Em 29 de janeiro de 2013, foi anunciada criação de uma comissão na Câmara dos Deputados para discutir a legislação sobre prevenção a incêndio.
- Em julho de 2013, o projeto de lei 2.020/07, com alterações, foi proposto pela Câmara e aprovado em plenário em abril de 2014.
- Tramita no Senado Federal desde 16 de abril de 2014.
- Em 13 de novembro, foi para a Comissão de Direitos Humanos e, em 10 de dezembro, aprovado.
- Agora, aguarda inclusão em pauta para votação no plenário.
- Se aprovada como está, a lei deve interferir na nova legislação estadual: uma vez que prevê que a regulamentação deve ser feita com base em normas brasileiras e não estaduais. Dessa forma, todo o trabalho que está sendo feito no Estado para aprovação de resoluções seria perdido.
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