ZERO HORA 22 de janeiro de 2015 | N° 18050
HUMBERTO TREZZI*
Eu vi um bombeiro chorar. Foi em Santa Maria, na semana passada, às vésperas dos dois anos da maior tragédia gaúcha, o incêndio na boate Kiss. O sargento embargou a voz e fechou o semblante, deixando as lágrimas escorrerem pelo rosto. Queria desabafar aos jornalistas.
Chorou pelas 242 vítimas, que não pôde salvar. Por nunca ter recebido agradecimento. E por ter sido um dos crucificados no festival de irregularidades que marcou essa tragédia.
O bombeiro que chorou não é um dos que vistoriaram e liberaram a boate para funcionar, mesmo ela sendo uma armadilha, um bloco de concreto com uma só saída que virou túmulo de centenas. Não. O sargento estava na linha de frente do combate ao fogo, mas acabou sob suspeita de não ter feito tudo o que podia. De não entrar na boate nem ter impedido que voluntários corressem risco de vida (alguns morreram ao ingressar no inferno da Kiss).
Você entraria, sabendo que ninguém saía consciente dali? Com a fumaça tóxica desencadeando tosse e atordoando quem a desafiava? Sei bem como é, fui treinado em brigada de incêndio.
Alguns bombeiros entraram em meio ao breu e à fumaceira, vi os vídeos. Outros ficaram no apoio, fornecendo água. Faltou equipamento para tanta tragédia. Era época de férias e o contingente estava reduzido. Humanos, os bombeiros não barraram voluntários: ficaram gratos diante de tanta ajuda inesperada e bem-vinda. Não sabiam até que ponto a Kiss era arapuca mortífera.
O militar que entrevistei abriu buracos no prédio, foi engolfado pela nuvem química e ainda ajudou a carregar corpos. Dias depois, ao ouvir na TV que bombeiros se omitiram no cumprimento do dever, o filho do sargento – esse do desabafo – perguntou:
– Pai, você deixou mesmo aquelas pessoas morrerem?
Então o sargento viu que de herói virara anti- herói. Chorou várias vezes desde então. Mesmo depois de ser inocentado, quando o Ministério Público considerou que ele não cometera delito. Faltava o desagravo da opinião pública, que aqui está. Isso não significa igualar todos os bombeiros. Alguns deixaram que a danceteria funcionasse, mesmo sem saídas de emergência, com espumas inflamáveis inadequadas, janelas vedadas, extintores vencidos e luzes de emergência apagadas. Outros tinham firmas para fazer laudos técnicos a quem pagasse (a Kiss pagou e permaneceu aberta). Esses ainda devem muita explicação. Especialmente aos familiares dos 242 mortos.
*Jornalista, repórter especial de ZH
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