Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

DOIS ANOS DE BOATE KISS, SEQUELAS E LENIÊNCIA DA JUSTIÇA

G1 FANTÁSTICO Edição do dia 25/01/2015

Sobreviventes e parentes das vítimas da Boate Kiss vivem com sequelas. Sem que haja nenhuma condenação dois anos depois do incêndio, a queixa maior é pela demora do julgamento.



As sequelas de uma tragédia. O Fantástico foi a Santa Maria, no Rio Grande do Sul, reencontrar os sobreviventes do incêndio da Boate Kiss.

São mais de 800 pessoas que carregam, no corpo e na alma, o trauma daquela noite. A maioria vive escondida e se recusa a pedir ajuda. Na terça (27), uma das maiores tragédias da história do Brasil completa dois anos: 242 jovens morreram e até hoje ninguém foi condenado.

“A impressão que eu tenho é que eu vou olhar pra rua e vou ver ela chegando,” diz Marilene dos Santos, mãe de vítima do incêndio da Boate Kiss.

Como se não bastasse a falta, o trauma.

Essa outra mãe, Teresinha Chagas, conta:
“Eu não consigo dirigir mais no movimento, quando tem muito carro. Se eu vejo barulho de sirene, ambulância, alguma coisa, eu passo mal.”

Os pesadelos.

Juliano, sobrevivente: São uns sonhos bem fortes assim, não acreditava naquilo ali.
Fantástico: Sonhos envolvendo morte e incêndio?
Juliano: Morte. Eu vi coisa que eu não vi na hora lá.

Os ecos de uma noite terrível: “As vozes, as vozes. De pedido de ajuda, de choro, enfim, de desespero”, conta Camille Kirinus Reghelin.

“A pessoa pode ter uma revivência, um flash back dessas alucinações. São vozes que ficaram na memória de forma traumática e que, em determinados momentos, ainda a atormentam”, diz o psiquiatra Gustavo Salvati.

Dois anos depois, uma fachada lacrada e vigiada é apenas a lembrança mais visível das dores de que a cidade ainda tenta se curar.

“Esses filhos, esses jovens, não eram filhos apenas destas famílias, eram filhos e habitantes de Santa Maria. Eles estudavam na cidade, eles locavam imóveis, eles faziam compra no comércio”, comenta o psicanalista Volnei Antônio Dassoler.

Foi na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Um domingo. A maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. O incêndio da Boate Kiss matou 242 jovens.

No mesmo dia, em meio ao caos e à comoção, começava a ser montado um atípico serviço de saúde em que os profissionais tinham de lidar com sua própria perplexidade.

“Quando aconteceu o desastre, nós nos vimos atordoados sem ter muitas direções de como seguir”, lembra Volnei.

A experiência acumulada por centenas de profissionais em dois anos de atendimento a parentes de vítimas e sobreviventes resultou no Acolhe, um serviço público de saúde mental como nenhum outro.

“A gente tinha pouca literatura sobre um desastre humano. Foi um conhecimento construído a partir da prática de outras experiências”, conta o psiquiatra Gilson Mafacioli.

Entre as estratégias, reuniões informais de parentes das vítimas, onde há busca de conforto em quem se reconhece na mesma dor.

“Eu fico com saudades de estar com eles. Como se eles me aproximassem do meu filho até mesmo”, diz Marise Dias, mãe de uma vítima.

Sem que haja nenhuma condenação dois anos depois do incêndio, a queixa maior é pela demora do julgamento.

“Nós somos seres iguais e individuais. Cada um tem sua crença, cada um pensa de uma forma. Um quer Justiça, o outro não quer. Ao mesmo tempo que você não quer Justiça, você não pode dizer que eu não posso procurar. Sou um cidadão, pago minhas contas, não devo nada a ninguém. Então eu vou cobrar Justiça”, explica o pai de uma vítima, Sérgio da Silva.

Apesar disso, o Acolhe reúne pequenas vitórias entre os quase mil pais, mães e irmãos das vítimas.

“Conseguiram retomar sua rotina. Trabalham, estudam, viajam, namoram, saem, criam seus filhos, casam. Mas isso ainda é feito, por muitos, com um certo peso, com um certo fardo”, conta Volnei.

O fardo de Sérgio é brigar por Justiça. Consertar carros ajuda a ocupar a cabeça. Mas a pergunta de um cliente o tirou do sério: “Aonde é que nós queríamos chegar com isso? Eu disse assim: Se tu tivesses perdido um filho, tu ias saber, eu disse para ele”, conta Sérgio Soares.

A última lembrança da filha são as fotos que ela mesma tirou dentro da boate minutos antes de morrer. Sérgio e a mulher não abrem mão da visita ao Acolhe.

Fantástico: Toda semana?
Marilene de Oliveira dos Santos: Toda semana. Se não fosse, para mim, psicólogo e psiquiatra, acho que eu não tava aqui.

Livrar-se da sensação de apatia exigiu esforço tremendo de Teresinha Chagas: “Parece que eu tava dentro de uma caixa de vidro. Eu via as pessoas, eu via tudo passar, e parecia que eu não tava ali, dentro do mundo.”

Com a ajuda do psiquiatra, ela passou a lidar de outra forma com a memória do filho:

“Eu estou pela metade de mim. Mas eu acho que eu ainda estou aqui, eu estou vivendo, eu preciso fazer alguma coisa por mim, pela minha vida, pela vida das pessoas que estão ao meu lado.”, resume.

Mas se os parentes das vítimas procuram ajuda, falar com um sobrevivente é tarefa dificílima.

Manoela Lüdtke: Sim, eu sei que é difícil para vocês. Então está bem, não tem problema. Um abraço então, até sexta. Um abraço. Tchau.
Fantástico: Ele não quer?
Manoela: Não. Ele não quis. Ele disse que é uma história bem difícil pra família dele e ele prefere não se expor agora.

Alguns recebem o Fantástico, sob condições.

Fantástico: Ela está aí?
Mirela Sanfelice, psicóloga: Sim.
Fantástico: Ela aceita conversar com a gente?
Psicóloga: Aceita, mas sem a câmera.
Fantástico: Ela não quer gravar?
Psicóloga: Não.
Fantástico: Posso entrar?
Psicóloga: Sim.

No consultório, uma moça com queimaduras severas pelo corpo diz que prefere o silêncio.

“Não se mostram, não falam que são sobreviventes, e eles não conseguem se expor na cidade. Porque, às vezes, as perguntas, ou a comoção, ou os colocarem no lugar de vítima acaba sendo muito invasivo”, explica a psicóloga Maria Luiza Pacheco.

A estratégia do Acolhe foi mapear todos os sobreviventes: 866 foram identificados; 469 foram localizados. Ainda que não queiram ajuda, o serviço já sabe onde cada um deles mora. Se mudarem de ideia, podem ser imediatamente atendidos pelas Unidades de Saúde Básica de cada bairro.

Essa equipe de agentes de saúde pertence a uma unidade de atendimento da periferia de Santa Maria responsável pelo acompanhamento de dez sobreviventes. O papel dela é ver como eles estão. É um trabalho difícil, que encontra muita resistência, mas a orientação é respeitar o direito que essas pessoas têm de, inclusive, não se submeter a tratamento algum.

Mas se há recusa, há também adesão e cura. Juliano e a namorada estavam na boate na noite do incêndio. Cada um encara de um jeito.

Fantástico: Você acha que ela lida com isso tão bem quanto você?
Juliano da Silva, sobrevivente: Olha, eu acho, é que ela é muito fechada, sabe? Ela não é muito de falar, ela não gosta. Nem de ir nesses locais, assim, às vezes tem missa, dos familiares que perderam, ela não gosta de ir porque é triste.

Juliano estuda e trabalha. Passou quase dois meses no hospital. A terapia o fez aceitar as queimaduras de seu corpo.

Fantástico: Tem gente que não gosta de mostrar. Muitos dos queimados botam camisa de manga comprida. Você não. Está usando, normal, manga curta.
Juliano: É, eu até tenho a opção de fazer a cirurgia pelo hospital lá. Mas eu optei por não fazer. É uma opção de estética. Não me incomodo nada.

Camille Kirinus Reghelin ficou em coma e teve lesões pulmonares. “Existe um divisor de águas, da Camille antes e depois da Kiss”, diz.

A Camille de depois sente até hoje os efeitos da fumaça tóxica. “Deixa eu respirar um pouquinho”, pede.

Mas o pior para ela, era enfrentar o pânico de lugares fechados. “Eu queria interromper aquele sofrimento. E eu reconheci que sozinha eu não ia conseguir”, conta.

Procurou o Acolhe, fez terapia. Mas o grande teste foi a câmara escura de uma aula da faculdade de biomedicina.

“Eu fiquei com muito medo de entrar. Mas eu pensei: se eu não encarar isso eu não vou seguir adiante. E eu pensei: a minha vida não pode parar. Lá dentro, nos primeiros momentos, eu senti todo aquele medo, aquele pavor. Mas depois foi amenizando, e eu consegui racionalizar, consegui pensar: não, eu estou na minha aula, eu quero me formar, e eu preciso fazer essa disciplina. E eu enfrentei. E aquilo me ajudou muito. E aquilo, eu decidi, depois que eu saí daquela aula, eu decidi que eu ia fazer isso com tudo, todos os desafios que viriam. Encarar, fechar os olhos e enfrentar”, conta Camille.

Na faculdade inteira, teve a solidariedade dos colegas, até o dia da formatura.

“Foi muito emocionante! Eles foram mais que amigos, foram irmãos”, conta Camille.

Camille já está trabalhando como biomédica. A história dela e dos outros pacientes do Acolhe vão virar um livro que será publicado no fim do ano e que vai servir de referência para tratamento de vítimas de tragédias.

“Como se trabalhar, como se produz conhecimento, e como se produz vida a partir de algo tão difícil que é a morte,” resume a psicóloga Maria Luiza Pacheco.

“O que aconteceu ninguém vai esquecer. As perdas, as pessoas, não, isso nunca será esquecido. Mas o sentimento que tu tens pode ser transformado,” conclui Camille.

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