VEJA ONLINE 27/01/2015 - 07:49
Santa Maria. Tragédia na boate Kiss: dois anos depois, legislação não avança. E o trauma permanece. Pesquisa revela que brasileiros se sentem inseguros em boates – e não sabem como agir em incêndios. Legislativo, porém, ainda não alterou normas do setor
Eduardo Gonçalves
Familiares e amigos das vítimas do incêndio na Boate Kiss, saíram pelas ruas da cidade em caminhada até o Ministério Público, pedindo justiça pelas 242 mortes - Nabor Goulart/Agência Freelancer/VEJA
Superlotação, vistorias pendentes, alvarás vencidos, extintores quebrados, revestimento acústico altamente inflamável, ausência de sinalizadores que indicassem rotas de fuga e barras de ferro próximas à saída de emergência. A sequência de irregularidades acabou por culminar naquela que se tornaria a quinta maior tragédia da história do país: há exatos dois anos, o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, a 300 quilômetros de Porto Alegre, matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos. Passados mais de 700 dias, a legislação de prevenção a incêndios continua a mesma da época. Nos dias que se seguiram à tragédia, projetos de lei foram propostos no Congresso Nacional, numa tentativa de dar uma resposta imediata à população comovida com a catástrofe – nenhum deles, contudo, saiu do papel.
A lembrança das cenas de destruição na cidade gaúcha é ainda um trauma para muitos. Pesquisa realizada em dezembro pelo instituto internacional KRC Research com 1.001 brasileiros mostra que, para 72% dos entrevistados, as medidas de prevenção contra incêndio implantadas em casas noturnas são insuficientes – e 45% têm mais receio de frequentar boates hoje do que antes da tragédia. A pesquisa foi realizada via internet com homens e mulheres com idade entre 18 e 64 anos, e mostra também que 92% das pessoas não se sentem mais seguras hoje em casas noturnas do que há dois anos. Outros 81% mudaram seu comportamento em locais públicos após a tragédia.
O levantamento revela também que, apesar da preocupação, metade dos entrevistados não saberia como agir em uma situação semelhante à da boate Kiss. “Isso é muito preocupante. Parte dos entrevistados não sabia se teria que seguir pelas rotas de fuga. Outros relataram que voltariam ao local para buscar pertences, como celulares e computadores. O correto seria que eles saíssem o mais rápido possível e deixassem que pessoas capacitadas com equipamentos adequados voltassem para fazer esse tipo de resgate”, afirmou César Miranda, diretor de segurança contra incêndio para a América do Sul da multinacional de materiais elétricos Honeywell, que encomendou a pesquisa.
Ainda de acordo com o estudo, 67% dos entrevistados afirmaram não ter participado de nenhum treinamento contra incêndio em seus locais de trabalho. Na tragédia de Santa Maria, a maioria das vítimas morreu intoxicada porque não conseguiu escapar rapidamente da boate. Muitos tentaram sair, em vão, pela janela do banheiro e outros morreram ao retornar à danceteria para resgatar conhecidos. O incêndio, desencadeado pela queima de fagulhas de um sinalizador, transformou a casa noturna em uma verdadeira câmara de gás.
Para a maioria (cerca de 90%) dos entrevistados, a responsabilidade pela prevenção de incêndios é de competência dos governantes, donos de casas noturnas e bombeiros. Miranda avalia que existem “três pilares básicos” para reduzir as possibilidade de uma tragédia do tipo em lugares fechados: “Ter uma legislação mais moderna e atualizada; estabelecer normas técnicas bem definidas, como o tipo de equipamento e o lugar onde ele deve ser instalado; e educar e treinar a população. Apesar de alguns passos já terem sido dados, ainda há muito a ser feito”, avaliou o especialista.
Legislação - Logo no mês seguinte ao incêndio, em fevereiro de 2013, foi criada uma comissão externa na Câmara dos Deputados para acompanhar as investigações e propor medidas que evitassem a ocorrência de um novo caso do tipo. Um projeto de lei, que endurecia a fiscalização a casas de show e boates e tramitava na Casa desde 2007, foi proposto pelo grupo no mesmo ano. No entanto, só foi aprovado em abril de 2014. Atualmente, o projeto tramita no Senado, onde aguarda a disposição do presidente da Casa, Renan Calheiros, em colocá-lo na pauta para votação. Entre outras medidas, o texto responsabiliza por improbidade administrativa os servidores municipais que forem omissos na inspeção das boates, criminaliza os donos de casas noturnas que não respeitarem as determinações dos gestores municipais e do Corpo de Bombeiros, e proíbe a utilização de comandas — um dos pontos que mais sofre resistência do empresariado do ramo.
Relator do projeto, o senador Paulo Paim (PT-RS), afirmou, por meio de sua assessoria, que já pediu a Calheiros celeridade no processo, mas reclamou do "lobby contrário" movido pelos proprietários de casas de show, que têm tentado barrar a chancela da medida. Se for aprovada sem alterações no Senado, a PL seguirá para sanção da presidente Dilma Rousseff. Em meio à comoção provocada pelo segundo aniversário da tragédia, o senador prevê que a medida seja votada no início de fevereiro, quando os parlamentares voltam do recesso. Enquanto isso, a população continuará a se sentir insegura em casas noturnas.
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