Fotos: Yan Boechat“Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário.” O romance Vidas Secas de Graciliano Ramos captou a alma de sofrimento do sertanejo no fim da década de 30, quando o Nordeste sofria com uma das oito maiores secas registradas no século XX. Setenta e cinco anos depois, 12 milhões de brasileiros de 1.415 municípios do semi-árido brasileiro ainda estão presos à imagem de terra arrasada, vendo os corpos ressecados de seu gado pregados no chão.
TRISTE REALIDADE
No município de Jardim, no Ceará, fazendeiro
perdeu 300 cabeças de gado em razão da seca
Algumas regiões sofrem um ciclo de estiagem que já persiste há mais de um ano. O desenho da paisagem permanece o mesmo, mas estudos de migração populacional realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que a figura dos retirantes, eternizada pelos personagens de Vidas Secas, quase não existe mais.
Programas sociais como o Bolsa Família e de socorro e incentivo a pequenos produtores do semi-árido tiveram sucesso em fixar a população em terras com clima de deserto. De acordo com o pesquisador Helder Araújo, do Ipea, há dez anos a taxa de migração interna era de 5,7%. Hoje é de 4,5%. Alguns municípios do Nordeste que tiveram sucesso com empreendimentos de irrigação, como Petrolina (PE) e Barreiras (BA), até atraíram moradores de outros estados. Mas este cenário positivo não se repete nas obras de infraestrutura. Todos os anos, o governo federal coloca à disposição das autoridades locais aproximadamente R$ 9 bilhões para combate à seca, em programas de gestão hídrica, construção de barragens, canais e ampliação de perímetros irrigados. E todos os anos a maior parte desse dinheiro fica retido nos cofres da União, pois os projetos municipais e estaduais não têm qualidade mínima para atender as exigências – algumas razoáveis, outras puramente burocráticas – de Brasília. Desde julho do ano passado, 34 relatórios sobre a situação das regiões atingidas pela estiagem foram devolvidos aos prefeitos por falhas técnicas e o repasse de recursos foi adiado.
EM SERRITA, PERNAMBUCO, O ÚLTIMO RECURSO:
para alimentar o gado, família tira o espinho do mandacaru
Outra parte do dinheiro se perde em desvios ligados a conhecidos esquemas de corrupção. A mais ambiciosa obra em áreas de estiagem no Brasil – a transposição do Rio São Francisco – é um bom exemplo da situação. Em 2009, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva empreendeu uma caravana para visitar as obras da transposição, orçada em R$ 4,5 bilhões. Quatro anos depois, o custo do empreendimento subiu para R$ 8,4 bilhões e a transposição continua no papel. Segundo auditoria oficial, cinco dos 14 lotes licitados da obra apresentam fraudes na aplicação dos recursos públicos.
Neste ambiente, as ações emergenciais cumprem uma função dupla. São obviamente eleitoreiras e humanamente indispensáveis. O governo federal já investiu R$ 800 milhões na compra de cisternas, recipientes que comportam até 16 mil litros de água e podem abastecer uma família por seis meses. Sem critérios claros para a distribuição das cisternas, elas se tornaram até um instrumento para a especulação imobiliária. No Distrito de Rajada, Zona Rural de Petrolina (PE), um terreno de 30 metros quadrados acumula três cisternas, uma fartura que é sinônimo de privilégio e desperdício. Em determinadas regiões do Maranhão, não é possível instalar porque as casas não têm telhados de cerâmica, revelou um técnico da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, em reunião com a bancada de deputados maranhenses. “O Maranhão foi contemplado com 4.300 cisternas, mas apenas duas mil foram instaladas. A população é tão pobre que as cisternas serão devolvidas para o ministério”, conta o deputado Simplício Araújo (PPS-MA).
Mesmo numa emergência tão grande, a vida não deixa de ser como sempre foi. Quem pensa que a palavra dificuldade sempre rima com solidariedade pode se surpreender. Não faltam denúncias de troca de favores entre chefes políticos locais. Em Delmiro Golveia (AL), o prefeito Luís Carlos Costa se negou a contratar um empresário selecionado pela Defesa Civil porque ele faria parte do grupo político adversário. Em Petrolina, a população denunciou a existência de pelo menos sete carros-pipas fantasmas. Eles constavam na prestação de contas da prefeitura, mas não apareciam nas comunidades.
RETRATOS DE UM FLAGELO:
em Salitre, no ceará, açude seca (acima), enquanto árvore assume aspecto de um cacto
Na construção das barragens – método de armazenamento da água da chuva – os exemplos de corrupção e mau uso do dinheiro público se repetem. Por conta do alto nível de evaporação, o retorno em gestão de recursos hídricos não representa sequer 20% do dinheiro investido para a construção das estruturas. Somente este ano, o Ministério Público de Alagoas, Pernambuco e Ceará abriram seis ações para investigar desvios de recursos na construção de barragens. O Tribunal de Contas da União (TCU) também investiga o sumiço de R$ 800 mil destinados a obras da adutora do Agreste, entre Caruaru e Santa Cruz do Capiberibe (PE). A Polícia Federal, por sua vez, descobriu esquema que desviou R$ 48 milhões em convênios.
VIDAS SECAS
Moradores do município pernambucano de Serrita perderam quase todo o gado,
em decorrência da avassaladora estiagem. Para sobreviver, dependem
quase exclusivamente da água fornecida pelo Exército
A dificuldade do País para enfrentar a seca é histórica e se arrasta por anos. As ideias se sucedem, os planos se multiplicam, mas raras vezes se consegue levá-las adiante de forma coerente. A miséria pode ser amenizada, e é bom que isso aconteça. Mas a seca, desde o início de século XXI, mostra um drama que se repete, como se viu há poucos dias. Apresentado há cinco anos, o projeto 2.447/07, que institui a Política Nacional de Combate às Secas, passou um longo período esquecido. Na semana passada, deputados nordestinos tentaram sensibilizar os colegas para tratar do assunto. Mas a proposta não foi votada sob um argumento cuja lógica é difícil de ser desafiada: a demora para a discussão foi tão grande que já era tarde demais para se fazer alguma coisa. Para o professor de engenharia florestal da Universidade de Brasília, Eraldo Matricardi, a falta de orientação à população é o principal obstáculo ao fim dos grandes transtornos por longos períodos de estiagem. Para ele, técnicas simples de sobrevivência, que possuem baixo custo e seriam de grande utilidade, nem sequer são repassadas aos moradores de regiões atingidas. “O poder público não se preocupa em ensinar estratégias fáceis, como colocar garrafas enterradas para evitar a mortalidade das plantações. Técnicas simples de irrigação também não são ensinadas e as populações continuam dependendo dos projetos megalomaníacos dos governos”, avalia o professor.
ESCASSEZ DE COMIDA:
Galho da árvore vira opção de alimento no sertão do Ceará