Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

CASO KISS - A RESPONSABILIDADE DO DONO E DAS AUTORIDADES

Duelo de responsabilizações marca depoimento de Kiko Spohr em Santa Maria Germano Rorato/Agencia RBS

ZERO HORA 02 de dezembro de 2015 | N° 18373


HUMBERTO TREZZI E LIZIE ANTONELLO

CASO KISS. As versões de um acusado de 242 mortes


EM UMA SESSÃO de oito horas e meia, Elissandro Spohr, o Kiko, dono da boate onde aconteceu a tragédia, respondeu a perguntas



Mais magro, pálido e com visual abatido, Elissandro Spohr, o Kiko, pivô da maior tragédia da história gaúcha – a morte de 242 jovens em um incêndio na boate Kiss –, depôs ontem pela primeira vez ao Judiciário. Ele era um dos donos da danceteria e foi interrogado em Santa Maria, onde ficava seu estabelecimento. De camisa social para fora da calça jeans, tênis, olheiras e barba por fazer, avisou logo nas primeiras palavras: “vou falar tudo”.

E cumpriu a promessa. Em audiência de oito horas e meia, só fez pausa para ir duas vezes ao banheiro, tomar uma taça de café preto e muita água – foram três copos de mineral. Pediu compreensão aos pais das vítimas – dezenas deles lotavam o salão do júri, trajando camisetas com fotos dos filhos mortos. E desmoronou quando o juiz Ulysses Louzada lhe perguntou: o que motivou o fogo?

Ao fazer isso, o magistrado que preside o interrogatório ecoou a maior angústia dos familiares dos 242 mortos na boate Kiss. Fez sua a voz deles. Aí, Kiko respondeu em meio a uma crise de choro:

– O que causou o fogo foi a brincadeira errada. Foi um erro o Marcelo (de Jesus dos Santos, vocalista de uma banda) ter usado o artefato luminoso que causou o incêndio. Mas ele não queria matar ninguém. Com certeza, não. Ninguém queria – disse Kiko ao juiz Louzada, sem conter as lágrimas.

Eram 15h15min de uma longa e abafada tarde no Fórum santa- mariense. O choro de Kiko provocou murmúrios entre os parentes de vítimas.

– Não aguento mais ouvir tanta mentira – disse uma mulher, familiar de um dos jovens mortos no incêndio da Kiss.

Disposto a convencer a plateia, Kiko continuou:

– Não queria que isso acontecesse. Nunca imaginei que fosse acontecer, que uma banda fosse acender o artefato e o incêndio acontecer. Não fui lá pular com o negócio na mão. Talvez, devesse ter visto algo que não vi. Quis fazer o melhor – analisou.

PREFEITURA E MP ALFINETADOS POR KIKO


O réu aproveitou para alfinetar as autoridades, entre as quais Ministério Público, prefeitura e bombeiros, que permitiram que a boate estivesse funcionando no período em que se incendiou.

– Tudo o que foi pedido, fiz. Me deram documentação em 2009, me deram em 2011. Vão dizer que comprei, que corrompi? Não tinha rolo com ninguém. É como se eu tivesse construído a boate e me concedido os alvarás. Não, me deram permissão. Fiscalizaram. Tava tudo ok, e, aí, aconteceu o acidente. Acabou que deu no que deu. Só eu sento aqui para explicar? É complicado. Junto comigo também deveria ter bem mais gente dando explicação. O senhor não deveria ter aceitado denúncia só contra quatro bocós – disse Kiko ao juiz.

Outros dois réus por homicídio, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão (integrantes da banda Gurizada Fandangueira), acompanharam a sessão. Mauro Hoffmann, sócio de Kiko e também réu, não foi.


CASO KISS - O que disse o réu

AS LICENÇAS DA KISS

Conseguir licença para funcionar era um horror, por causa da burocracia.

Quando comecei a fazer festas, os vizinhos nem me cumprimentavam, me odiavam.

Se lá atrás as autoridades tivessem fechado a Kiss, eu, boca-aberta, não teria comprado a boate.

Os guarda-corpos eram para evitar que alguém entrasse armado e matasse alguém. Não é como tão dizendo, para evitar saída de quem não pagasse. É questão de segurança. Banco não tem porta giratória?

Quem sabe o que fiz não foi suficiente. Achava que era seguro. Tinha ok de prefeitura, Ministério Público, bombeiros.

SURPRESA COM O INCÊNDIO

Tinha saído para resolver um problema. Entrei no prédio e alguém gritou: “Fogo, fogo!”. Olhei para palco e já estava uma função ali. Muita gente começou a vir e era uma barulheira. Saí pela porta dos fumantes.

Ninguém gritou na hora do incêndio: abre a porta. Fui eu quem abriu a primeira porta do fumódromo.

No início, pensei que era briga. Tinha ido apartar uma lá fora. Quando cheguei de volta, na porta, vi o tufão de fumaça. Olhei para o palco e os guris já estavam em função de extintor. Vi que era coisa séria. Os seguranças não seguraram o pessoal, não tinha como segurar. Ninguém seguraria.

Acho que se bombeiros tivessem mais equipamentos, poderiam ter salvo mais pessoas.

A SUA RESPONSABILIDADE

Posso ter parcela de culpa, tudo bem. Mas não sou assassino.

Se tenho de responder pelo que aconteceu, outros também, até antigos donos. Não é justo que seja só eu.

Não queria que acontecesse. Quem sabia que essa espuma ia dar esse problema? Onde diz que é proibido colocar espuma? Não sabia que alguém iria lá e botar fogo.

Mauro era meu sócio, mas quem fazia as coisas era eu. Ele cuidava da boate Absinto, eu cuidava da Kiss. E assim foi. A Kiss não era essa bagunça que falam. Tinha responsável pelo bar, pelo financeiro, por tudo. Contabilidade semanal. Falam que o Mauro fez obras. Quem conhece ele, sabe que não é de carregar saco em obra.





Kiko defenderá pais de vítimas


Uma ação judicial que teve como origem o incêndio da Kiss será objeto de uma situação incomum. Pela primeira vez desde o acidente, devem ficar do mesmo lado do processo parentes das vítimas e os principais acusados de serem responsáveis pelas mortes.

É que alguns pais de jovens mortos na Kiss estão sendo processados por calúnia pelo Ministério Público. Eles disseram que um promotor de Justiça permitiu que a boate ficasse aberta, mesmo com todos os defeitos que acabariam por gerar a mortandade: uma só saída do prédio, barreiras de metal próximas às portas (que funcionaram como armadilhas), espuma isolante de ruído (que se revelou tóxica e mortífera ao pegar fogo). No contra-ataque, o promotor moveu ação contra Flávio Silva (presidente do Movimento do Luto à Luta) e integrantes da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia em Santa Maria.

Silva arrolou como testemunha um dos donos da boate Kiss, Kiko, e seu advogado, Jader Marques. Em entrevista a Zero Hora, Kiko disse que a boate funcionava naqueles termos porque o MP permitiu e fez acordo nesse sentido.

– O Kiko vai mostrar à Justiça que meu cliente, pai de vítima, está certo: um promotor permitiu que a boate funcionasse. Isso é verdade e não calúnia – resume Pedro Barcellos, advogado de Flávio Silva.



segunda-feira, 19 de outubro de 2015

RS SOB MAU TEMPO CHEIA HISTÓRICA




ZERO
HORA 19 de outubro de 2015 | N° 18329


Porto Alegre calcula os prejuízos



PREFEITURA DECRETOU SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA em razão dos temporais que atingiram a Capital nos últimos dias. Nível do Guaíba, que chegou a 2m94cm e levou ao fechamento de comportas, baixou e tendência é de que continue diminuindoDepois de decretar situação de emergência, na manhã de ontem, o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, está de olho na calculadora. O município precisa comprovar um índice mínimo de prejuízos estipulado pelo governo federal para que o decreto, sem precedente na história recente da Capital, seja homologado pela União, e os recursos possam ser repassados. A contabilidade dos danos deve sair nesta semana.

A prefeitura deve comprovar prejuízos públicos que somem pelo menos 2,77% da receita corrente líquida do município, como danos em escolas, hospitais e rodovias, ou privados que atinjam pelo menos 8,33% dessa receita, como danos em casas, no comércio ou na agricultura. Devido à cheia histórica do Guaíba – que atingiu a marca de 2m94cm no sábado, a maior em 74 anos – e ao temporal da última quarta-feira – com ventos em torno de 100 km/h que destelharam prédios e derrubaram dezenas de árvores e postes –, Fortunati avalia que os índices serão atingidos. Há, ainda, previsão de chuva a partir de hoje na Capital (leia mais na página 20).

ROUPAS E COLCHÕES NÃO SÃO MAIS NECESSÁRIOS

Além dos alagamentos em residências, que castigaram principalmente a região das ilhas, 10 escolas e quatro unidades básicas de saúde foram danificadas. Apenas no Tesourinha, são 230 desabrigados, a maioria da Ilha dos Marinheiros. Outras pessoas que tiveram de abandonar suas residências estão em uma paróquia. No sábado, equipes do Exército auxiliaram os moradores da região. Conforme a Defesa Civil do município, doações de roupas e colchões não são mais necessárias.

– O que estamos vendo é uma situação de emergência, de forma indiscutível, mas temos de comprovar. Caso contrário, o decreto se torna inoperante – disse Fortunati.

Para os moradores prejudicados, a homologação garante o saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o repasse temporário de valores via Bolsa Família, para a reconstrução das casas e compra de móveis e eletrodomésticos perdidos devido ao alagamento. Já para o Executivo, a aprovação do decreto garante o repasse de verbas para a reconstrução dos espaços públicos.

No sábado, pela segunda vez em menos de uma semana, o Guaíba atingiu proporções históricas. A água chegou a passar por baixo da comporta do portão principal do cais e sacos de areia foram usados para bloquear a passagem para a Avenida Mauá. O nível só começou a baixar na manhã de ontem, em razão da vazão menor dos rios e da mudança na direção do vento.

A elevação do Guaíba também deixa moradores da zona sul da Capital apreensivos. Durante a madrugada de sábado, as águas começaram a invadir ruas e pátio de residências, provocando alagamentos. Curiosas, muitas pessoas saíram para fotografar as vias que ficaram tomadas pela água.




Mais de 35 mil clientes seguem sem luz no RS

PROBLEMAS ESTÃO CONCENTRADOS na área da AES Sul, principalmente nas regiões Central e Metropolitana. Consumidores reclamam no InteriorApós os temporais da semana passada, 37 mil clientes ainda permaneciam sem energia no Rio Grande do Sul até ontem. A situação é mais grave nos municípios atendidos pela AES Sul, onde 35 mil unidades consumidoras continuavam sem luz.

Segundo a empresa, não há prazo para o restabelecimento do serviço e os problemas ocorrem em toda a área de concessão. Ainda de acordo com a distribuidora, Santa Maria, Cachoeira do Sul, Canoas, Alegrete, São Sepé e São Francisco de Assis são algumas das cidades onde os transtornos são maiores. No sábado, eram 80 mil clientes no escuro. No pior momento, 490 mil consumidores da AES Sul ficaram sem energia. A companhia diz ter 1,5 mil profissionais tentando normalizar o fornecimento.

Em Santa Maria, eram cerca de 9 mil clientes ainda estavam sem energia elétrica ontem. Segundo a AES Sul, os principais danos são postes quebrados, cabos partidos, galhos e árvores caídos, objetos arremessados pelo vento e danos causados por raios. Equipes de outras regiões estão auxiliando no atendimento. A empresa também informa que solicitou o suporte de equipes de RGE e CEEE para colaborar no restabelecimento do serviço.

Ontem à tarde, moradores dos bairros Itararé e Salgado Filho, em Santa Maria, interromperam duas ruas e queimaram galhos e móveis velhos em protesto pela falta de luz. No sábado, a BR-392 próximo ao bairro Passo das Tropas, na mesma cidade, foi bloqueada por manifestantes durante quase quatro horas. Houve congestionamento de mais de três quilômetros na rodovia, que liga o norte do Estado e Santa Maria com Pelotas e Rio Grande. Os moradores da Vila Ipiranga reclamavam da demora no retorno da energia elétrica e exigiam a presença de uma equipe da concessionária para a liberação do trânsito.

Na área de concessão da CEEE, restam 2 mil clientes, moradores das ilhas em Porto Alegre e Eldorado do Sul sem luz. No sábado, eram em torno de 4 mil. Conforme a empresa, a região está sem energia por medida de segurança em função dos alagamentos. O serviço deve voltar quando a água baixar. A RGE informa que normalizou o fornecimento de luz no sábado.

NÚMERO DE DESABRIGADOS NO ESTADO CAI PARA 7 MIL PESSOAS

O último levantamento da Defesa Civil, divulgado ontem pela manhã, apontou que 7 mil pessoas seguiam fora de casa devido aos temporais no Estado, principalmente na Região Metropolitana. No total, cem municípios foram afetados por chuva, granizo e vento, com quase 35 mil casas atingidas – 26 decretos de situação de emergência chegaram ao governo gaúcho.

Ontem, o governador José Ivo Sartori sobrevoou áreas atingidas pela enchente na Região Metropolitana e vistoriou a central de doações, localizada no centro administrativo. O ministro da Previdência Social, Miguel Rossetto, visitou três cidades que tiveram prejuízos com os temporais.

sábado, 25 de julho de 2015

SERVIÇOS DEFICIENTES



ZERO HORA 25 de julho de 2015 | N° 18237


EDITORIAL




A cheia que atingiu a região metropolitana de Porto Alegre evidencia a insuficiência dos serviços básicos e o despreparo dos administradores públicos para situações de emergência. São casos que se repetem em todo o Estado, a cada transtorno provocado por eventos naturais, e que parecem surpreender os governos. Mesmo que se reconheça a dimensão dos danos, com todas as suas repercussões sociais, não se admite que as respostas não correspondam ao drama enfrentado pelas populações mais vulneráveis. E esses são, invariavelmente, os moradores das periferias, que habitam áreas próximas das margens dos rios.

Não é possível que cidades inteiras fiquem cinco dias sem água, como aconteceu com Alvorada e com partes de outros municípios. Os serviços públicos podem argumentar que não conseguem atender a todas as demandas, nas mais variadas áreas, e terão seus pretextos aceitos. Mas não há como aceitar com resignação que a falta de um insumo básico se prolongue por tanto tempo. As explicações técnicas, sobre bombas d’água submersas e outras desculpas, apenas demonstram a falta de alternativas a impasses provocados por cheias como a atual.

As enxurradas irão se repetir, mais adiante, e a cada ano teremos o mesmo cenário. Se nada for feito, ouviremos as mesmas explicações. É inconcebível que empresas estatais tentem convencer os consumidores de que não há como resolver o impasse da falta de água quando de enchentes. Devem existir meios de criar estruturas para situações emergenciais, que possam ser acionadas, ou estaremos diante da confissão de que, em pleno século 21, as pessoas podem, sim, ficar sem água por uma semana, como se esse fosse um problema incontornável.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

VÍTIMAS DA NEGLIGÊNCIA



ZERO HORA 15 de julho de 2015 | N° 18227


EDITORIAIS



Toda vez que o Estado enfrenta um período de chuvas continua- das, como ocorre neste mês, populações ribeirinhas ficam ao desabrigo e mobilizam recursos emergenciais que poderiam ser empregados de forma preventiva para evitar a urbanização descontrolada e outros problemas geradores de calamidade. Precipitações acima da média só se transformam em calamidade quando as comunidades deixam de lado providências mínimas em relação ao meio ambiente no cotidiano, mas principalmente quando o poder público se omite em relação à infraestrutura adequada, às moradias clandestinas e à ocupação de áreas impróprias para a habitação.

Neste primeiro momento, portanto, as atenções precisam se concentrar na ajuda aos que tiveram que deixar suas casas em consequência da invasão das águas. Esta é mais uma oportunidade, também, para avaliar as razões pelas quais os moradores de áreas de risco não foram alertados com antecedência sobre providências necessárias para reduzir perigos, transtornos e prejuízos como os enfrentados nas últimas horas.

Antes mesmo de as águas baixarem, porém, é preciso que representantes da comunidade e do poder público se mobilizem para apostar em ações continuadas. A população pode contribuir muito se zelar por um destino correto para o lixo e evitar a ocupação de áreas que agridam o meio ambiente. E o poder público precisa ser cobrado a levar adiante obras de saneamento que são lançadas oficialmente repetidas vezes, mas andam sempre em ritmo lento e não se concluem.

Programas de saneamento exigem volumes elevados de recursos das três instâncias da federação, dificilmente se concluem num mandato e, como os resultados são pouco visíveis, quase não rendem votos. Até por isso, precisam ser acompanhados muito de perto pelos munícipes, de forma permanente.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

JUSTIÇA SEM CONSOLO



ZERO HORA 05 de junho de 2015 | N° 18184


EDITORIAIS



A primeira sentença de réus do incêndio na boate Kiss absolveu seis bombeiros e puniu dois com penas leves, decepcionando parentes das vítimas e reacendendo o debate sobre a impunidade em torno da maior tragédia da história do Estado. Foi uma tragédia, mas não foi um simples acidente. Para o infortúnio que vitimou 242 pessoas, a maioria jovens, concorreram a ganância de empresários, a omissão de órgãos públicos, a leniência de autoridades e a irresponsabilidade de alguns protagonistas que tiveram participação direta na ocorrência de 27 de janeiro de 2013.

Mais de dois anos se passaram sem que familiares e amigos dos mortos e feridos tivessem uma resposta capaz de atenuar-lhes o sofrimento. Os julgamentos reabrem a esperança de um pouco mais de consolo. Ainda que a Justiça Militar tenha seguido critérios técnicos, pois os próprios promotores pediram a inculpabilidade da maioria dos réus, as absolvições e as penas brandas dos primeiros condenados aumentam a sensação de impunidade e de desamparo da lei.

Nada será capaz de compensar as perdas de tantas vidas, mas a busca de Justiça tem que ser obsessiva, não apenas para que os coautores do grande crime sejam devidamente responsabilizados, mas também para que as ações delituosas que levaram os jovens à armadilha fatal não voltem a se repetir. Como o julgamento continua, tanto em decorrência dos recursos interpostos para as sentenças da Justiça Militar quanto pelos processos em andamento na esfera criminal, ainda há tempo e oportunidade para um desfecho mais digno para o mais triste episódio da história de Santa Maria.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

CASO KISS, JUSTIÇA MILITAR CONDENA DOIS BOMBEIROS E ABSOLVE SEIS


Justiça Militar condena dois bombeiros e absolve seis por fiscalização da boate Kiss, Réus responderão em liberdade até julgamento de recursos em segunda instância

Por: Caetanno Freitas, Juliana Bublitz e Liciane Brun


ZERO HORA 03/06/2015 - 19h42min

Justiça Militar condena dois bombeiros e absolve seis por fiscalização da boate Kiss Ronald Mendes/Agencia RBS
Moisés Fuchs (esquerda) e Alex da Rocha Camillo (direita) foram condenados Foto: Ronald Mendes / Agencia RBS

A Justiça Militar concluiu, por volta das 14h40min desta quarta-feira, o julgamento em primeira instância dos bombeiros acusados de responsabilidade no incêndio da boate Kiss, que causou a morte de 242 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Dois dos bombeiros — Moisés Fuchs, tenente-coronel da reserva e ex-comandante do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o capitão Alex da Rocha Camillo — foram condenados pelo crime de inserção de declaração falsa, relativo à assinatura do segundo alvará da Kiss.

De acordo com a juíza Viviane Pereira, cujo voto foi seguido pelos demais magistrados, o segundo alvará foi emitido de forma ilegal, pois não havia um plano de prevenção contra incêndio (PPCI). Fuchs também foi condenado por prevaricação — crime praticado por servidor contra a administração pública, cumprindo ato de ofício indevidamente para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.


Os demais réus — o tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano, os soldados Gilson Martins Dias, Vagner Guimarães Coelho, Marcos Vinícius Lopes Bastide, o sargento Renan Severo Berleze, o primeiro-tenente da reserva Sérgio Roberto Oliveira de Andrades — foram absolvidos.

As penas de Fuchs e Camilo, porém, podem ter a execução suspensa. A substituição está prevista no Código Penal Militar para crimes com pena inferior a dois anos e que não tenham restrição ao benefício, como crime de violência a um superior, por exemplo. Além disso, só têm direito os réus sem antecedentes. Dessa forma, eles terão de se apresentar a cada dois meses na auditoria militar.

Não podem frequentar determinados locais e não podem se afastar sem aviso prévio.

O Ministério Público e as defesas de Fuchs e Camillo já anunciaram que vão recorrer da decisão, tomada por maioria de votos dos cinco juízes presentes. Os réus aguardarão em liberdade até julgamento em segunda instância no Tribunal de Justiça Militar, em Porto Alegre, em data ainda não definida.

Veja, réu a réu, como foi o julgamento da Justiça Militar:

Tenente-coronel da reserva Moisés Fuchs — ex-comandante do 4º Comando Regional dos Bombeiros
Condenado por: inserção de declaração falsa e prevaricação
Absolvido por: falsidade ideológica
Pena: um ano de reclusão pela inserção de declaração falsa e seis meses pelo crime de prevaricação, que podem ser substituídas por suspensão da execução da pena. No período da pena, o condenado terá de se apresentar a cada dois meses na auditoria militar. Não pode frequentar determinados locais e não pode se afastar sem aviso prévio.

Capitão Alex da Rocha Camillo — responsável pelo segundo alvará da casa noturna
Condenado por: falsidade ideológica
Pena: um ano de reclusão, que pode ser substituída por suspensão de execução da pena. No período da pena, o condenado terá de se apresentar a cada dois meses na auditoria militar. Não pode frequentar determinados locais e não pode se afastar sem aviso prévio.

Tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano — comandante da Seção de Prevenção a Incêndio (SPI) na época da concessão do primeiro alvará para a boate
Absolvido por: falsidade ideológica

Marcos Vinícius Lopes Bastide — soldado dos bombeiros que inspecionou a Kiss
Absolvido por: inobservância da lei

Gilson Martins Dias — soldado que realizou a última vistoria na Kiss, em 2011
Absolvido por: inobservância da lei
Vagner Guimarães Coelho — soldado que realizou a última vistoria na Kiss, em 2011
Absolvido por: inobservância da lei

Renan Severo Berleze — sargento dos bombeiros que atuava na análise dos Planos de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI) que chegavam à Seção de Prevenção a Incêndio (SPI)
Absolvido por: inobservância da lei

Sérgio Roberto Oliveira de Andrades — primeiro-tenente da reserva que atuava na Seção de Prevenção a Incêndio (SPI)
Absolvido por: inobservância da lei

MP retira denúncia contra cinco réus e revolta familiares de vítimas

Pela manhã, o promotor Joel Dutra, do Ministério Público, pediu a absolvição dos cinco réus julgados nesta quarta-feira — os soldados Marcos Vinícius Lopes Bastide, Gilson Martins Dias e Vagner Guimarães Coelho, o sargento Renan Severo Berleze e o primeiro-tenente da reserva Sérgio Roberto Oliveira de Andrades. De acordo com Dutra, os bombeiros teriam sido induzidos ao erro, o que tiraria qualquer espécie de negligência. A reação de parentes das vítimas presentes no recinto foi imediata: revoltados, deixaram a sala. Do lado de fora, pais e mães protestavam, alguns chorando.

— O que eles estão pensando? Só porque têm estrelinhas acham que são mais que alguém? — dizia aos prantos Maria Aparecida Neves, que perdeu o filho, Augusto Cezar, na Kiss.

Aos juízes, a advogada de defesa, Taís Martins Lopes, criticou a sociedade e a mídia:
— Dois anos sendo pisoteados para agora, no final, se entender que eles não agiram com dolo.

Entenda o segundo dia de julgamento

Os soldados Gilson Martins Dias e Vagner Guimarães Coelho foram responsáveis pela última vistoria na casa noturna, em 2011. Marcos Vinícius Lopes Bastide também inspecionou o local. Já o sargento Renan Severo Berleze atuava na análise dos PPCIs, e o primeiro-tenente da reserva Sérgio Roberto Oliveira de Andrades trabalhava, à época da tragédia, na Seção de Prevenção a Incêndio.
Segundo a denúncia inicial do MP, os cinco teriam deixado de observar determinações da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e do Decreto Estadual 37.380, de 1997, que também lista regras de prevenção de incêndio, ao avaliar as condições da Kiss.

terça-feira, 2 de junho de 2015

DOR E IMPUNIDADE



ZERO HORA 02 de junho de 2015 | N° 18181


LÚCIO CHARÃO




Já perdeu algum familiar próximo? Tenho 28 anos e meu pai morreu há 11. Já perdi outros parentes próximos e o luto – e suas várias fases – de dar adeus a meu pai demorou a passar. Foi cedo que ele partiu, mas, na dita lógica da vida, os filhos ficam e os pais se vão. Imagine, porém, um pai ou uma mãe que tem de enterrar um filho que morreu de forma trágica. Seria a lógica da vida? Não.

Esse foi um dos primeiros sentimentos que tive ao saber que uma boate pegou fogo e matou 242 pes- soas, a maioria jovens universitários da cidade em que nasci, cujos pais e mães tiveram de dar adeus para seus bens mais preciosos em um caixão. Reconhecê-los, deitados lado a lado, em um ginásio.

Até agora, a justiça não foi feita. A sensação de perder um ente querido é irreparável. Um alento aos familiares e sobreviventes do incêndio da boate Kiss seria ver algum dos acusados pela tragédia responsabilizado pela Justiça. Mas até agora ninguém foi.

Nesta terça, ao pensar em sentenças, há um fio de esperança no longo novelo de luto e dor que envolve centenas de familiares de vítimas de Santa Maria e outras cidades do Estado. Ao falar em impunidade, retomo brevemente três pontos:

1) Quatro meses e dois dias após a nuvem de fumaça pairar sobre a casa noturna do centro da cidade, os quatro principais réus do processo criminal, acusados de 242 homicídios dolosos e outras centenas de tentativas – foram soltos. Uma das principais alegações do magistrado, que à época vivia em Porto Alegre, ao assinar a soltura dos réus era de que a cidade não vivia mais o momento de clamor público. Não? Posso apostar que ele nunca pisou na Boca do Monte.

2) A cada mês, conforme ZH apresentou em sete páginas no dia 25 de janeiro deste ano – às vésperas dos dois anos da tragédia –, novas vítimas surgem. A fumaça ainda não cessou. Ainda espalha feridos, inocentes que queriam apenas curtir uma noite com amigos, ou até mesmo profissionais que atuaram no resgate dos que estavam dentro daquela arapuca e desenvolvem doenças como depressão ou enfisema.

3) As próprias leis, inócuas, servem para fazer perdurar o sentimento de impunidade. Ainda a velha Constituição, com raras atualizações e as normas anti- incêndio, de eficácia deficiente devido à fiscalização.

Então, que nesta semana, na Justiça Militar de Santa Maria, caso alguém – no caso, os bombeiros – saia condenado, será um breve alívio. Porque a dor e a impunidade ainda acompanharão esses pais, mães, avós, amigos, professores, todos que, de alguma forma, foram atingidos pelas chamas da Kiss.

Jornalista, editor de Zero Hora 

domingo, 26 de abril de 2015

104 MILHÕES DE REAIS, UM RADAR QUE NÃO FUNCIONA E 12 MIL VÍTIMAS

REVISTA ISTO É N° Edição: 2369 | 24.Abr.15, 26.Abr.15 - 11:28


R$ 104 milhões, um radar que não funciona e 12 mil vítimas. Autoridades tentam reverter estragos de uma tragédia que poderia ter sido evitada se a cidade de Xanxerê, destruída por um tornado, contasse com equipamentos meteorológicos

Fabíola Perez



Em julho do ano passado, o governo de Santa Catarina inaugurou um moderno radar meteorológico no município de Lontras, no Vale do Itajaí. O equipamento, comprado dos Estados Unidos, foi adquirido para prever tempestades, tornados e catástrofes naturais, cada vez mais comuns na região sul do País. Mesmo com um serviço de previsão climática de última geração, em uma torre de 25 metros e oito andares, que custou 10 milhões de reais aos cofres públicos do Estado, a cidade de Xanxerê, localizada no oeste catarinense foi destruída com a passagem de um tornado na tarde de segunda-feira 20, deixando 12 mil pessoas desamparadas (até sexta-feira 24). Depois da tragédia, constatou-se que o município arrasado está completamente desprotegido de qualquer tipo de previsão meteorológica. O equipamento de Lontras, ainda em fase de testes, não estava funcionando desde janeiro por um problema na fonte de alimentação, ocasionado por uma descarga elétrica após uma tempestade. Ainda assim, se estivesse operando normalmente, o radar só cobre 77% do território catarinense, excluindo as regiões Sul e Oeste, justamente as mais favoráveis a esse tipo de fenômeno. As peças do radar foram enviadas ao fabricante nos Estados Unidos para conserto. Esse é o único equipamento em todo o estado para fazer previsão de catástrofes como essas. O secretário adjunto de Estado da Defesa Civil, Rodrigo Moratelli, afirmou que estava no planejamento a compra de mais dois radares para o Oeste e Sul do estado, mas ainda em processo de licitação.


DESAMPARO
Acima o cenário de devastação na cidade de Xanxerê, destruída pelos ventos
fortíssimos. Abaixo, famílias desabrigadas na escola que serve de ponto de apoio



A previsão da prefeitura de Xanxerê é que os prejuízos já ultrapassem a marca dos R$ 104 milhões. “Os engenheiros e técnicos estão visitando as famílias atingidas para estimar a quantidade e o custo de material de construção necessário”, disse à ISTOÉ o prefeito Ademir José Gasparini. O governo do Estado declarou que as cidades atingidas estavam em estado de emergência e calamidade pública. A previsão da Secretaria de Obras do município é que a reconstrução deva levar de seis meses a um ano. A prefeitura criou um fundo municipal, administrado também pelo Ministério Público, para repasse de verba aos moradores cadastrados na Secretaria de Assistência Social. Outra medida foi a liberação do Fundo Garantia por Termo de Serviço (FGTS) para as famílias vitimadas. O cenário de destruição fez com que chegassem à cidade 200 homens do Exército, além de dezenas de caminhões com donativos.



Segundo estimativas, pelo menos 2,6 mil residências foram destruídas e duas pessoas morreram. Uma das famílias que assistiu à casa ruir foi a do segurança Guilherme Pogoreski Júnior, de 28 anos. Ele chegou à casa da mãe Jurema, de 61 anos, e ao ver o tempo fechado retirou a irmã cadeirante Maristela da sala. Segundos depois, a parede desmoronou. “Tive de puxá-la bruscamente para a parede não cair em cima dela”, diz. Apavorada, a mãe viu os ventos arrancarem a cobertura da casa e destruir parte dos móveis. A família está sem água e energia elétrica. O treinador de voleibol Valdir Marical também foi surpreendido com um forte barulho no ginásio de esportes. “Quando vi que o vento balançou as paredes do ginásio percebi que a estrutura não suportaria o temporal”, afirmou. “Os vidros começaram a estourar e os pedaços da parede caíram ao nosso lado.” Marical conseguiu retirar os 30 atletas do local.



Fotos: Nelson Antoine/Frame/Folhapress

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

ENTRE A DIVERSÃO E O PERIGO



ZERO HORA 17 de fevereiro de 2015 | N° 18076

 

ANDREIA FONTANA*


A gente só quer que os filhos sejam felizes. Só. Então, fazemos de tudo para encher as férias dos pequenos de curtição. Se banhos de mar e piscina, além de refrescar, adoçam a infância, é para eles que a gente corre.

Foi de uma piscina de Santa Maria que uma família viu a menina de oito anos sair desacordada depois de ter os cabelos sugados pelo ralo, no dia 9. Um dia depois, foi da sacada de um hotel de Capão que Thiago despencou.

Acidentes ocorrem o tempo todo. Já busquei por uma das gêmeas de uma amiga durante duas horas à beira-mar, numa agonia crescente de procurar na areia, olhar para a água, procurar na areia, olhar para a água, ligar para a polícia, avisar salva-vidas. E também já chorei a morte de um bebê, filho de uma querida colega, afogado na piscina do quintal.

Ouço a notícia da menininha minutos após festejar que minha Helena, de dois anos, aprendera a “nadar” com boias. E me lembro: não tem ralo antissucção na piscina de casa. Também não tem grade de proteção. Ao lado, meu colega já fala em aterrar a piscina do pátio dele.

Não temos cultura de prevenção. Prestamos atenção nas saídas de emergência depois da Kiss. Passamos a nos preocupar com o ralo da piscina após saber da menininha de Santa Maria. Mesmo assim, notícias assim trazem sempre as perguntas: e a mãe, onde estava? E o pai? Não tinha adulto com essa criança?

Sei que o amor desses pais por seus filhos não é menor do que o meu pela Helena. Uma mãe descuidou mais do que você se imaginaria distrair? Outro pai só piscou, e a filha sumiu? Seja você o pai ou a mãe que for, não conseguirá ensinar o filho a caminhar sem alguns tombos. Não o incentivará a dar as primeiras braçadas sem que beba um pouco d’água.

Além dos pais, a vida moderna leva também as mães a encarar 335 dias de horas quase inteiramente preenchidas por atividades. Nos 30 dias que sobram do ano, o pensamento vai longe. Sem querer, damos segundos de férias à atenção.

Em vez de gastarmos tempo julgando os adultos que também foram vítimas desse tipo de acidente, sugiro que fiquemos com a lição: redobrar a prevenção e a atenção com os nossos filhos. Somos pais e mães com o grande desafio de encontrar o equilíbrio entre a diversão e o perigo.


*JORNALISTA, EDITORA-CHEFE DO DIÁRIO DE SANTA MARIA

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

KISS, DOIS ANOS E AS FALSAS LÁGRIMAS



ZERO HORA 27 de janeiro de 2015 | N° 18055


ADÃO VILLAVERDE




Simboliza, também, o egoísmo coletivo, escondido na emoção inicial conjunta do primeiro momento de ardor vertido em caudalosas lágrimas, mas que se esvai, como a fumaça do próprio sinistro, apagando-se processualmente com o passar de pouco tempo.

Não me refiro apenas à impunidade que impera até hoje, após 730 dias, soando como um deboche institucional à dor dos sobreviventes e dos familiares das vítimas.

E nem ao manto de esquecimento com que muitos veículos de comunicação cobriram as decorrências do episódio, depois da efervescência emotiva inaugural que o horror inusitado da mortalidade ampliada despertou nos seus ouvintes, leitores e telespectadores.

A própria descaracterização posterior da legislação de segurança e prevenção contra incêndios, elaborada em comissão especial do parlamento, que tive a tarefa honrosa e a responsabilidade de presidir ainda em 2013, é resultado desse sentimento, que tenta eliminar más lembranças da memória, para evitar o compartilhamento da culpa de todos pela conivência com a omissão com que se trata o caso até hoje.

Na tribuna do Legislativo, acentuei, repetida e recorrentemente – mas em vão – sobre os graves riscos da flexibilização da chamada Lei Kiss, que teve o rigor original abatido por emendas parlamentares. Sobretudo a partir de pressões de setores propondo excepcionalidades que legitimam o “jeitinho”, condenado na legislação anterior, pela defesa de interesses econômicos particularistas ou mesmo inconfessáveis. Felizmente, a última tentativa foi vetada pelo governador Tarso, mas voltará à apreciação do parlamento.

De tudo, ficou a dúvida sobre se o que importa mesmo é a preservação da vida humana.

Ou se, na verdade, ela vale menos que alguns metros quadrados de construções que revertem em tributos arrecadatórios, lucros imobiliários ou ganhos de alguns.

Professor, engenheiro e deputado

LEIS NÃO AVANÇAM PARA COIBIR REPETIÇÃO DA KISS


VEJA ONLINE 27/01/2015 - 07:49


Santa Maria. Tragédia na boate Kiss: dois anos depois, legislação não avança. E o trauma permanece. Pesquisa revela que brasileiros se sentem inseguros em boates – e não sabem como agir em incêndios. Legislativo, porém, ainda não alterou normas do setor


Eduardo Gonçalves






Familiares e amigos das vítimas do incêndio na Boate Kiss, saíram pelas ruas da cidade em caminhada até o Ministério Público, pedindo justiça pelas 242 mortes - Nabor Goulart/Agência Freelancer/VEJA

Superlotação, vistorias pendentes, alvarás vencidos, extintores quebrados, revestimento acústico altamente inflamável, ausência de sinalizadores que indicassem rotas de fuga e barras de ferro próximas à saída de emergência. A sequência de irregularidades acabou por culminar naquela que se tornaria a quinta maior tragédia da história do país: há exatos dois anos, o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, a 300 quilômetros de Porto Alegre, matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos. Passados mais de 700 dias, a legislação de prevenção a incêndios continua a mesma da época. Nos dias que se seguiram à tragédia, projetos de lei foram propostos no Congresso Nacional, numa tentativa de dar uma resposta imediata à população comovida com a catástrofe – nenhum deles, contudo, saiu do papel.

A lembrança das cenas de destruição na cidade gaúcha é ainda um trauma para muitos. Pesquisa realizada em dezembro pelo instituto internacional KRC Research com 1.001 brasileiros mostra que, para 72% dos entrevistados, as medidas de prevenção contra incêndio implantadas em casas noturnas são insuficientes – e 45% têm mais receio de frequentar boates hoje do que antes da tragédia. A pesquisa foi realizada via internet com homens e mulheres com idade entre 18 e 64 anos, e mostra também que 92% das pessoas não se sentem mais seguras hoje em casas noturnas do que há dois anos. Outros 81% mudaram seu comportamento em locais públicos após a tragédia.


O levantamento revela também que, apesar da preocupação, metade dos entrevistados não saberia como agir em uma situação semelhante à da boate Kiss. “Isso é muito preocupante. Parte dos entrevistados não sabia se teria que seguir pelas rotas de fuga. Outros relataram que voltariam ao local para buscar pertences, como celulares e computadores. O correto seria que eles saíssem o mais rápido possível e deixassem que pessoas capacitadas com equipamentos adequados voltassem para fazer esse tipo de resgate”, afirmou César Miranda, diretor de segurança contra incêndio para a América do Sul da multinacional de materiais elétricos Honeywell, que encomendou a pesquisa.

Ainda de acordo com o estudo, 67% dos entrevistados afirmaram não ter participado de nenhum treinamento contra incêndio em seus locais de trabalho. Na tragédia de Santa Maria, a maioria das vítimas morreu intoxicada porque não conseguiu escapar rapidamente da boate. Muitos tentaram sair, em vão, pela janela do banheiro e outros morreram ao retornar à danceteria para resgatar conhecidos. O incêndio, desencadeado pela queima de fagulhas de um sinalizador, transformou a casa noturna em uma verdadeira câmara de gás.

Para a maioria (cerca de 90%) dos entrevistados, a responsabilidade pela prevenção de incêndios é de competência dos governantes, donos de casas noturnas e bombeiros. Miranda avalia que existem “três pilares básicos” para reduzir as possibilidade de uma tragédia do tipo em lugares fechados: “Ter uma legislação mais moderna e atualizada; estabelecer normas técnicas bem definidas, como o tipo de equipamento e o lugar onde ele deve ser instalado; e educar e treinar a população. Apesar de alguns passos já terem sido dados, ainda há muito a ser feito”, avaliou o especialista.

Legislação - Logo no mês seguinte ao incêndio, em fevereiro de 2013, foi criada uma comissão externa na Câmara dos Deputados para acompanhar as investigações e propor medidas que evitassem a ocorrência de um novo caso do tipo. Um projeto de lei, que endurecia a fiscalização a casas de show e boates e tramitava na Casa desde 2007, foi proposto pelo grupo no mesmo ano. No entanto, só foi aprovado em abril de 2014. Atualmente, o projeto tramita no Senado, onde aguarda a disposição do presidente da Casa, Renan Calheiros, em colocá-lo na pauta para votação. Entre outras medidas, o texto responsabiliza por improbidade administrativa os servidores municipais que forem omissos na inspeção das boates, criminaliza os donos de casas noturnas que não respeitarem as determinações dos gestores municipais e do Corpo de Bombeiros, e proíbe a utilização de comandas — um dos pontos que mais sofre resistência do empresariado do ramo.

Relator do projeto, o senador Paulo Paim (PT-RS), afirmou, por meio de sua assessoria, que já pediu a Calheiros celeridade no processo, mas reclamou do "lobby contrário" movido pelos proprietários de casas de show, que têm tentado barrar a chancela da medida. Se for aprovada sem alterações no Senado, a PL seguirá para sanção da presidente Dilma Rousseff. Em meio à comoção provocada pelo segundo aniversário da tragédia, o senador prevê que a medida seja votada no início de fevereiro, quando os parlamentares voltam do recesso. Enquanto isso, a população continuará a se sentir insegura em casas noturnas.

92 POR CENTOS INSEGUROS EM BOATES

ZERO HORA 27/01/2015 | 04h01

DOIS ANOS DEPOIS. 92% se sentem mais inseguros em boates desde a Kiss, revela pesquisa. Instituto norte-americano entrevistou mais de 1 mil pessoas de diversas idades e Estados do país em dezembro de 2014

por Bruna Vargas e Mauricio Tonetto




Foto: Andréa Graiz / Agência RBS



Mesmo com o endurecimento das leis de prevenção a incêndios e aumento da fiscalização desde a tragédia na boate Kiss, que matou 242 pessoas Santa Maria há dois anos, os brasileiros se sentem mais inseguros ao frequentar casas noturnas.


É o que revela uma pesquisa da consultoria norte-americana KRC Research, realizada via internet com 1.011 pessoas de 18 a 64 em todas as regiões do país. O estudo indica que 92% dos entrevistados têm mais receio hoje de ir a boates do que antes do incêndio, e 81% admitem ter mudado de comportamento em locais públicos.

Foram consultados 494 homens e 517 mulheres entre os dias 12 e 17 de dezembro de 2014. Um em cada três brasileiros, de acordo com a pesquisa, está "muito preocupado" com sua segurança pessoal em incêndios. Além disso, cresceu o número de pessoas que acreditam que a chance de envolvimento em fatalidades é mais provável fora do que em casa.

"É preciso melhorar a preparação do público e sua capacidade de reagir a incêndios. Os brasileiros têm alterado muitos dos seus hábitos de segurança contra incêndios, mas as circunstâncias, especialmente no trabalho, estão longe do ideal", concluiu a KRC Research.



Encomendada pela empresa Honeywell Safety, especializada em soluções segurança, a pesquisa, realizada pela primeira vez no Brasil, expõe a fragilidade brasileira em quesitos fundamentais para a prevenção de incêndio, segundo César Miranda, gerente geral do negócio de Fire Safety da empresa na América do Sul e diretor do Grupo Setorial de Sistemas de Detecção e Alarme de Incêndio da Associação Brasileira da Industria Eletro Eletrônica (Abinee):

— As mudanças ainda são bastante superficiais. Alguns dos estados, com a tragédia, começaram a fazer projetos de lei específicos, mas isso ainda é pouco. Deveríamos tentar seguir para o lado de uma lei nacional — avalia.

Há duas semanas, a reportagem de Zero Hora visitou sete casas noturnas de Porto Alegre, na presença de dois engenheiros do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), e verificou que algumas apresentam falhas graves. Eles sugeriram modificações — que serão discutidas pelo Crea e podem entrar na legislação — para proporcionar o mínimo de risco e, consequentemente, diminuir índices de preocupação como os divulgados nessa pesquisa.

— Na Kiss, as pessoas seguiram a luz, procurando a saída, e muitas morreram em um banheiro, que estava claro. Uma melhoria é a ligação automática da iluminação emergencial por um sistema de detecção de fumaça e pelo acionador manual do alarme de incêndio — disse o engenheiro Carlos Wengrover.



Ele ressaltou que as boates são, geralmente, fechadas para não deixar escapar o som e "em caso de incêndio, a fumaça preenche todo o ambiente em segundos. Por isso, sistemas de aberturas superiores nas paredes e/ou nos tetos seriam necessários. Os extintores devem ficar bem visíveis, em locais facilmente acessíveis pelos funcionários treinados, mas protegidos e vigiados contra irresponsáveis".

A pesquisa mostra também que os brasileiros são praticamente unânimes em afirmar que mudaram hábitos de segurança e preocupação devido ao incêndio na Kiss. Em itens mais específicos, ainda existe resistência, conforme a KRC Research. Dos 1.011 entrevistados, 45% responderam que procuram mais por saídas de emergência nos prédios, 40% evitam visitar locais lotados e 35% procuram mais por equipamentos como detectores de fumaça, extintores de incêndio e alarmes de incêndio em edifícios.

Quando perguntados sobre as políticas de prevenção, quase três quartos dos brasileiros disseram que os governos federal e estadual e os empresários e gestores são os responsáveis pela segurança, mais do que bombeiros e policiais. Além disso, 81% entendem que "o governo não está fazendo o suficiente".

"A partir de uma lista de possíveis equipamentos e procedimentos de segurança, os consultados estão mais propensos a dizer que o governo deveria exigir iluminação nas placas de saídas (80%), seguido por alarmes de incêndio (78%), sprinklers (75%) e caminhos de evacuação iluminados (72%). Menos de um por cento disse que o governo não deve exigir qualquer um dos itens listados", finaliza.


Para César Miranda, a questão da informação e educação da população sobre o que fazer em casos de emergência, deficitária, também dificulta o trabalho de prevenção. Por outro lado, o especialista vê como positiva a mudança de postura das pessoas em relação aos locais que frequentam.

— As pessoas começaram a perceber que estão expostas a um risco maior, mas não sabem o que fazer se acontecer alguma coisa. A população evoluiu de modo geral, agora precisamos de um engajamento de diversos setores da sociedade para que daqui dois ou três anos, quando a gente refizer essa pesquisa, o resultado seja diferente.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

SOBREVIVENTES DA KISS SE QUEIXAM DA FALTA DE ATENDIMENTO OU DE MEDICAMENTOS

ZERO HORA  26/01/2015

Um em cada cinco sobreviventes da Kiss procurou ajuda e parou tratamento. Especialidades como fonoaudiologia tiveram quase 40% de desistência, constata centro de atendimento às vítimas em Santa Maria

por Juliana Bublitz e Humberto Trezzi




Uma em cada cinco pessoas com sequelas provocadas pelo incêndio deixou de se tratar, mesmo após requisitar cuidados Foto: Andréa Graiz / Agencia RBS


Dos 160 sobreviventes da Kiss procurados por Zero Hora, mais de duas dezenas se queixaram de falta de atendimento ou de medicamentos. Mas, em alguns casos, as próprias vítimas largaram o tratamento pela metade, não comparecem mais a consultas e deixam de buscar os remédios requisitados.

É o que mostra um levantamento feito pelo Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava), criado pelo Hospital da Universitário de Santa Maria (Husm) para ajudar os atingidos pela tragédia na boate. Em 2013, 19,6% dos pacientes com consultas marcadas no Ciava faltaram aos encontros com os médicos. Em 2014, a situação praticamente se repetiu: 19,86% não compareceram. Ou seja, uma em cada cinco pessoas com sequelas provocadas pelo incêndio deixou de se tratar, mesmo após requisitar cuidados.


É gente que procura auxílio de diversos tipos. Na neurologia, por exemplo, 24,9% dos pacientes não apareceram nos consultórios do Ciava em 2013. Isso representa o cancelamento de um em cada quatro agendamentos — por parte do convalescente, não dos profissionais. Em 2014, o índice de não-comparecimento foi de 25%. Mesmo em pneumologia — uma das áreas mais procuradas por conta das lesões decorrentes da inalação da fumaça tóxica —, o índice de faltas preocupa: 15,2% em 2013 e 24,9% no ano seguinte. O mesmo ocorre em especialidades como fonoaudiologia e oftalmologia.



Os especialistas não estranham o sumiço dos sobreviventes. A médica Elaine Resener, superintendente do Husm, diz que o resultado, em parte, é decorrência da melhora gradual dos doentes.

— Eles sentem que estão mais saudáveis e simplesmente abandonam o tratamento. Quando fazem isso, muitos esquecem de desmarcar as consultas agendadas. O problema é que o envenenamento por fumaça é crônico. A pessoa precisa monitorar por toda a vida seu quadro clínico, que pode piorar de uma hora para outra. Tenho um filho que também estava na Kiss e reluta em se tratar — lamenta Elaine.

Outra explicação para as ausências relaciona-se à faixa etária predominante entre as vítimas. Quase todas são jovens e tendem a "se sentir imortais", diz Elaine. Visando a reverter as taxas de abandono, o Ciava passou a telefonar para as vítimas e seus familiares, a fim de que voltem ao tratamento.

— Mas muitos dizem: 'Me deixa em paz, não quero mais saber disso'. São casos de pessoas com depressão, que ainda não se deram conta (da doença). Nosso desafio é superar o problema — conclui Elaine.

Medicamentos, a principal queixa

Entre os sobreviventes que sofrem com doenças físicas e psíquicas decorrentes do incêndio, a principal queixa envolve contratempos na obtenção de alguns medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). É o caso da estudante Shelen Rossi, 21 anos.

Ela conseguiu escapar da morte na danceteria, mas não sem sequelas. Sofreu queimaduras nos olhos e desenvolveu problemas pulmonares, neurológicos e psicológicos. É uma das pacientes que dizem enfrentar dificuldades para obter medicação no Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava).

— Tenho crises de enxaqueca e preciso de um remédio que não está disponível. Sou obrigada a gastar R$ 80 por mês. Também preciso de um antidepressivo, mas só consigo graças a um vizinho que é médico e que me dá amostras grátis — diz Shelen.

Outro problema relatado é a demora na marcação de algumas consultas. O sobrevivente Laurício da Fonseca, 22 anos, diz ter feito um exame no hospital universitário que detectou manchas em seus pulmões. Para ver um médico e saber de que se tratava, teria de esperar 40 dias. Desistiu.

— Fiquei muito preocupado e decidi procurar um médico particular, porque não queria esperar. Por sorte, não era nada grave — afirma Fonseca.

A gerente de Atenção à Saúde do Hospital Universitário de Santa Maria, Soeli Guerra, encara as queixas com serenidade. No caso dos fármacos, reconhece que nem todos os rótulos prescritos são oferecidos de forma gratuita, mas garante que as medicações padronizadas são disponibilizadas — e chegam até a sobrar, porque muitos pacientes não comparecem para retirar.

Quanto às consultas, Soeli afirma que cada caso é classificado conforme a gravidade, e isso determina a frequência das consultas. É por isso, argumenta a gerente, que algumas vítimas conseguem ser atendidas com presteza e outras não.

Os processos na Justiça

Menos de dois meses depois da tragédia, a Polícia Civil indiciou 28 pessoas como responsáveis de alguma forma pelo incêndio. Dias depois, o MP denunciou oito pessoas. No momento, ninguém está preso. Confira como estão os processos.

22/3/2013
Inquérito policial responsabiliza 28 pessoas.

2/4/2013
MP denuncia à Justiça oito pessoas: quatro (sócios e integrantes da banda) por homicídio doloso qualificado por fogo, asfixia e motivo torpe e tentativa de homicídio de 636 feridos e quatro por fraude processual e falso testemunho.

3/4/2013
A Justiça aceita a denúncia e começa a tramitar o processo criminal.

26/6/2013
Começa a fase de instrução do processo com as acusações de homicídio. Ao todo, 114 sobreviventes são chamados a depor, inclusive em audiências realizadas fora do Estado.

22/5/2014
Inicia-se a segunda fase do processo, com 16 testemunhas de acusação.

16/9/2014
Escolhidas pelos advogados dos réus, 51 testemunhas de defesa são convocadas para depor. Essa é a fase atual do processo e deve ir até março, mas pode se estender.

5/12/2014
MP denuncia 43 pessoas por falsidade ideológica e falso testemunho.

Ainda sem data prevista
Quando forem concluídas as audiências com as testemunhas de defesa, será o momento de ouvir 24 peritos e, por último, os réus. Na sentença, o juiz escolherá uma entre quatro opções: a pronúncia (que leva a júri popular), a impronúncia (o processo é encerrado por falta de materialidade do crime), a desclassificação (de doloso para culposo e julgado pelo juiz) ou a absolvição sumária.

DOIS ANOS DE BOATE KISS, SEQUELAS E LENIÊNCIA DA JUSTIÇA

G1 FANTÁSTICO Edição do dia 25/01/2015

Sobreviventes e parentes das vítimas da Boate Kiss vivem com sequelas. Sem que haja nenhuma condenação dois anos depois do incêndio, a queixa maior é pela demora do julgamento.



As sequelas de uma tragédia. O Fantástico foi a Santa Maria, no Rio Grande do Sul, reencontrar os sobreviventes do incêndio da Boate Kiss.

São mais de 800 pessoas que carregam, no corpo e na alma, o trauma daquela noite. A maioria vive escondida e se recusa a pedir ajuda. Na terça (27), uma das maiores tragédias da história do Brasil completa dois anos: 242 jovens morreram e até hoje ninguém foi condenado.

“A impressão que eu tenho é que eu vou olhar pra rua e vou ver ela chegando,” diz Marilene dos Santos, mãe de vítima do incêndio da Boate Kiss.

Como se não bastasse a falta, o trauma.

Essa outra mãe, Teresinha Chagas, conta:
“Eu não consigo dirigir mais no movimento, quando tem muito carro. Se eu vejo barulho de sirene, ambulância, alguma coisa, eu passo mal.”

Os pesadelos.

Juliano, sobrevivente: São uns sonhos bem fortes assim, não acreditava naquilo ali.
Fantástico: Sonhos envolvendo morte e incêndio?
Juliano: Morte. Eu vi coisa que eu não vi na hora lá.

Os ecos de uma noite terrível: “As vozes, as vozes. De pedido de ajuda, de choro, enfim, de desespero”, conta Camille Kirinus Reghelin.

“A pessoa pode ter uma revivência, um flash back dessas alucinações. São vozes que ficaram na memória de forma traumática e que, em determinados momentos, ainda a atormentam”, diz o psiquiatra Gustavo Salvati.

Dois anos depois, uma fachada lacrada e vigiada é apenas a lembrança mais visível das dores de que a cidade ainda tenta se curar.

“Esses filhos, esses jovens, não eram filhos apenas destas famílias, eram filhos e habitantes de Santa Maria. Eles estudavam na cidade, eles locavam imóveis, eles faziam compra no comércio”, comenta o psicanalista Volnei Antônio Dassoler.

Foi na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Um domingo. A maior tragédia da história do Rio Grande do Sul. O incêndio da Boate Kiss matou 242 jovens.

No mesmo dia, em meio ao caos e à comoção, começava a ser montado um atípico serviço de saúde em que os profissionais tinham de lidar com sua própria perplexidade.

“Quando aconteceu o desastre, nós nos vimos atordoados sem ter muitas direções de como seguir”, lembra Volnei.

A experiência acumulada por centenas de profissionais em dois anos de atendimento a parentes de vítimas e sobreviventes resultou no Acolhe, um serviço público de saúde mental como nenhum outro.

“A gente tinha pouca literatura sobre um desastre humano. Foi um conhecimento construído a partir da prática de outras experiências”, conta o psiquiatra Gilson Mafacioli.

Entre as estratégias, reuniões informais de parentes das vítimas, onde há busca de conforto em quem se reconhece na mesma dor.

“Eu fico com saudades de estar com eles. Como se eles me aproximassem do meu filho até mesmo”, diz Marise Dias, mãe de uma vítima.

Sem que haja nenhuma condenação dois anos depois do incêndio, a queixa maior é pela demora do julgamento.

“Nós somos seres iguais e individuais. Cada um tem sua crença, cada um pensa de uma forma. Um quer Justiça, o outro não quer. Ao mesmo tempo que você não quer Justiça, você não pode dizer que eu não posso procurar. Sou um cidadão, pago minhas contas, não devo nada a ninguém. Então eu vou cobrar Justiça”, explica o pai de uma vítima, Sérgio da Silva.

Apesar disso, o Acolhe reúne pequenas vitórias entre os quase mil pais, mães e irmãos das vítimas.

“Conseguiram retomar sua rotina. Trabalham, estudam, viajam, namoram, saem, criam seus filhos, casam. Mas isso ainda é feito, por muitos, com um certo peso, com um certo fardo”, conta Volnei.

O fardo de Sérgio é brigar por Justiça. Consertar carros ajuda a ocupar a cabeça. Mas a pergunta de um cliente o tirou do sério: “Aonde é que nós queríamos chegar com isso? Eu disse assim: Se tu tivesses perdido um filho, tu ias saber, eu disse para ele”, conta Sérgio Soares.

A última lembrança da filha são as fotos que ela mesma tirou dentro da boate minutos antes de morrer. Sérgio e a mulher não abrem mão da visita ao Acolhe.

Fantástico: Toda semana?
Marilene de Oliveira dos Santos: Toda semana. Se não fosse, para mim, psicólogo e psiquiatra, acho que eu não tava aqui.

Livrar-se da sensação de apatia exigiu esforço tremendo de Teresinha Chagas: “Parece que eu tava dentro de uma caixa de vidro. Eu via as pessoas, eu via tudo passar, e parecia que eu não tava ali, dentro do mundo.”

Com a ajuda do psiquiatra, ela passou a lidar de outra forma com a memória do filho:

“Eu estou pela metade de mim. Mas eu acho que eu ainda estou aqui, eu estou vivendo, eu preciso fazer alguma coisa por mim, pela minha vida, pela vida das pessoas que estão ao meu lado.”, resume.

Mas se os parentes das vítimas procuram ajuda, falar com um sobrevivente é tarefa dificílima.

Manoela Lüdtke: Sim, eu sei que é difícil para vocês. Então está bem, não tem problema. Um abraço então, até sexta. Um abraço. Tchau.
Fantástico: Ele não quer?
Manoela: Não. Ele não quis. Ele disse que é uma história bem difícil pra família dele e ele prefere não se expor agora.

Alguns recebem o Fantástico, sob condições.

Fantástico: Ela está aí?
Mirela Sanfelice, psicóloga: Sim.
Fantástico: Ela aceita conversar com a gente?
Psicóloga: Aceita, mas sem a câmera.
Fantástico: Ela não quer gravar?
Psicóloga: Não.
Fantástico: Posso entrar?
Psicóloga: Sim.

No consultório, uma moça com queimaduras severas pelo corpo diz que prefere o silêncio.

“Não se mostram, não falam que são sobreviventes, e eles não conseguem se expor na cidade. Porque, às vezes, as perguntas, ou a comoção, ou os colocarem no lugar de vítima acaba sendo muito invasivo”, explica a psicóloga Maria Luiza Pacheco.

A estratégia do Acolhe foi mapear todos os sobreviventes: 866 foram identificados; 469 foram localizados. Ainda que não queiram ajuda, o serviço já sabe onde cada um deles mora. Se mudarem de ideia, podem ser imediatamente atendidos pelas Unidades de Saúde Básica de cada bairro.

Essa equipe de agentes de saúde pertence a uma unidade de atendimento da periferia de Santa Maria responsável pelo acompanhamento de dez sobreviventes. O papel dela é ver como eles estão. É um trabalho difícil, que encontra muita resistência, mas a orientação é respeitar o direito que essas pessoas têm de, inclusive, não se submeter a tratamento algum.

Mas se há recusa, há também adesão e cura. Juliano e a namorada estavam na boate na noite do incêndio. Cada um encara de um jeito.

Fantástico: Você acha que ela lida com isso tão bem quanto você?
Juliano da Silva, sobrevivente: Olha, eu acho, é que ela é muito fechada, sabe? Ela não é muito de falar, ela não gosta. Nem de ir nesses locais, assim, às vezes tem missa, dos familiares que perderam, ela não gosta de ir porque é triste.

Juliano estuda e trabalha. Passou quase dois meses no hospital. A terapia o fez aceitar as queimaduras de seu corpo.

Fantástico: Tem gente que não gosta de mostrar. Muitos dos queimados botam camisa de manga comprida. Você não. Está usando, normal, manga curta.
Juliano: É, eu até tenho a opção de fazer a cirurgia pelo hospital lá. Mas eu optei por não fazer. É uma opção de estética. Não me incomodo nada.

Camille Kirinus Reghelin ficou em coma e teve lesões pulmonares. “Existe um divisor de águas, da Camille antes e depois da Kiss”, diz.

A Camille de depois sente até hoje os efeitos da fumaça tóxica. “Deixa eu respirar um pouquinho”, pede.

Mas o pior para ela, era enfrentar o pânico de lugares fechados. “Eu queria interromper aquele sofrimento. E eu reconheci que sozinha eu não ia conseguir”, conta.

Procurou o Acolhe, fez terapia. Mas o grande teste foi a câmara escura de uma aula da faculdade de biomedicina.

“Eu fiquei com muito medo de entrar. Mas eu pensei: se eu não encarar isso eu não vou seguir adiante. E eu pensei: a minha vida não pode parar. Lá dentro, nos primeiros momentos, eu senti todo aquele medo, aquele pavor. Mas depois foi amenizando, e eu consegui racionalizar, consegui pensar: não, eu estou na minha aula, eu quero me formar, e eu preciso fazer essa disciplina. E eu enfrentei. E aquilo me ajudou muito. E aquilo, eu decidi, depois que eu saí daquela aula, eu decidi que eu ia fazer isso com tudo, todos os desafios que viriam. Encarar, fechar os olhos e enfrentar”, conta Camille.

Na faculdade inteira, teve a solidariedade dos colegas, até o dia da formatura.

“Foi muito emocionante! Eles foram mais que amigos, foram irmãos”, conta Camille.

Camille já está trabalhando como biomédica. A história dela e dos outros pacientes do Acolhe vão virar um livro que será publicado no fim do ano e que vai servir de referência para tratamento de vítimas de tragédias.

“Como se trabalhar, como se produz conhecimento, e como se produz vida a partir de algo tão difícil que é a morte,” resume a psicóloga Maria Luiza Pacheco.

“O que aconteceu ninguém vai esquecer. As perdas, as pessoas, não, isso nunca será esquecido. Mas o sentimento que tu tens pode ser transformado,” conclui Camille.

domingo, 25 de janeiro de 2015

APÓS DOIS ANOS DE KISS, LEIS ESBARRAM NA BUROCRACIA, BRECHAS E ENGAVETAMENTO

ZERO HORA 24/01/2015 | 13h02

por Adriana Irion

Kiss, 2 anos. Leis criadas para prevenir incêndios como o da Kiss ainda não trazem resultado. No Estado, aprovada às pressas em dezembro de 2013, legislação esbarra em burocracia e há brechas para interpretações. No Congresso, norma federal está engavetada



Após limpeza da boate, em 2014, familiares pintaram fachada de preto e mantiveram porta branca Foto: Andréa Graiz / Agencia RBS


Ela foi a primeira a sentar no banco dos réus como culpada pelas 242 mortes no incêndio da boate Kiss. Mal a tragédia completara 24 horas e autoridades apontavam em entrevista coletiva, em Santa Maria, a legislação de prevenção a incêndio como responsável. Ou melhor, irresponsável. Assim, o então governador Tarso Genro (PT) definiu a lei em vigor: débil e irresponsável.

A partir da célere definição, desencadeou-se um longo processo de discussão para criação de novas leis – uma estadual e uma federal. Dois anos depois, a norma feita em Brasília e aprovada na Câmara – do deputado Paulo Pimenta (PT) – em abril do ano passado está em uma gaveta no Senado, esperando acordo da presidência da Casa com líderes para entrar em pauta de votação.



– Não chamo de tragédia. Foi um ato criminoso, e dois anos se passaram sem que a lei seja aprovada. Só posso acreditar que tem algo errado. Que atuaram forças ocultas, o lobby de grandes empresas do setor – indigna-se o senador Paulo Paim (PT), que foi relator da lei na Comissão de Direitos Humanos do Senado e faz pressão pela votação.

No cenário estadual, a chamada Lei Kiss, do deputado Adão Villaverde (PT), foi aprovada na Assembleia no apagar das luzes de 2013, às pressas, para marcar presença quando as homenagens de um ano pela tragédia ganhassem as ruas. Sofreu reformulação em julho de 2014, vista por alguns como uma “flexibilização” forçada por prefeituras e empresas. Em novembro, houve outra mudança aprovada no Legislativo, mas vetada por Tarso. O veto ainda tem de ser apreciado pela Assembleia.

Hoje, na prática, a nova lei ainda pouco interfere no tão buscado processo de prevenção para prédios já existentes. Isso ocorre porque os prazos dados pela lei para adequação são longos, chegando a 60 meses para que todos os itens de segurança previstos estejam contemplados no imóvel. Além disso, o Corpo de Bombeiros calcula que só em Porto Alegre existam até 120 mil prédios que deveriam ter Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI), mas apenas 32 mil estão regularizados.

– Os sistemas previstos na nova lei para prédios que estão sendo construídos estão valendo, podemos cobrar 100%. Mas para os prédios existentes, que são a maioria, não. A lei fracionou os prazos. Somente a partir da conclusão de resoluções técnicas é que vamos conseguir cobrar. Para casas noturnas, não há exceção. O rigor com essas já está valendo – afirma o tenente-coronel Adriano Krukoski, comandante dos bombeiros em Porto Alegre e membro técnico do Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndio.

O conselho é o órgão com responsabilidade por criar as resoluções técnicas que vão orientar a aplicação do que diz a legislação. Até o momento, cinco resoluções foram colocadas no papel e aprovadas pelo conselho, mas nenhuma foi publicada para entrar em vigor.

A questão do "preferencialmente"

Fácil lembrar de uma das mais debatidas falhas encontradas na Kiss: a falta de saída de emergência. O Corpo de Bombeiros defendia ter dado liberação para a boate com base na norma que diz que as portas de emergência devem “preferencialmente” estar em lados opostos. O raciocínio era simples: preferencialmente não é igual a obrigatoriamente. Então, a Kiss estava, para eles, adequada com uma única porta. Já a investigação do incêndio, baseada em minuciosas perícias, apontou a falta de mais portas como uma das razões para tantas mortes terem ocorrido.

– Isso (a tragédia) pode se repetir se medidas rápidas não forem tomadas não somente pelas prefeituras na fiscalização como também reformas normativas importantes, para deixar claras as responsabilidades. Onde diz coisas dúbias, como por exemplo “preferencialmente”. Uma norma nunca pode dizer isso, porque o “preferencialmente” já é uma oportunidade de evasão para o administrador – afirmou Tarso em janeiro de 2013.

Dois anos depois, ainda está em vigor o “preferencialmente”. A resolução técnica que trata do tema das saídas de emergência ganhou 87 páginas de sugestões do conselho estadual e ainda não está valendo.

Outro longo capítulo de debates jurídicos e políticos deve ocorrer se a lei nacional for aprovada como está. O texto remete a resolução para normas brasileiras, que estariam acima das estaduais. Desta forma, todo o trabalho que vem sendo feito para moldar resoluções técnicas para a nova lei estadual cairia por terra. E o tempo de mudanças normativas urgentes, a fim de evitar novas tragédias, vai se alongando.

A CRONOLOGIA DA LEI KISS ESTADUAL

- A Lei Kiss foi aprovada pela Assembleia Legislativa em 11 de dezembro de 2013 e sancionada dia 26, um mês e um dia antes de a tragédia completar um ano.

- Passou a vigorar em meio às férias e à Operação Verão, quando os efetivos são reduzidos.

- Em fevereiro 2014, para não parar o trabalho de prevenção, os bombeiros emitiram instrução normativa com orientações sobre como aplicar a nova lei. Também criaram grupo de trabalho para formular as resoluções técnicas necessárias para regulamentar a lei, mas as resoluções precisavam ser aprovadas por um conselho que sequer existia.

- Em maio de 2014, foi criado por decreto do governador o Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndio, composto por 10 representantes do Executivo e nove de outras entidades. O conselho se reúne uma vez por mês. Ocorreram cinco reuniões, e cinco resoluções aprovadas aguardam publicação pelo governo.

- Em junho de 2014, a lei foi alterada. Houve quem considerasse que foi “flexibilizada” por pressão de empresas e de prefeituras.

- Em setembro de 2014, foi publicado decreto para regulamentar os dispositivos da Lei Kiss, mas até hoje ainda não há resolução técnica nova sendo aplicada.

- O item “saídas de emergência” foi um dos mais debatidos depois da tragédia na Kiss, pelo fato de a lei em vigor remeter para uma norma da ABNT (9077) que diz que as portas devem ser “preferencialmente” em lados opostos. Ou seja, a lei deixa brecha para interpretações, não obriga que as portas sejam opostas. Na Kiss, não eram. E hoje, dois anos depois da tragédia e mesmo existindo uma nova lei, ainda está em vigor essa norma (menos em cidades que tenham uma lei com determinação mais rigorosa em relação às portas). A lei de Porto Alegre, por exemplo, determina portas em lados opostos ou separadas por uma distância de três metros.

- Em novembro passado, nova alteração na lei foi aprovada pela Assembleia, permitindo que estabelecimentos com mais de 750 metros quadrados pudessem ter apenas PPCI simplificado. Pelo projeto, ginásios e CTGs seriam beneficiados. O projeto foi vetado pelo então governador Tarso Genro. O veto tem de ser apreciado pela Assembleia a partir de 1º de fevereiro, pois tranca a pauta.

ENTENDA CADA PASSO PARA A LEI FUNCIONAR

Lei
- A legislação diz os itens que os estabelecimentos devem ter. Por exemplo: extintor.

Regulamentação
- Diz que o extintor vai ser do tipo e instalado da forma que a Resolução Técnica determinar.

Resolução Técnica
- Detalha o tipo de extintor, quantidade e distâncias para ser instalado em cada estabelecimento, por exemplo. É a resolução que dá todas as orientações sobre cada item previsto na lei.

- A lei Kiss, aprovada e sancionada em dezembro de 2013, ainda não tem resoluções técnicas próprias valendo. Ela funciona com remissões a resoluções já usadas à época da tragédia (normas brasileiras) ou a resoluções dos bombeiros de São Paulo.

DEMANDA PARA ANÁLISE DE PPCIs

- A nova lei criou exigências sem que o efetivo dos Bombeiros aumentasse. Com isso, é maior o tempo de análise de documentos e vistorias.

- Em Porto Alegre, para quem já tinha PPCI e precisava apenas renovar alvará, o prazo era de 20 dias. Agora, é de dois meses. Para quem nunca teve PPCI, o prazo que era de 20 dias passou para seis meses.

A LEI NACIONAL

- Em 29 de janeiro de 2013, foi anunciada criação de uma comissão na Câmara dos Deputados para discutir a legislação sobre prevenção a incêndio.

- Em julho de 2013, o projeto de lei 2.020/07, com alterações, foi proposto pela Câmara e aprovado em plenário em abril de 2014.

- Tramita no Senado Federal desde 16 de abril de 2014.

- Em 13 de novembro, foi para a Comissão de Direitos Humanos e, em 10 de dezembro, aprovado.

- Agora, aguarda inclusão em pauta para votação no plenário.

- Se aprovada como está, a lei deve interferir na nova legislação estadual: uma vez que prevê que a regulamentação deve ser feita com base em normas brasileiras e não estaduais. Dessa forma, todo o trabalho que está sendo feito no Estado para aprovação de resoluções seria perdido.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

HERÓIS E ANTI-HERÓIS



ZERO HORA 22 de janeiro de 2015 | N° 18050


HUMBERTO TREZZI*



Eu vi um bombeiro chorar. Foi em Santa Maria, na semana passada, às vésperas dos dois anos da maior tragédia gaúcha, o incêndio na boate Kiss. O sargento embargou a voz e fechou o semblante, deixando as lágrimas escorrerem pelo rosto. Queria desabafar aos jornalistas.

Chorou pelas 242 vítimas, que não pôde salvar. Por nunca ter recebido agradecimento. E por ter sido um dos crucificados no festival de irregularidades que marcou essa tragédia.

O bombeiro que chorou não é um dos que vistoriaram e liberaram a boate para funcionar, mesmo ela sendo uma armadilha, um bloco de concreto com uma só saída que virou túmulo de centenas. Não. O sargento estava na linha de frente do combate ao fogo, mas acabou sob suspeita de não ter feito tudo o que podia. De não entrar na boate nem ter impedido que voluntários corressem risco de vida (alguns morreram ao ingressar no inferno da Kiss).

Você entraria, sabendo que ninguém saía consciente dali? Com a fumaça tóxica desencadeando tosse e atordoando quem a desafiava? Sei bem como é, fui treinado em brigada de incêndio.

Alguns bombeiros entraram em meio ao breu e à fumaceira, vi os vídeos. Outros ficaram no apoio, fornecendo água. Faltou equipamento para tanta tragédia. Era época de férias e o contingente estava reduzido. Humanos, os bombeiros não barraram voluntários: ficaram gratos diante de tanta ajuda inesperada e bem-vinda. Não sabiam até que ponto a Kiss era arapuca mortífera.

O militar que entrevistei abriu buracos no prédio, foi engolfado pela nuvem química e ainda ajudou a carregar corpos. Dias depois, ao ouvir na TV que bombeiros se omitiram no cumprimento do dever, o filho do sargento – esse do desabafo – perguntou:

– Pai, você deixou mesmo aquelas pessoas morrerem?

Então o sargento viu que de herói virara anti- herói. Chorou várias vezes desde então. Mesmo depois de ser inocentado, quando o Ministério Público considerou que ele não cometera delito. Faltava o desagravo da opinião pública, que aqui está. Isso não significa igualar todos os bombeiros. Alguns deixaram que a danceteria funcionasse, mesmo sem saídas de emergência, com espumas inflamáveis inadequadas, janelas vedadas, extintores vencidos e luzes de emergência apagadas. Outros tinham firmas para fazer laudos técnicos a quem pagasse (a Kiss pagou e permaneceu aberta). Esses ainda devem muita explicação. Especialmente aos familiares dos 242 mortos.

*Jornalista, repórter especial de ZH