Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

domingo, 2 de junho de 2013

CONVITE PARA MATAR


ZERO HORA 02 de junho de 2013 | N° 17451


Flávio Tavares*



A tragédia dentro da tragédia é ainda mais revoltante do que a tragédia em si. Em Santa Maria, o desleixo, a incúria e a irresponsabilidade se uniram e mataram mais de duas centenas de moças e moços como se fossem um bando de insetos a exterminar. Eis que o trágico toma nova forma, agora, como vulcão em erupção contínua: ao libertar os quatro responsáveis diretos pelo horror, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça os considerou pessoas não perigosas, como se quisesse antecipadamente absolvê-los de culpa.

“Quanto à gravidade concreta do fato – concluiu o Tribunal – impõe-se distinguir a conduta e o resultado. Se este (o resultado) apresenta proporções gigantescas, certo é que a conduta dos réus não se reveste de crueldade, de hediondez ou de excepcional desprezo pela vida humana, nem eles apresentam qualquer periculosidade.”

A decisão foi unânime: os desembargadores Manoel Martínez Lucas e Júlio César Finger, mais a juíza Osnila Pisa. Sem dissensões, não tomaram como “excepcional desprezo pela vida humana” o fato de a boate (sem extintores) ter apenas uma saída para mais de mil pessoas num espetáculo de fogo e música. E definiram crueldade e hediondez pela intenção subjetiva, não pelas consequências concretas – matar 242 pessoas das mais de mil aprisionadas num escuro labirinto.

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Os réus não oferecem perigo? O perigo maior é o do exemplo, pois só o exemplo dá os caminhos da vida. Ao não terem antecedentes criminais, são impunes? Não é brutal sacramentar a ideia de que o desleixo e o desprezo pelos semelhantes é uma “normalidade” incorporada à vida?

A decisão do Tribunal gerou justa revolta Brasil afora, mas alguns advogados a aplaudiram “pela rigorosa técnica”. Esqueceram-se de que “a técnica” é só um dos instrumentos do processo, nunca um fim em si, e não pode sobrepor-se à Justiça. A técnica processual é como o bisturi do cirurgião – deve levar a extirpar o tumor. Quando se afasta da realidade e transforma o formalismo em deus único, a Justiça deixa de ser justa e se torna vulnerável ao próprio crime que deve combater.

As perícias, testemunhos e documentos do minucioso inquérito policial mostraram que o “acidente” da boate Kiss foi um hediondo crime coletivo, com duas dezenas de implicados, todos acumpliciados sob o denominador comum do desleixo ou do lucro fácil. O Ministério Público atenuou as conclusões policiais e não denunciou o prefeito de Santa Maria e outros mais.

Agora, o crime se abranda ainda mais e passa a ser visto como se fosse uma infração similar às que cometemos no trânsito, uma simples transgressão à norma legal, não um verdadeiro holocausto. Sim, pois no velho rito judaico, holocausto era o sacrifício em que se queimavam as vítimas.

Não foi assim na boate Kiss?

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Esta tragédia comporta todos os adjetivos: revoltante, brutal, deprimente. Assim, o Tribunal não julgou um habeas corpus comum, daqueles que soltam briguentos bêbados de rua ou libertam larápios de alto nível.

Um habeas corpus para os responsáveis pela morte de 242 pessoas exige respeito à visão profunda de justiça. Está em jogo um genocídio informal, urdido pelo desprezo ao próximo. Indago: para sustentar que o crime já não provoca “clamor público ou a necessidade de resguardar-se a credibilidade da justiça”, os desembargadores mediram a dor e sentiram o horror da desídia que transformou os responsáveis em criminosos?

O povo de Santa Maria não é turba enfurecida ou vingativa. Ao contrário: pacientes e respeitosos, honram o luto com a luta. São veementes e chamam de “vergonha” ao novo horror? Por que não? Deviam ter medo e aceitar em silêncio o convite geral para matar?

*JORNALISTA E ESCRITOR

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