HUMBERTO TREZZI E LIZIE ANTONELLO
TRAGÉDIA EM SANTA MARIA
Passado quase um ano da maior tragédia gaúcha, a morte de 242 pessoas no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, a Polícia Civil prepara um novo inquérito que promete apontar supostas falhas não esmiuçadas na primeira investigação, concluída logo após a tragédia.
Os policiais estão convencidos de que os donos da danceteria teriam usado de um misto de fraudes e amizade para escapar da fiscalização de graves problemas na casa noturna. E nessa nova investida dos investigadores sobrarão críticas para autoridades de diferentes escalões: bombeiros, polícia ambiental, promotores de Justiça e, com destaque, membros da prefeitura. Todos serão, de alguma forma, mencionados como supostos responsáveis por falhas que permitiram o funcionamento de uma danceteria que se revelou uma armadilha mortífera para seus frequentadores.
O novo inquérito, que já está em 12 volumes e ouviu mais de 90 pessoas, tem como base suposta fraude praticada pelos primeiros proprietários da Kiss, em 2009. O engenheiro Tiago Flores Mutti, ex-dono da boate Kiss, e o pai dele, Santiago, segundo a polícia, deverão ser indiciados por falsidade ideológica, delito supostamente cometido muito antes do incêndio que matou as 242 pessoas em 27 de janeiro deste ano. De acordo com a polícia, os dois empresários teriam organizado de forma fraudulenta uma consulta popular para o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) da danceteria, destinado a verificar se o ruído do estabelecimento estava acima do permitido por norma.
Apesar da queixa de mais de 80 vizinhos contra o ruído emitido pela boate, inaugurada em julho de 2009, Mutti e seu pai organizaram um abaixo-assinado em apoio à manutenção da danceteria naquele local, assinado por 60 pessoas. Os policiais procuraram todas as pessoas que assinaram a lista e descobriram que apenas 21 apoiadores (35% do total) residiam perto da casa noturna, condição exigida por lei. Os demais moravam longe, a alguns quilômetros dali. Outros apenas trabalhavam perto, durante o dia – ou seja, não teriam como saber o nível de ruído na boate, que funcionava à noite.
Os policiais responsáveis pelo inquérito dizem que Tiago Mutti deverá também ser indiciado porque assinou o laudo afirmando que o som da Kiss estaria dentro dos limites estabelecidos em lei. Os policiais dizem que ele jamais poderia fazer isso: apesar de engenheiro, não teria isenção, já que era dono do local.
Mas os policiais prometem ir muito mais além no novo inquérito. Em mais de mil páginas, tentam demonstrar que uma cadeia de falhas, muito maior que a simples tolerância ao ruído, teria acontecido para que a boate continuasse funcionando até o dia da tragédia.
– É como acidente de avião, um festival de falhas que levam a um desastre – compara um policial que atua no caso.
Um dos pontos importantes do inquérito é um organograma montado pelos investigadores. Ele analisa todos os quatro anos de existência da Kiss e conclui que, de 2009 a 2013 (período em que esteve aberta), a boate não teria funcionado um único mês atendendo as exigências da lei para manutenção de suas atividades. A culpa, acreditam os policiais, é sobretudo da prefeitura de Santa Maria, que teria permitido a emissão de licença sem as exigências mínimas da legislação. Isso teria aberto espaço para sucessivos crimes de ordem ambiental, aponta a investigação.
MP é outro alvo do novo inquérito
O Ministério Público é criticado, veladamente, pelos policiais por ter deixado um inquérito que investigava o barulho da Kiss “se arrastar por mais de dois anos”. Teria sido a colocação de uma espuma isolante de ruído na boate, que se comprovou tóxica, a causa da morte da maioria das 242 vítimas, segundo perícias feitas depois da tragédia.
A suposta existência de 29 irregularidades chegou a ser apontada por um arquiteto vinculado à prefeitura. O embargo da boate foi proposto por uma secretaria municipal. Outra secretaria, porém, autorizou que a Kiss continuasse funcionando, a menos de uma quadra da sede da prefeitura. Como? Tudo se deve a uma troca de endereço feita pelos donos da danceteria, temerosos de que o estabelecimento fosse fechado, informam os policiais.
Os então proprietários da Kiss ingressaram na prefeitura com o expediente 4.756, de 22/2/2010, solicitando a troca de numeração do imóvel de 1.935 (embargado por obra irregular) para 1.925 (com dívida ativa). Na justificativa para a troca de numeração, os donos da boate argumentaram que não estavam conseguindo protocolar o Alvará de Localização do estabelecimento. Apesar de o número original constar no cadastro da prefeitura como uma uma obra em aberto, ou seja, não estar habilitado para o habite-se, três dias depois do pedido a prefeitura autorizou a troca de números.
O resultado é que a boate Kiss ganhou duas pastas na prefeitura: uma com a documentação do imóvel de número 1.935, outra para o número 1.925. O curioso é que, enquanto um lote de documentos apontava inúmeras irregularidades e recomendava o embargo da boate, o outro mencionava dívidas, mas que não impediam a contínua atividade do estabelecimento.
– Fica claro que o alvará de localização não poderia ter sido emitido. E, se emitido, deveria ter sido cassado, conforme dispõe a lei. Isso nunca aconteceu – critica um dos investigadores.
Zero Hora procurou o delegado que cuida do novo inquérito, Sandro Meinerz. Nem ele e nem o delegado regional da Polícia Civil, Marcelo Arigony, quiseram se manifestar.
TRAGÉDIA EM SANTA MARIA
Passado quase um ano da maior tragédia gaúcha, a morte de 242 pessoas no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, a Polícia Civil prepara um novo inquérito que promete apontar supostas falhas não esmiuçadas na primeira investigação, concluída logo após a tragédia.
Os policiais estão convencidos de que os donos da danceteria teriam usado de um misto de fraudes e amizade para escapar da fiscalização de graves problemas na casa noturna. E nessa nova investida dos investigadores sobrarão críticas para autoridades de diferentes escalões: bombeiros, polícia ambiental, promotores de Justiça e, com destaque, membros da prefeitura. Todos serão, de alguma forma, mencionados como supostos responsáveis por falhas que permitiram o funcionamento de uma danceteria que se revelou uma armadilha mortífera para seus frequentadores.
O novo inquérito, que já está em 12 volumes e ouviu mais de 90 pessoas, tem como base suposta fraude praticada pelos primeiros proprietários da Kiss, em 2009. O engenheiro Tiago Flores Mutti, ex-dono da boate Kiss, e o pai dele, Santiago, segundo a polícia, deverão ser indiciados por falsidade ideológica, delito supostamente cometido muito antes do incêndio que matou as 242 pessoas em 27 de janeiro deste ano. De acordo com a polícia, os dois empresários teriam organizado de forma fraudulenta uma consulta popular para o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) da danceteria, destinado a verificar se o ruído do estabelecimento estava acima do permitido por norma.
Apesar da queixa de mais de 80 vizinhos contra o ruído emitido pela boate, inaugurada em julho de 2009, Mutti e seu pai organizaram um abaixo-assinado em apoio à manutenção da danceteria naquele local, assinado por 60 pessoas. Os policiais procuraram todas as pessoas que assinaram a lista e descobriram que apenas 21 apoiadores (35% do total) residiam perto da casa noturna, condição exigida por lei. Os demais moravam longe, a alguns quilômetros dali. Outros apenas trabalhavam perto, durante o dia – ou seja, não teriam como saber o nível de ruído na boate, que funcionava à noite.
Os policiais responsáveis pelo inquérito dizem que Tiago Mutti deverá também ser indiciado porque assinou o laudo afirmando que o som da Kiss estaria dentro dos limites estabelecidos em lei. Os policiais dizem que ele jamais poderia fazer isso: apesar de engenheiro, não teria isenção, já que era dono do local.
Mas os policiais prometem ir muito mais além no novo inquérito. Em mais de mil páginas, tentam demonstrar que uma cadeia de falhas, muito maior que a simples tolerância ao ruído, teria acontecido para que a boate continuasse funcionando até o dia da tragédia.
– É como acidente de avião, um festival de falhas que levam a um desastre – compara um policial que atua no caso.
Um dos pontos importantes do inquérito é um organograma montado pelos investigadores. Ele analisa todos os quatro anos de existência da Kiss e conclui que, de 2009 a 2013 (período em que esteve aberta), a boate não teria funcionado um único mês atendendo as exigências da lei para manutenção de suas atividades. A culpa, acreditam os policiais, é sobretudo da prefeitura de Santa Maria, que teria permitido a emissão de licença sem as exigências mínimas da legislação. Isso teria aberto espaço para sucessivos crimes de ordem ambiental, aponta a investigação.
MP é outro alvo do novo inquérito
O Ministério Público é criticado, veladamente, pelos policiais por ter deixado um inquérito que investigava o barulho da Kiss “se arrastar por mais de dois anos”. Teria sido a colocação de uma espuma isolante de ruído na boate, que se comprovou tóxica, a causa da morte da maioria das 242 vítimas, segundo perícias feitas depois da tragédia.
A suposta existência de 29 irregularidades chegou a ser apontada por um arquiteto vinculado à prefeitura. O embargo da boate foi proposto por uma secretaria municipal. Outra secretaria, porém, autorizou que a Kiss continuasse funcionando, a menos de uma quadra da sede da prefeitura. Como? Tudo se deve a uma troca de endereço feita pelos donos da danceteria, temerosos de que o estabelecimento fosse fechado, informam os policiais.
Os então proprietários da Kiss ingressaram na prefeitura com o expediente 4.756, de 22/2/2010, solicitando a troca de numeração do imóvel de 1.935 (embargado por obra irregular) para 1.925 (com dívida ativa). Na justificativa para a troca de numeração, os donos da boate argumentaram que não estavam conseguindo protocolar o Alvará de Localização do estabelecimento. Apesar de o número original constar no cadastro da prefeitura como uma uma obra em aberto, ou seja, não estar habilitado para o habite-se, três dias depois do pedido a prefeitura autorizou a troca de números.
O resultado é que a boate Kiss ganhou duas pastas na prefeitura: uma com a documentação do imóvel de número 1.935, outra para o número 1.925. O curioso é que, enquanto um lote de documentos apontava inúmeras irregularidades e recomendava o embargo da boate, o outro mencionava dívidas, mas que não impediam a contínua atividade do estabelecimento.
– Fica claro que o alvará de localização não poderia ter sido emitido. E, se emitido, deveria ter sido cassado, conforme dispõe a lei. Isso nunca aconteceu – critica um dos investigadores.
Zero Hora procurou o delegado que cuida do novo inquérito, Sandro Meinerz. Nem ele e nem o delegado regional da Polícia Civil, Marcelo Arigony, quiseram se manifestar.
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