Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

domingo, 23 de janeiro de 2011

O RETRATO EXATO


O retrato exato, por Flávio Tavares, jornalista e escritor - Zero Hora 23/01/2011

O retrato profundo do horror na tragédia da serra do Rio de Janeiro não é o número de mortos, que irá além de um milhar e pode chegar a 2 mil. A 12 dias do início de tudo, existem ainda vilarejos soterrados onde não se sabe o que há sob a lama ressecada. O retrato mais aflitivo não são as partes humanas que emergem da terra, ao lado de vacas, galinhas, cães, cavalos, carros, móveis, aparelhos de TV. Em Friburgo, a pá de um trator topou com uma cadeira de rodas e duas bonecas imensas como um bebê. O horror não está sequer nessas cenas que a TV e os jornais não mostraram por pudor. Nem no relato da médica Júlia Leite, que, ao chegar com uma equipe de ajuda a uma antiga fazenda de Teresópolis, viu cães famintos banqueteando-se em cadáveres.

Nada disso é o retrato profundo do horror. Nem sequer o cheiro fétido da decomposição (que se agrava à noite e perpassa a serra) sintetiza a brutalidade. As catástrofes têm um horror inerente a elas próprias e, por isto, são catástrofes.

O retrato brutal do horror apareceu – isto sim – na carta de um leitor do jornal O Globo, do Rio: disposto a somar-se à imensa cadeia popular de solidariedade, ele apresentou-se ao hospital da Marinha para doar sangue, mas de lá foi enxotado por vestir bermudas acima do joelho e não calça comprida!! Por não estar “adequadamente vestido”, seu sangue não servia...

Ou isso não é o retrato exato do absurdo faz de conta que nos rege? Mais catastrófico que a tragédia é a perversão da ignorância humana. Ou da má-fé que desconhece a solidariedade e toma a ordem como uma fantasia, legalizando o caos anárquico.

Saberemos aprender com a tragédia? Ou continuaremos sem reconhecer os erros nem a imprevisão? Seguiremos (como na serra do Rio) transformando morros e montanhas em pedreiras, extraindo com dinamite “pedra brita” que, depois, usaremos pela metade, levando o resto para secar restingas ou entulhar lixões?

No mesmo dia da aluvião no Rio e das cheias em São Paulo e Minas, o presidente do Ibama, Abelardo Bayma, demitiu-se do cargo por discordar das pressões da cúpula do governo federal para conceder “licença ambiental” à construção da mastodôntica hidrelétrica de Belo Monte, na Amazônia. Sobre o Rio Xingu, a usina é o ponto de partida de um conjunto de hidrelétricas cujos reservatórios e linhas de transmissão vão devastar mais de 5.300 km2 de florestas, exterminar a fauna e deslocar comunidades nativas. Só em Belo Monte, removerão o dobro da quantidade de terra da abertura do Canal de Panamá, que uniu o Atlântico ao Pacífico.

O ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, promete criar um “sistema de alerta e prevenção” de enchentes e deslizamentos, baseado na experiência do Japão. De que valerá isso, porém, se a projetada alteração do Código Florestal vai permitir a ampliação da derrubada de florestas, das matas ciliares (que protegem rios e arroios de enchentes) e até dos espaços verdes urbanos? A “bancada ruralista” já se prepara para apoiar o deputado Aldo Rebelo, do PC do B, autor da proposta que consolida esse horror.

Na promiscuidade do horror, porém, nem tudo é tristeza. Reapareceu o vulgar Big Brother Brasil e milhões de telespectadores sorriem ao “executar” alguém no paredão. E no Rio prepara-se a alegre folia do Carnaval, que São Paulo busca imitar ou superar e o país vai aplaudir.

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