Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.
sábado, 15 de janeiro de 2011
PREVISÃO SEM PREVENÇÃO - DOR E DESTROÇOS
A mesma cena. E cada vez mais dor sob os destroços. A chuva era prevista. Mas não houve prevenção, fiscalização nas ocupações das encostas nem planos de contingência. O resultado de tanto descaso foi a maior catástrofe da história do Brasil - Francisco Alves Filho, de Nova Friburgo; Wilson Aquino, de Teresópolis; e Rafael Teixeira do RJ - Revista Isto É, N° Edição: 2149 = 14.Jan.11. Atualizado em 15.Jan.11
Foi tudo muito rápido, como sempre é. Não se passou uma dúzia de horas entre o início do que parecia ser mais uma simples tempestade de verão e as avalanches de lama, pedras e paus que colocaram fim à vida de mais de 500 pessoas e devastaram cidades inteiras da região serrana do Rio de Janeiro. Foi assim, de repente, que a cadeia de montanhas que encantam os cariocas há mais de um século abandonou a aparência sólida e se liquefez. No caminho entre as escarpas íngremes e verdes da Serra do Mar até os vales que a formam, a terra em estado líquido não fez distinção e levou com ela tudo o que estava à sua frente: árvores, pedras, casas, carros e uma quantidade aterradora de vidas. Quando amanheceu, o mundo ali era outro. Em Teresópolis, onde antes havia casas, ruas, escolas, um macabro cemitério ao livre surgiu. O charmoso centro de Nova Friburgo deu lugar a uma camada espessa de lama, detritos e entulhos, escondendo sob ela dezenas de corpos. Em São José do Vale do Rio Preto, o riacho que corta a cidade e serviu de inspiração para Tom Jobim escrever os célebres versos de “Águas de Março” transformou-se em uma corredeira de águas caudalosas, que com sua força destruiu casas, pontes e vidas. Foi assim, com uma rapidez e uma fúria impressionantes, que a maior tragédia natural da história brasileira encontrou seu desfecho numa típica noite quente e úmida de verão.
Sua gênese, no entanto, foi lenta e gradual, e o resultado, previsível. Marcada por características geológicas e climáticas instáveis, a região serrana do Rio de Janeiro está acostumada a recolher corpos sob a terra úmida. Tem sido assim desde as primeiras ocupações, mostram relatos de dom Pedro II, que, como faz hoje a elite carioca, subia à serra para fugir do calor inclemente que castiga a cidade do Rio de Janeiro no verão. Nem mesmo a carnificina de 1967, quando 300 pessoas morreram nas mesmas situações de agora, foi o bastante para se aceitar que, ali, a natureza não se intimida para determinar o curso da vida. Até agora, o resultado dessas tragédias se resume a uma ladainha cíclica de promessas que raramente se traduzem em ações concretas e que sempre terminam nos cemitérios. Foi assim em 1967, como foi em 2008, em Santa Catarina, ou no ano passado, em Angra dos Reis e em Niterói. “Não há desculpa para colocar a culpa nas chuvas, o Brasil não é Bangladesh”, diz a diretora do Centro para a Pesquisa de Epidemiologias da ONU, Debarati Guha-Sapir, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo” no mesmo dia em que a Organização das Nações Unidas colocava o acidente fluminense como o décimo mais letal entre os deslizamentos de terra da história.
Debarati tem razão. Ao contrário do país espremido entre a Índia e Mianmar, há dinheiro, tecnologia e mão de obra farta no Brasil para evitar que tantas pessoas percam a vida em uma região tão propensa a acidentes. Dois casos recentes mostram como investimento, controle da ocupação do solo e preparação podem poupar vidas. Na Austrália, neste início de ano, choveu mais do que na região serrana do Rio. No entanto, apenas 19 pessoas perderam a vida por lá. Na Ilha da Madeira, uma região também montanhosa, choveu no ano passado tanto quanto choveu em Nova Friburgo, a cidade mais atingida nesta última tragédia. O número de mortes em Portugal não chegou a 10% das vítimas fluminenses.
Nesses tempos de pânico ambiental, as mudanças climáticas têm sido os algozes perfeitos dos governantes para justificar o injustificável. “Estamos falando de décadas e décadas de administrações omissas”, diz o cientista político Luiz Werneck Viana. “Faltou às prefeituras fiscalizar as zonas em que as ocupações irregulares acontecem, faltou aos Estados desenvolver planos para essas regiões, faltou ao governo federal priorizar a questão do planejamento urbano e da habitação.” A fatura pela falta de investimentos chegou, enfim, mais alta do que nunca.“Os governantes têm uma visão míope que só vale para os quatro anos de mandato”, critica David Zee, coordenador de mestrado em meio ambiente da universidade carioca Veiga de Almeida. “Estado, município e federação têm obrigação de trabalhar de forma integrada, mas todas essas esferas têm sido historicamente omissas.”
Como foram, mais uma vez, neste início de ano. Não há quem conteste que o volume de chuvas que castigou as cidades fluminenses foi de uma intensidade rara. Em menos de 12 horas choveu praticamente o mesmo que era esperado para todo o mês em Nova Friburgo. Mas o inadmissível em um caso como esse é a absoluta falta de preparação e coordenação do poder público para mitigar os efeitos de um desastre iminente e, pior, a completa ausência de planejamento prévio para lidar com suas consequências. Tudo parece ser feito de última hora, como se as soluções só pudessem ser encontradas diante dos acontecimentos. Não há dúvida de que as chuvas da madrugada da quarta-feira causariam deslizamentos e inundações, mesmo que não houvesse ocupação irregular do solo. Os danos materiais também são justificáveis por conta da dimensão das chuvas. Mas, se um simples sistema de alerta funcionasse, o número de vítimas poderia ser reduzido de forma drástica. A tragédia fluminense é repleta de exemplos de como nada disso foi feito, nas duas pontas da incompetência administrativa.
Na tarde de terça-feira, horas antes do início do temporal, o radar instalado pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro no ano passado já emitia dados mostrando que uma chuva de grande intensidade se aproximava da região serrana. O equipamento, conhecido como Doppler, foi adquirido após as chuvas que mataram mais de uma centena de pessoas na região metropolitana da capital fluminense e tem capacidade de cobrir um raio de 250 quilômetros, quase duas vezes a distância que separa o Rio de Nova Friburgo. Mas, por razões que ainda não estão claras, não havia técnicos disponíveis ou capacitados para analisar esses dados e disparar o alerta. Já o Instituto de Pesquisas Aeroespaciais, o Inpe, informou à Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro que um grande temporal estava se formando na região serrana. O órgão recebeu o aviso por volta das 15 horas de terça-feira e diz que emitiu o alerta às cidades por meio de e-mail. Mas a comunicação parece não ter sido benfeita. Os agentes da Defesa Civil de Teresópolis, onde mais de 200 pessoas perderam a vida, garantem que não receberam nada.
A tragédia desta semana só é atípica no número de mortes. No mais, é uma simples repetição do que ocorre ali há mais de um século, e que vem se agravando com o aumento da população. No entanto, horas após mais de cinco centenas de corpos estarem espalhados por toda a região, o poder público parecia não ter nenhum plano para lidar com uma situação como essa. Não havia, por exemplo, tarefas predefinidas para os atores públicos, como é de se esperar em uma região que anualmente sofre com desastres exatamente iguais a esse. Tudo parece ter sido resolvido de última hora. E as autoridades pareciam se orgulhar ao informar que a Marinha havia emprestado dois helicópteros, que o Bope, especializado no combate armado contra traficantes, havia liberado ônibus ou que o Exército enviara caminhões frigoríficos para dar conta do número extraordinário de corpos que eram recolhidos.
“É preciso criar os agentes comunitários, as brigadas locais em cada distrito, em cada município. São essas pessoas que dão as diretrizes em situações como essa e mostram o que fazer até a chegada do socorro oficial”, diz a vereadora Andréa Gouveia Vieira (PSDB/RJ). A família do marido de Andréa é proprietária do sítio que fora alugado para a estilista e designer Daniela Conolly e parentes. Invadida por água, lama e entulho, a casa foi soterrada junto com Daniela e mais sete membros de sua família (leia quadro). “A casa existia há mais de 70 anos. Nunca aconteceu algo dessa magnitude lá. O rio subiu em uma velocidade enorme, foi um volume de água impossível de ser contido. Havia 18 pessoas na casa, 14 morreram”, disse a vereadora. Embora seja política, seu discurso é o mesmo de qualquer cidadão comum: cansaço com as promessas nunca cumpridas de reflorestamento, limpeza dos rios, remoção de pessoas de áreas de risco.
Como em qualquer acidente, a causa não é uma só. É uma soma de erros de várias origens, entre as quais o inaceitável descaso com o meio ambiente. “Gerações foram criadas sem que houvesse uma preocupação ambiental. Houve uma ocupação desordenada com construção de residências em encostas”, aponta Luís Eduardo Peixoto, presidente do comitê de ações emergenciais de Petrópolis.
Aquecimento global e desmatamentos são algumas das causas de tragédias que têm acontecido no mundo. O aumento da população urbana é outra ponta do desequilíbrio. A pesquisadora mineira Waleska Marcy Rosa, 41 anos, do Centro Universitário Serra dos Órgãos, fez, em 2007, um estudo comparativo entre os municípios de Teresópolis e Petrópolis e concluiu que a ocupação das áreas de encosta dos dois municípios cresceu demasiadamente a partir da década de 1960, à sombra da fraca atuação do poder público, que, além de não conseguir impedir as ocupações irregulares, muitas vezes até as regulamentou. “É a desgraça do populismo, a permissividade de deixar a ocupação de áreas de uma maneira irresponsável como se eles (políticos) fossem aliados dos mais pobres”, comenta o governador Sérgio Cabral, obviamente excluindo-se da culpa que aponta nos outros governantes.
Não há como, no entanto, negar que a responsabilidade maior é do poder municipal. “São as prefeituras que regulam o uso do solo, autorizam construções e fiscalizam regiões de risco”, diz o cientista político Ignácio Cano, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para ele, a situação chegou a um ponto em que “é preciso uma política com um componente repressivo que impeça a construção irregular e remova quem está em área de risco”. A própria presidente Dilma Rousseff, que esteve na cidade na quinta-feira 13, reforça essa visão. “Ocupação irregular no Brasil não é exceção, é regra.” Segundo o secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, no ano passado foram gastos 13 vezes mais com a resposta do que com a prevenção. Ele afirma que houve um investimento de R$ 2,3 bilhões para remediar e apenas R$ 167,5 milhões para prevenir. Castello Branco critica também a má distribuição de recursos federais. “Do montante do ano passado, 50,5%, mais de R$ 80 milhões, foram destinados à Bahia, enquanto o Rio ficou só com 0,6%, ou seja, R$ 1 milhão. São Paulo teve 5,6% e Minas Gerais, 6,2%”. Ao contrário do Rio, a Bahia não é um Estado com histórico de desastres ambientais tão frequentes como o Rio. Mas a diferença entre os dois Estados é que o ministro responsável pela distribuição dos recursos, Geddel Vieira Lima, é baiano e tinha como objetivo principal no ano passado ser eleito governador do Estado que tanto privilegiou com a distribuição dos recursos.
O resultado disso se vê em todas as esferas do poder público, que não consegue responder a uma crise das proporções da região serrana fluminense. Nos ineficientes e sucateados Institutos Médicos Legais das cidades atingidas, o cheiro da morte se espalhava pelos corredores e pelo entorno dos prédios. “Tenho que passar pomada com cheiro de menta no nariz para poder trabalhar. O mau cheiro está insuportável”, disse um dos funcionários responsáveis pelo transporte dos corpos em Nova Friburgo, que prefere não se identificar. Até a manhã da sexta-feira 14, a cidade chorava inacreditáveis 216 mortos na tragédia. A todo momento, caminhões e caminhonetes chegavam com corpos ao Instituto de Educação de Nova Friburgo, improvisado para funcionar como Instituto Médico Legal. Dia e noite, a porta da instituição ficava tomada por pessoas que buscavam saber se entre os mortos há algum parente ou amigo. “Não saio daqui enquanto não souber notícia de minha avó”, disse, ainda em estado de choque, a comerciária Regina Soares, 28 anos. Com tantos cadáveres e condições precárias, o trabalho no local tem sido sacrificante em Nova Friburgo e mostra que não há nenhuma preparação para enfrentar problemas como esse. Nem mesmo um plano de contingência para lidar com um número de mortos tão grande, algo que não é inédito por ali, parece haver.
Sem a resposta rápida e eficaz do poder público, a população se divide entre um estado de absoluta catatonia e de desespero. No centro de Nova Friburgo, famílias de várias classes sociais perambulavam nos dias que sucederam ao desastre com bolsas e sacolas em punho, buscando refúgio. Uma delas era o pedreiro Andrei Silva, 26 anos, cuja casa, localizada no bairro do Jardim Califórnia, foi inundada pela chuva e ficou prestes a desabar. Ele deixou o imóvel com sua mãe e duas irmãs. “Não sei para onde vou, mas para lá não volto mais”, prometeu. Não longe dele, a advogada Lia Vieira caminhava com os pés envoltos em sacolas de supermercado. “Perdi minha casa e meu carro no desabamento”, contou. “Agora, o que eu quero é sair daqui.”
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário