Levantamento aponta que a Kiss nunca funcionou dentro da lei. Inquérito mostra que em 47 meses de operação, danceteria sempre operou com pendências legais
Humberto Trezzi e José Luís Costa
Que a Kiss foi uma danceteria marcada por irregularidades, o mundo não tem mais dúvidas. A novidade é qual o tamanho do manancial de problemas jurídicos e técnicos que deixou aberta uma boate-armadilha, responsável pela maior tragédia da história gaúcha.
Um grupo de policiais civis de Santa Maria decidido a montar esse quebra-cabeças trabalha há quatro meses em um novo inquérito, cuja espinha dorsal é o elenco de licenças que aquela casa noturna deveria ter e não tinha. Ou que obteve sem o devido e cuidadoso ritual burocrático.
O levantamento chegou a uma constatação: a Kiss nunca funcionou dentro da lei. Sempre, em seus 47 meses de existência, a boate teve pendente alguma licença necessária para permanecer em funcionamento.
O levantamento policial mostra que em 2009 a Kiss funcionou por seis meses sem licenças sanitária, ambiental e de localização. Em 2010, abriu por 11 meses sem licença sanitária e por quatro meses sem alvará dos bombeiros. Em 2011, foram nove meses sem licença ambiental e sete meses sem alvará dos bombeiros.
Em 2012, nove meses sem licença sanitária e quatro sem alvará dos bombeiros. Em 2013, sem alvará dos bombeiros e sem licença sanitária, até o incêndio. Os policiais civis que rastrearam a documentação afirmam: por qualquer uma dessas carências, fiscais poderiam ter exercido o poder de fechar o estabelecimento, até que a irregularidade fosse sanada.
Fiscais do município podem ser indiciados
A verdade é que a Kiss abriu, como diz o jargão popular, na cara e na coragem. Seja por desleixo ou em razão de demoras burocráticas, não tinha uma licença ou um documento sequer dos poderes públicos estadual e municipal quando foi inaugurada, em 31 de julho de 2009 – o Alvará Sanitário retroativo ao período de julho a dezembro de 2009 foi obtido somente em janeiro de 2010.
Faltavam Estudo de Impacto de Vizinhança, Laudo Técnico de Isolamento Acústico, licenças ambientais, Alvará Sanitário e Alvará de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI). Naquele ano, só providenciaria um desses documentos, o alvará de PPCI dos bombeiros, no mês seguinte ao começo da operação.
Nos primeiros meses, faltavam à danceteria três licenças da prefeitura imprescindíveis para que a casa permanecesse aberta, a sanitária, a ambiental e a de localização – essa última, a “certidão de nascimento” que atesta: o empreendimento existe e funciona.
Mesmo sem existência legal, a boate era badalada, e discussões sobre sua potência sonora eram travadas. Sem ter sequer licença para funcionamento, a Kiss exibiu um abaixo-assinado de supostos moradores da área central da cidade, que atestavam: o ruído do som não os incomodava.
Provocado pela ala da comunidade inconformada com a barulheira da nova danceteria, o Ministério Público negociou reformas acústicas com os donos da casa noturna. O promotor encarregado do caso não notou que faltavam à Kiss documentos necessários para permanecer aberta, ressalta o novo inquérito policial.
Era tanta ilegalidade que a Kiss foi multada cinco vezes em 2009, com ameaça de fechamento feita pela Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana de Santa Maria. O embargo chegou a ser assinado pelo então secretário Sergio Renato Medeiros, mas a boate não foi fechada — a prefeitura alega que os donos tinham de fechá-la.
Os policiais civis que analisam a documentação ressaltam o que seria outra falha grave do poder público: as multas nem sequer foram pagas e não entraram para o cadastro da dívida ativa do município.
E lembram que o Código de Posturas santa-mariense (Lei Complementar nº 003/02 de 22-01-2002) é claro, em seu artigo 197: “Será fechado todo o estabelecimento que exercer atividades sem a necessária licença expedida em conformidade com o que preceitua este Código”.
Mas, afinal, por que a boate nunca foi fechada?
Questionada a respeito, a prefeitura de Santa Maria argumentou que não existia previsão jurídica para essa medida drástica, conforme sustentou a procuradora-geral do município, Anny Desconzi. Em uma das dezenas de documentos enviados à Polícia Civil, em 15 de março de 2013, a procuradora escreveu:
— Como em 2009 a boate não possuía Alvará de Localização, sequer havia o que o município cassar! Faltava o objeto para a penalidade — resumiu Anny Desconzi.
Os delegados que elaboram o novo inquérito, Sandro Meinerz e Luiza Sousa, têm uma pergunta às autoridades municipais: se não havia o que cassar, porque a boate estava sem licença, não seria o caso de simplesmente fechar a Kiss? Os policiais acreditam que sim e, por isso, pretendem indiciar fiscais da prefeitura e até secretários em alguns artigos do Código Penal relacionados à omissão no dever. A data do novo inquérito não está definida, nem o número de indiciados.
O que diz o Ministério Público Estadual (MPE)
O MPE diz que não irá se manifestar enquanto o inquérito policial não for recebido oficialmente.
O que diz a prefeitura de Santa Maria
A assessoria de imprensa ressalta que não teve acesso a dados do novo inquérito policial, mesmo tendo solicitado-os. Mesmo sem saber o conteúdo da nova investigação, reitera que todas as licenças exigidas por lei estavam presentes quando a prefeitura emitiu o Alvará de Localização da Kiss.
O que ocorre é que algumas delas tinham data de renovação muito diferente em relação às outras, mas todas foram concedidas em algum momento, antes do Alvará de Localização. A prefeitura ressalta também que o Ministério Público não encontrou indícios de improbidade ou crime envolvendo funcionários municipais.
A procuradora Anny Desconzi afirma que, antes de existir licenças, a Kiss só poderia ser embargada e não cassada – porque não tinha licença. O embargo foi determinado.
— Quem descumpriu a lei foi o proprietário do estabelecimento. Os agentes públicos municipais cumpriram a legislação vigente — diz Anny.
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