ARTIGOS
Flávio Tavares*
A tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, recém completará seis meses, a dor está presente e o horror ainda amedronta, mas os passos da Justiça soam como se fossem amordaçar os gritos e apagar tudo. Ou como se os 242 mortos tivessem surgido de um acidente a esmo desses que ocorrem ao descer uma escada e tropeçar num degrau e no qual não há responsáveis nem culpados. A cada nova decisão, mais se atenuam as responsabilidades e as culpabilidades ou os culpados desaparecem. O desleixo e a inoperância (ou corrupção?) do amplo arco de responsáveis pelo crime são esquecidos. Tudo se dilui na interpretação mecânica das leis, como se a lei dispersasse a realidade e suas consequências, tal qual o vento dissipa o pó.
As 13 mil folhas do minucioso inquérito policial penetraram nas causas da tragédia, definiram situações e apontaram delitos, mas... e agora? Viraram só baliza dos fatos, simples referência de como se chegou à madrugada funesta. O inquérito não nasceu de teorias nos escritórios, mas de coisas concretas, fruto de perícias, observações, testemunhos. Ou das indagações de autoridades, bombeiros, funcionários de diferentes áreas, dos músicos e proprietários da labiríntica ratoeira transformada em local de diversão.
Por que o abandonaram, já que, à medida que passou à área judicial, suas conclusões se amainaram?
Primeiro, o Ministério Público excluiu da denúncia por “homicídio culposo” a maioria dos implicados, inclusive o prefeito Schirmer. Dias atrás, os promotores Maurício Trevisan e Ivanise Jann de Jesus isentaram o prefeito e cinco de seus auxiliares do crime de “improbidade administrativa”, abrindo caminho para o Tribunal de Justiça mandar arquivar, agora, tudo o que a eles se refira. Antes, o Tribunal mandara soltar todos os presos.
Será que o culto à impunidade se alastra e se aprofunda entre nós, como se fosse um totem sagrado que veneramos e ao qual devemos obediência cega? Ou não é esta a sensação dominante Brasil afora, não só em Santa Maria?
O inquérito policial esmiuçou as causas da tragédia, apalpando nelas, nas cinzas e nos seus cadáveres. Assim, constatou que ali se consumou um crime revoltante não só pelo número de vítimas, mas pela desídia, incúria ou corrupção que o gerou. Logo, a denúncia formal do Ministério Público atenuou responsabilidades e culpas.
Quem errou? Os delegados de polícia exageraram em 13 mil folhas inconsistentes e inócuas? Ou o Ministério Público, acometido de um súbito temor reverencial pelo poder? Sim, pois, a característica do Ministério Público de ser mais rígido do que a polícia, não ocorreu no horror de Santa Maria.
O subprocurador-geral de Justiça explicou aqui que os membros do Ministério Público atuaram “ancorados nos limites da lei, evitando criar falsas expectativas sobre as possibilidades legais de responsabilizações”. Perfeito! Não se duvide da intenção de correta interpretação da lei. Aplicar a lei, porém, não é armazenar números de artigos e parágrafos, como se empilham sacos, um no outro. Acima dos códigos e da legislação está o “espírito das leis” (com que Montesquieu redefiniu o Direito) e sua inter-relação com o real.
Uma tragédia com 242 mortos não pode ser interpretada com a mesma visão ou o mesmo espírito de um acidente de trânsito ou uma rixa de bêbados que termine à bala.
O presidente da Associação dos Familiares das Vítimas qualificou de “indecência” a libertação dos réus e as demais decisões da área judicial como “uma troca de favores”. A veemência denota uma visão geral, que a própria Justiça deve desmentir com fatos concretos, para que, amanhã, não se pergunte sobre os abjetos objetos de tanta leniência face ao horror.*JORNALISTA E ESCRITOR
A tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, recém completará seis meses, a dor está presente e o horror ainda amedronta, mas os passos da Justiça soam como se fossem amordaçar os gritos e apagar tudo. Ou como se os 242 mortos tivessem surgido de um acidente a esmo desses que ocorrem ao descer uma escada e tropeçar num degrau e no qual não há responsáveis nem culpados. A cada nova decisão, mais se atenuam as responsabilidades e as culpabilidades ou os culpados desaparecem. O desleixo e a inoperância (ou corrupção?) do amplo arco de responsáveis pelo crime são esquecidos. Tudo se dilui na interpretação mecânica das leis, como se a lei dispersasse a realidade e suas consequências, tal qual o vento dissipa o pó.
As 13 mil folhas do minucioso inquérito policial penetraram nas causas da tragédia, definiram situações e apontaram delitos, mas... e agora? Viraram só baliza dos fatos, simples referência de como se chegou à madrugada funesta. O inquérito não nasceu de teorias nos escritórios, mas de coisas concretas, fruto de perícias, observações, testemunhos. Ou das indagações de autoridades, bombeiros, funcionários de diferentes áreas, dos músicos e proprietários da labiríntica ratoeira transformada em local de diversão.
Por que o abandonaram, já que, à medida que passou à área judicial, suas conclusões se amainaram?
Primeiro, o Ministério Público excluiu da denúncia por “homicídio culposo” a maioria dos implicados, inclusive o prefeito Schirmer. Dias atrás, os promotores Maurício Trevisan e Ivanise Jann de Jesus isentaram o prefeito e cinco de seus auxiliares do crime de “improbidade administrativa”, abrindo caminho para o Tribunal de Justiça mandar arquivar, agora, tudo o que a eles se refira. Antes, o Tribunal mandara soltar todos os presos.
Será que o culto à impunidade se alastra e se aprofunda entre nós, como se fosse um totem sagrado que veneramos e ao qual devemos obediência cega? Ou não é esta a sensação dominante Brasil afora, não só em Santa Maria?
O inquérito policial esmiuçou as causas da tragédia, apalpando nelas, nas cinzas e nos seus cadáveres. Assim, constatou que ali se consumou um crime revoltante não só pelo número de vítimas, mas pela desídia, incúria ou corrupção que o gerou. Logo, a denúncia formal do Ministério Público atenuou responsabilidades e culpas.
Quem errou? Os delegados de polícia exageraram em 13 mil folhas inconsistentes e inócuas? Ou o Ministério Público, acometido de um súbito temor reverencial pelo poder? Sim, pois, a característica do Ministério Público de ser mais rígido do que a polícia, não ocorreu no horror de Santa Maria.
O subprocurador-geral de Justiça explicou aqui que os membros do Ministério Público atuaram “ancorados nos limites da lei, evitando criar falsas expectativas sobre as possibilidades legais de responsabilizações”. Perfeito! Não se duvide da intenção de correta interpretação da lei. Aplicar a lei, porém, não é armazenar números de artigos e parágrafos, como se empilham sacos, um no outro. Acima dos códigos e da legislação está o “espírito das leis” (com que Montesquieu redefiniu o Direito) e sua inter-relação com o real.
Uma tragédia com 242 mortos não pode ser interpretada com a mesma visão ou o mesmo espírito de um acidente de trânsito ou uma rixa de bêbados que termine à bala.
O presidente da Associação dos Familiares das Vítimas qualificou de “indecência” a libertação dos réus e as demais decisões da área judicial como “uma troca de favores”. A veemência denota uma visão geral, que a própria Justiça deve desmentir com fatos concretos, para que, amanhã, não se pergunte sobre os abjetos objetos de tanta leniência face ao horror.*JORNALISTA E ESCRITOR
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