Um golpe no coração
CLEIDI PEREIRA E HUMBERTO TREZZI
Porto Alegre adormeceu no sábado com a terrível imagem de um dos seus mais notórios cartões-postais em chamas. Era como se o Inferno de Dante tivesse se aberto sobre o vetusto prédio do Mercado Público de Porto Alegre e engolido seus 143 anos de história. Labaredas se erguiam até quatro metros acima do seu edifício em estilo neoclássico, com torres e muretas arredondadas que, a todos parecia, desmoronariam em questão de horas. Mas não. Feito fênix, o prédio que abriga 111 lojas e restaurantes (oito estabelecimentos foram atingidos no segundo andar) resistiu ao seu quarto incêndio. E, para espanto de quem jamais esquecerá aquelas horas de horror, há possibilidade de que ele volte a funcionar nos próximos dias.
Quem estava nos altos do Mercado Público diz que o fogo começou no segundo andar, entre três restaurantes, por volta de 20h30min – ninguém costuma olhar no relógio, em meio ao pavor. Para a imensa maioria, foi a primeira experiência do gênero. Afinal, o fogo tinha assolado o prédio em 1912, 1976 e 1979, deixando de dar o ar da sua desgraça há mais de três décadas.
Mas então aconteceu. O prédio, talvez o mais frequentado do Rio Grande do Sul (50 mil visitantes/dia), pegou fogo. Ninguém sabe ainda a origem, que pode ser elétrica ou até por escapamento de gás. Extintores havia, mas as tentativas de uso não conseguiram debelar as chamas. Em segundos, a parte situada na esquina das avenidas Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos virou tocha, e as chamas se espalharam. As pessoas fugiram assim que sequências de explosões começaram a ocorrer, possivelmente causadas por botijões de gás.
As labaredas eram visíveis a quarteirões. Toda a região do Centro foi isolada para a chegada dos bombeiros, que de início tinham pouco equipamento (página 12) (apenas um caminhão com escada capaz de atingir o topo do edifício), o que provocou críticas como a do presidente da Associação dos Oficiais da Brigada Militar, José Carlos Ricarddi Guimarães. Ele diz que existem cerca de 3 mil bombeiros no Estado e o efetivo deveria ser de 11 mil, caso fossem respeitados padrões da Organização das Nações Unidas (ONU). Uma investigação da Polícia Civil mostrará se houve negligência antes e depois do incêndio. Já se sabe que o prédio, administrado pela prefeitura, não tem Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI) (página 10).
A quase destruição levou autoridades ao local. O prefeito José Fortunati foi a pé de casa até lá. O coronel Silanus Mello, subcomandante da BM, já chegou vestido com capote de bombeiro anti-chamas, que costuma guardar em casa por ter sido oficial dos bombeiros por 15 anos. O vice-governador Beto Grill também correu para o local ao receber a notícia que ninguém gosta de ouvir quando exercia uma função muito eventual: a de governador. O titular do governo, Tarso Genro, está em Portugal. Comandante do Corpo dos Bombeiros, o tenente-coronel Adriano Krukoski se preparava para ir a um aniversário quando foi avisado por colegas da principal guarnição de combate a fogo na Capital, a dos Açorianos, que iam para o local. Eles afirmam ter chegado em quatro minutos. O comandante da BM, coronel Fábio Duarte Fernandes, acredita que o pior foi evitado.
– Ninguém acabou ferido com gravidade, e acredito que o prédio não está comprometido, apesar de ter ficado bastante danificado – avalia.
Perícias preliminares indicam que o coronel Fábio está certo. Após duas horas, o fogo foi debelado. Na manhã de domingo, sob olhares incrédulos e com cheiro da fumaça ainda impregnando o ar, comerciantes com permissão para entrar no prédio custaram a acreditar na bênção: a destruição era bem menor que a imaginada. Até os animais à venda foram resgatados. Foi um festival de suspiros e lágrimas, mas, acima de tudo, de promessas de reconstrução (página 16).
É o caso da família de Nadja Demezur Melo, 33 anos, do Restaurante Gambrinus, com quase meio século de tradição no Mercado Público. Dos grandes incidentes que marcaram a história da estrutura, que é patrimônio dos gaúchos, os Melo só não sentiram os impactos da enchente de 1941. O pai e o avô de Nadja se viram obrigados a recomeçar duas vezes, nos incêndios de 1976 e 1979. Desta vez, foram poupados dos estragos.
– Mas fica a dor pela história que o Mercado tem e, como a gente é como uma família aqui, acaba sofrendo pelas perdas dos outros – pondera Nadja, que cresceu brincando com o irmão entre as bancas do local.
Outros, entretanto, não tiveram a mesma sorte. Denize Viana, 60 anos, e Jorge Rosa, 54 anos, que há uma década realizam mensalmente a feira do vinil no Mercado Público (venda de LPs), calculavam prejuízo de até R$ 30 mil por expositor – um total de R$ 240 mil. Os discos raros ficavam armazenados no segundo pavimento da estrutura, o mais danificado.
– É o nosso ganha-pão. Esperamos que coloquem um outro lugar à nossa disposição – afirma Rosa.
Denize não lamenta o prejuízo:
– Perdi uma sobrinha no incêndio da boate Kiss, então, vou tirar mais essa de letra.
A comoção não é só dos comerciantes. Frequentadores assíduos do Mercado Público, como a aposentada Janete Conceição de Sá Oliveira, também deixaram suas residências para, com frio e chuva, conferir de perto a situação do prédio.
– O Mercado é tudo pra mim. Compro aqui minha comida e até meus panos de prato para bordar – conta, antes de interromper sua fala para consolar um grupo de conhecidos comerciantes.
O prefeito Fortunati, que tem marcado um encontro com a presidente Dilma Roussef para tentar um financiamento para recuperação do Mercado (página 14), acredita que da quase tragédia pode vir uma lição:
– O Mercado vai se recuperar. E sairá dessa melhor do que está.
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