ZERO HORA 31 de março de 2013 | N° 17388 ARTIGOS
Flávio Tavares*
A tragédia de Santa Maria evolui, agora, para um patamar perigoso, que pode, até, beirar a indecência. Num trabalho minucioso e coerente, o inquérito policial indiciou ou responsabilizou 28 pessoas, mas nenhuma delas admite qualquer vinculação, ingerência ou participação nos fatos que levaram ao horror da madrugada de 27 de janeiro. Todos permanecem atrevidamente altivos, sem esboçar arrependimento por terem sido negligentes, ineptos e descuidados. Ou por conivência com a corrupção.
Começando nos donos da boate Kiss e terminando no prefeito, cada qual parece ver nos 241 cadáveres apenas um número ao acaso, como os que apostamos na loteria ou na Mega Sena. Para eles, nada significam as detalhadas 13 mil páginas que reconstruíram os labirintos da tragédia, como se os testemunhos, filmes e documentos não comprovassem que a desídia plantou o crime. O prefeito Cezar Schirmer eximiu-se de toda responsabilidade com uma expressão infeliz que soa, até, como escondida culpa. Chamou a conclusão do inquérito de “aberração jurídica”, como se aberrante não fosse a negligência municipal ao licenciar a boate. Ou a pilha de corpos inertes!
Enquanto os implicados continuarem a atribuir a tragédia à “fatalidade”, a obscenidade da mentira triunfará. Até se, no futuro, os responsáveis forem condenados, faltará o essencial. O elo de confiança estará quebrado e é terrível viver sem confiar na autoridade ou em quem nos oferece um produto ou um divertimento. Ou em quem nos deleita com música e nos queima com fogo.
A partir do minucioso inquérito policial, como atuará o Ministério Público? Talvez o processo desemboque no Tribunal de Justiça, pois o prefeito de Santa Maria usufrui de “foro privilegiado”, essa duvidosa regalia distante do preceito de que “todos são iguais perante a lei”. Então, num paradoxo, Santa Maria não poderá julgar seu prefeito. A tarefa recairá num tribunal que pouco o conhece, mesmo legalmente apto.
O comandante regional dos bombeiros e seus subordinados também terão “foro especial”: a Corte da Brigada Militar, tribunal corporativo, pouco afeito a lidar com crimes tão amplos como os de agora.
Com o mesmo atrevimento com que os responsáveis se dizem “inocentes”, indago se a Corte Militar ousaria aplicar a teoria do “domínio do fato” e chegar às chefias da Brigada? Ou, mais alto ainda, ao próprio governador, que – mesmo sem qualquer participação – nomeou e manteve chefes que, por sua vez, designaram negligentes ou foram apáticos com a corrupção?
No crime de Santa Maria, as culpas são extensas e muitos os culpados. Ninguém quis matar, mas uma soma de atitudes acabou construindo a matança coletiva.
Os vizinhos da rua protestaram pelo ruído da música e o Ministério Público firmou um Termo de Ajustamento de Conduta com a boate para usar material acústico. E, sob fogo, a tal espuma acústica (barata e inadequada) expeliu cianeto e morte. Nos donos da boate, a obsessão pelo lucro fácil. Na Gurizada Fandangueira, o perigo da ingenuidade. Na prefeitura, nos bombeiros e nos inspetores do Crea, o desleixo. E, talvez em contraponto, a propina.
A culpa extensa recai em muitos, mas não para confundir, e sim para punir a todos com rigor. Não cabe apenas chorar pelos que jamais retornarão, mas punir todos os responsáveis de forma exemplar. Só assim, o horror não se repetirá como macabra rotina no futuro.
P.S. – O filme documentário O Dia que Durou 21 Anos, lançado agora em sete capitais (aqui, no Espaço Itaú do Shopping Bourbon), desvenda os segredos da participação dos EUA no golpe de 31 de março de 1964. O diretor Camilo Tavares é meu filho e eu realizei as entrevistas com americanos e militares brasileiros.
Flávio Tavares*
A tragédia de Santa Maria evolui, agora, para um patamar perigoso, que pode, até, beirar a indecência. Num trabalho minucioso e coerente, o inquérito policial indiciou ou responsabilizou 28 pessoas, mas nenhuma delas admite qualquer vinculação, ingerência ou participação nos fatos que levaram ao horror da madrugada de 27 de janeiro. Todos permanecem atrevidamente altivos, sem esboçar arrependimento por terem sido negligentes, ineptos e descuidados. Ou por conivência com a corrupção.
Começando nos donos da boate Kiss e terminando no prefeito, cada qual parece ver nos 241 cadáveres apenas um número ao acaso, como os que apostamos na loteria ou na Mega Sena. Para eles, nada significam as detalhadas 13 mil páginas que reconstruíram os labirintos da tragédia, como se os testemunhos, filmes e documentos não comprovassem que a desídia plantou o crime. O prefeito Cezar Schirmer eximiu-se de toda responsabilidade com uma expressão infeliz que soa, até, como escondida culpa. Chamou a conclusão do inquérito de “aberração jurídica”, como se aberrante não fosse a negligência municipal ao licenciar a boate. Ou a pilha de corpos inertes!
Enquanto os implicados continuarem a atribuir a tragédia à “fatalidade”, a obscenidade da mentira triunfará. Até se, no futuro, os responsáveis forem condenados, faltará o essencial. O elo de confiança estará quebrado e é terrível viver sem confiar na autoridade ou em quem nos oferece um produto ou um divertimento. Ou em quem nos deleita com música e nos queima com fogo.
A partir do minucioso inquérito policial, como atuará o Ministério Público? Talvez o processo desemboque no Tribunal de Justiça, pois o prefeito de Santa Maria usufrui de “foro privilegiado”, essa duvidosa regalia distante do preceito de que “todos são iguais perante a lei”. Então, num paradoxo, Santa Maria não poderá julgar seu prefeito. A tarefa recairá num tribunal que pouco o conhece, mesmo legalmente apto.
O comandante regional dos bombeiros e seus subordinados também terão “foro especial”: a Corte da Brigada Militar, tribunal corporativo, pouco afeito a lidar com crimes tão amplos como os de agora.
Com o mesmo atrevimento com que os responsáveis se dizem “inocentes”, indago se a Corte Militar ousaria aplicar a teoria do “domínio do fato” e chegar às chefias da Brigada? Ou, mais alto ainda, ao próprio governador, que – mesmo sem qualquer participação – nomeou e manteve chefes que, por sua vez, designaram negligentes ou foram apáticos com a corrupção?
No crime de Santa Maria, as culpas são extensas e muitos os culpados. Ninguém quis matar, mas uma soma de atitudes acabou construindo a matança coletiva.
Os vizinhos da rua protestaram pelo ruído da música e o Ministério Público firmou um Termo de Ajustamento de Conduta com a boate para usar material acústico. E, sob fogo, a tal espuma acústica (barata e inadequada) expeliu cianeto e morte. Nos donos da boate, a obsessão pelo lucro fácil. Na Gurizada Fandangueira, o perigo da ingenuidade. Na prefeitura, nos bombeiros e nos inspetores do Crea, o desleixo. E, talvez em contraponto, a propina.
A culpa extensa recai em muitos, mas não para confundir, e sim para punir a todos com rigor. Não cabe apenas chorar pelos que jamais retornarão, mas punir todos os responsáveis de forma exemplar. Só assim, o horror não se repetirá como macabra rotina no futuro.
P.S. – O filme documentário O Dia que Durou 21 Anos, lançado agora em sete capitais (aqui, no Espaço Itaú do Shopping Bourbon), desvenda os segredos da participação dos EUA no golpe de 31 de março de 1964. O diretor Camilo Tavares é meu filho e eu realizei as entrevistas com americanos e militares brasileiros.
*JORNALISTA E ESCRITOR
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