SANTA MARIA, 27/01/2013
28 a caminho da Justiça
CARLOS WAGNER E HUMBERTO TREZZI
O Dia D das investigações sobre a maior tragédia da história gaúcha teve solenidade, impacto e, sobretudo, surpresa. A divulgação dos resultados do inquérito que apura as causas das 241 mortes no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (ocorrido em 27 de janeiro), foi um petardo que impactou as esferas políticas e administrativas. Das 28 pessoas que, no entender da Polícia Civil, deveriam ser responsabilizadas direta ou indiretamente no episódio, 13 (quase a metade) são bombeiros. Mas a prefeitura santa-mariense também sofreu abalo, com seis integrantes da administração municipal apontados por crimes ou ações que levaram às mortes. A começar pelo prefeito Cezar Schirmer, quadro histórico do PMDB, a quem os policiais sugerem que seja processado por homicídio culposo (negligência) e improbidade administrativa (má gestão).
Os indiciamentos, a rigor, se dividem em três grandes grupos: pessoal envolvido com a boate, os músicos, administradores municipais e bombeiros. Sobrou para todos, fizeram questão de ressaltar os delegados que atuaram no inquérito. Primeiro o núcleo de administradores da danceteria, todos indiciados por homicídio. A preocupação dos policiais em dar uma satisfação à comunidade fica também evidente nos detalhes. A começar pela transmissão do anúncio do relatório do inquérito, feita ao vivo pela mídia. Não por acaso, o palco da divulgação foi um auditório do Centro de Ciências Rurais, a faculdade mais atingida na tragédia que ceifou, sobretudo, alunos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Bombeiros foram duramente atingidos
O inquérito foi esmiuçado num powerpoint, no qual o delegado regional de Polícia, Marcelo Arigony, enumerou detalhes dos detalhes. O incêndio, iniciado às 3h17min da madrugada do dia 27, deixou além de 241 mortos outros 623 feridos. Só a soma deles supera a capacidade de lotação da boate, que era de 691 pessoas. Além da superlotação, o inquérito concluiu que a danceteria não tinha luzes e sinais de emergência (153 testemunhas afirmaram isso) e, também, que os seguranças e barras de contenção dificultaram a saída das vítimas.
Os responsáveis pelo inquérito criticam – e muito – o trabalho dos bombeiros. A primeira falha seria a concessão, sucessivas vezes, de alvará de funcionamento para uma casa noturna sem condições de segurança. Dois bombeiros seriam responsabilizados por homicídio doloso (intencional) por essa liberalidade e outros dois, por homicídio culposo (não intencional). Além disso, como já havia adiantado Zero Hora, outro grupo de bombeiros também foi apontado, pela Polícia Civil, como possível culpado pela morte de cinco voluntários civis que ingressaram na boate para salvar vidas e acabaram morrendo envenenados pelos gases liberados no incêndio. A sugestão dos policiais civis é que sete bombeiros respondam na Justiça Militar por homicídio culposo.
– Os bombeiros não impediram a entrada dessas pessoas na boate e, em alguns casos, estimularam que tentassem o salvamento, sem condições técnicas e sem equipamento. Essa irresponsabilidade resultou em mortes – comenta o delegado Arigony.
Em 40 segundos, as luzes se apagaram
Os bombeiros, os primeiros a liberar o funcionamento da boate, foram duramente atingidos pelo inquérito. Incluindo aí o comandante regional dos bombeiros de Santa Maria, tenente-coronel Moisés Fuchs, que poderá responder por homicídio, na Justiça Militar. Junto com 10 subordinados. Já na esfera municipal o prefeito Schirmer e três secretários encabeçam uma lista de seis atingidos pelo inquérito, cinco dos quais podendo vir a sofrer processo judicial por homicídio.
A Polícia Civil teve o cuidado de convidar para a cerimônia, além de repórteres e policiais, representantes das famílias das vítimas. É o caso de Leo Becker, pai da estudante Erika, 22 anos, e Adherbal Ferreira, pai de Jenifer, 22, que perderam as filhas no incêndio. Os dois choraram quando o delegado Marcelo Arigony rodou dois vídeos de vítimas que mostram o inferno em que se transformou a Kiss. Em 40 segundos, as luzes se apagaram e a fumaça envolveu o ambiente. Ao ver a divulgação de 28 nomes como possíveis culpados pela tragédia, Becker elogiou. Entre lágrimas, resumiu:
– Foi um trabalho maravilhoso. É um importante primeiro passo.
Um primeiro passo que já causou baixas. O tenente-coronel Moisés Fuchs, comandante dos bombeiros de Santa Maria e um dos que a Polícia sugere que seja processado por homicídio, foi afastado do cargo ainda ontem.
Caso de 13 mil páginas
FRANCISCO AMORIM
Ao reunir 810 depoimentos, o maior inquérito da Polícia Civil gaúcha ultrapassou as 13 mil páginas.
Para que o calhamaço de folhas fizesse sentido, as informações relevantes foram catalogadas em um banco de dados que subsidiou a redação do relatório final de 188 páginas entregue ontem à Justiça de Santa Maria.
A estratégia deu fôlego à investigação. Em um caso sem precedentes no Estado, o enorme volume de declarações poderia ser um obstáculo. Em vez de emperrar a apuração, as pilhas de papel foram transformadas em dados estatísticos que ajudam a dar contorno à tragédia.
– Esse levantamento nos permitia encontrar dados importantes rapidamente e reunir trechos de depoimentos que davam conta de uma mesma questão – explica o delegado regional Marcelo Arigony.
O trabalho silencioso da jovem delegada Luiza Sousa, há pouco mais de dois anos na instituição, não foi feito com ajuda de programa de computador específico para o trato de informações estatísticas.
A policial listou cada depoimento em um software de texto comum, usando as horas de folga para a missão adicional imposta a si. Com o trabalho quase artesanal, no entanto, os delegados à frente do caso puderam apresentar com exatidão quantas pessoas presenciaram, por exemplo, o início do incêndio, viram o extintor falhar ou foram barradas por seguranças. Além de ajudar a equipe policial a firmar convicção nos indiciamentos, o levantamento permite a compreensão dos fatos que desencadearam o incêndio que matou 241 pessoas.
O relatório sobre os 52 volumes do inquérito revela ainda que os policiais não se limitaram a ouvir suspeitos, analisar documentos e aguardar laudos do Instituto-geral de Perícias (IGP). Quebras de sigilo telefônico e de e-mails foram solicitados ao Judiciário. Parte do material reunido, no entanto, será usado em outras investigações que surgiram a partir do incêndio. Entre elas, a de irregularidades envolvendo empresas em nome de bombeiros e familiares.
– Nem tudo pode ser apurado agora em apenas 55 dias. Alguns fatos que surgiram serão apurados em seu tempo – explica o delegado Sandro Meinerz.
Comandante afastado
O governador Tarso Genro afastou ontem à tarde o comandante regional dos Bombeiros de Santa Maria, Moisés da Silva Fuchs. O inquérito apontou indício de que o tenente-coronel praticou crime de homicídio culposo (não intencional). Tarso informou o afastamento pouco depois de deixar uma reunião em Brasília e de tomar conhecimento do relatório da polícia.
– Isso não significa uma condenação prévia – ponderou Tarso.
Segundo o governador, apenas não é adequado que um oficial incluído no relatório da Polícia Civil por indícios de prática de homicídio culposo permaneça no comando. Tarso acrescentou que o resultado da investigação não deve manchar a imagem do Corpo de Bombeiros, que teve outros integrantes citados:
– Os bombeiros fazem um trabalho extraordinário. Se algum bombeiro teve conduta irregular, isso não deve atingir a corporação. A corporação de bombeiros do Rio Grande do Sul é de alta qualidade e amada pela população. As pessoas que erraram, e isso vai ser verificado agora, vão pagar de acordo com as penas determinadas em lei.
O governador elogiou o trabalho policial, que qualificou como “exaustivo” e “muito bem feito”, mas sublinhou que cabe ao Ministério Público definir se os indiciados serão denunciados ou não.
Cezar Schirmer, a grande surpresa
A sugestão de que o prefeito Cezar Schirmer seja processado por homicídio culposo e por improbidade como um dos responsáveis pelo incêndio na Kiss é a bomba – e a controvérsia política – do inquérito divulgado ontem. Até uma semana atrás, os cinco delegados encarregados de elucidar a maior tragédia gaúcha tinham uma dúvida: o prefeito seria responsabilizado no inquérito? Dificilmente, era o consenso entre eles. A atuação do mandatário da cidade na tragédia foi indireta. Nomeou secretários, que chefiavam fiscais, que olharam papéis, produzidos por bombeiros. E só os bombeiros teriam entrado na boate para fiscalizar as condições de segurança.
Ou seja: assim como Lula no caso Mensalão, Schirmer – um quadro histórico nacional e fundador do PMDB – teria sido o último a saber da arapuca que era a Kiss. E então o relatório veio com a surpresa, um golpe na biografia do prefeito: os policiais acreditam existirem fatos capazes de fazer Schirmer enfrentar processo criminal por homicídio culposo. Teria sido negligente na fiscalização da danceteria.
O que fez os delegados mudarem de opinião? Schirmer acredita que há motivações políticas, já que bateu duas vezes o PT (partido do governador Tarso Genro) em eleições num dos seus redutos, Santa Maria.
Os policiais juram que foi escolha técnica. Justificam que Schirmer pode responder por homicídio com base na teoria do domínio do fato. Muito citada no Direito, ela diz que a autoria de um crime não pode se limitar a quem pratica pessoal e diretamente o delito. Ela estabelece diferença entre autoria e participação. Schirmer, claramente, não é autor do incêndio, nem estava perto da boate. O problema é que o prefeito é, em última instância, responsável por nomear aqueles que devem fiscalizar locais públicos, entre eles as casas noturnas. É como o engenheiro que responde, criminalmente, por uma obra malfeita pelos trabalhadores da construção e gerenciada pelo capataz.
Os capatazes de Schirmer, aliás (os seus secretários), também foram responsabilizados. É o caso de Miguel Passini e Luiz Alberto Carvalho Junior, secretários municipais. Eles chefiavam fiscais que deveriam ter fechado a boate e não apenas aplicado multas. E que não viram que os alvarás dos bombeiros estavam vencidos. Secretários e fiscais agora correm risco de processo pelas mortes.
O delegado Sandro Meinerz, relator do inquérito, justifica a inclusão do nome do prefeito e também a recomendação de processo por improbidade (má gestão) contra Schirmer:
– A sociedade foi ferida de morte. O prefeito administra as secretarias que se omitiram na fiscalização. Há nexo causal entre as mortes e a administração municipal.
“Absurdo jurídico”, afirma prefeito
CARLOS WAGNER E MARILICE DARONCO
Foi pelo rádio, em seu gabinete, no prédio da Sociedade União dos Caixeiros Viajantes (SUCV), no Centro de Santa Maria, que o prefeito Cezar Schirmer (PMDB) ouviu a coletiva da Polícia Civil sobre o encerramento do inquérito policial que apura responsabilidades relativas à tragédia da Boate Kiss. Minutos depois, ele deixou o prédio, visivelmente abalado e dizendo que falaria com a imprensa somente mais tarde. Segundo sua assessoria, ele “precisava de um tempo para se recompor”.
Como desdobramento da investigação, o inquérito será remetido à Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada pela Câmara de Vereadores de Santa Maria, para apurar supostos atos de improbidade administrativa do prefeito e para a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para averiguar a eventual responsabilidade criminal de Schirmer, “havendo indícios da prática de homicídio culposo”, de acordo com o texto do documento. Além disso, será enviado um ofício ao Ministério Público, noticiando possíveis práticas de improbidade administrativa por nove pessoas, entre elas dois servidores da prefeitura – Beloyannes Orengo de Pietro Júnior e Marcus Vinicius Bittencourt Bierman, dois secretários – de Mobilidade Urbana, Miguel Caetano Passini, e do Meio Ambiente, Luiz Alberto Carvalho Júnior–, o ex-secretário Marcelo Zappe Bisogno e o prefeito.
Assim que deixou o prédio, Schirmer foi para casa e conversou com os secretários, que foram indiciados por homicídio culposo e teriam manifestado a intenção de colocar o cargo à disposição. Ele ficou no local pouco menos de duas horas durante as quais o telefone não parou de tocar. De lá, só saiu para um pronunciamento. Visivelmente abalado, com as mãos trêmulas e, em alguns momentos procurando pela mão de sua mulher, Fátima Schirmer, ele falou por 11 minutos e 22 segundos. Aceitou responder apenas cinco perguntas da imprensa.
Schirmer garantiu ter colaborado com a investigação e disse ter sido tomado de surpresa com o inquérito, que ele classificou como “aberração jurídica” e “absurdo jurídico”. Afirmou, ainda, que observa indícios de tentativa de manipulação política da investigação e que os delegados envolvidos nela teriam feito afirmações sobre questões que não são de sua competência.
Pelo Faceboock, o delegado Marcelo Arigony respondeu a Schirmer: “Aberração é brincar com sentimento de 241 famílias.”
A quem caberá julgar?
ADRIANA IRION
Ao afirmar na conclusão do inquérito que há indícios da prática de crime – homicídio culposo – por parte do prefeito Cezar Schirmer, a Polícia Civil causou alvoroço não só no executivo municipal de Santa Maria, mas também no Ministério Público (MP) e no Judiciário.
Promotores e juízes foram bombardeados pela seguinte questão: onde passaria a tramitar o caso, já que Schirmer goza de foro privilegiado para ser processado – criminalmente – no Tribunal de Justiça (TJ)?
Há controvérsia na resposta e vários cenários possíveis. Por enquanto, como o inquérito foi entregue na Justiça de Santa Maria e há réus presos, o entendimento é de que o MP local tem cinco dias para se manifestar, com denúncia, ou remetendo o caso ao TJ com base no suposto envolvimento de Schirmer.
A tendência é de que os quatro suspeitos presos sejam denunciados (a lei determina que, depois da conclusão do inquérito, o MP tem prazo de cinco dias para denunciar quem estiver preso) e os promotores peçam mais diligências para, só depois, dizer se entendem que há mesmo indícios de crime cometido pelo prefeito. Se detectar isso, o MP terá de enviar o caso para a Procuradoria-geral de Justiça, que o repassará ao TJ. A análise sobre eventual crime cometido pelo prefeito passaria então a ser feita pela procuradoria de prefeitos (MP de 2ª instância). Os procuradores poderiam denunciar o prefeito, se entenderem haver elementos para isso, pedir mais diligências ou até o arquivamento do caso em relação a Schirmer.
Cisão do processo é uma possibilidade
Qualquer que seja a manifestação dos procuradores, ela será ainda apreciada por três desembargadores, em julgamento realizado em sessão no TJ. Conforme o presidente da 4ª Câmara, desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, o caso só voltaria a tramitar na Justiça de Santa Maria se a decisão da 4ª Câmara fosse pelo arquivamento da investigação contra Schirmer.
Segundo o desembargador, o fato de Schirmer ter foro privilegiado e, por isso, ser processado no TJ, faz com que todos os demais denunciados também sejam processados na 4ª Câmara. Há entre advogados, promotores e até juízes, um entendimento, considerado minoritário, de que poderia haver cisão do processo. Ou seja: ficaria no TJ apenas a parte relacionada ao prefeito.
Familiares se emocionam
O vice-presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Léo Becker, parabenizou a Polícia Civil pelo indiciamento de 16 pessoas e elogiou a inclusão do prefeito Cezar Schirmer:
– Toda vez que o prefeito se manifestava, ele se blindava. A polícia desmascarou essa blindagem. Parabéns à polícia pela coragem. Concretizou-se o que eu esperava.
Becker disse, ainda, que acredita num julgamento exemplar para mostrar, a nível nacional e mundial, a Justiça sendo feita. O presidente da entidade, Adherbal Ferreira, avaliou que ainda precisa analisar o resultado para dar uma opinião mais embasada. Segundo Ferreira, a investigação foi considerada satisfatória e a associação vai se reunir para debater o inquérito.
Seis representantes da entidade acompanharam a divulgação do resultado do inquérito. Eles ficaram bastante emocionados e se abraçaram durante a apresentação de um vídeo que mostrava o momento do inicial do incêndio. Um segundo vídeo, com imagens do momento em que o fogo toma conta da boate e todas as luzes se apagam, também foi passado. O áudio foi cortado por ser considerado muito pesado pela Polícia Civil. Os familiares se abraçaram durante a divulgação dos indiciados.
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