Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

domingo, 31 de março de 2013

RHODE ISLAND, LIÇÕES PARA SANTA MARIA

ZERO HORA 31 de março de 2013 | N° 17388

RHODE ISLAND, 10 ANOS DEPOIS

CARLOS GUILHERME FERREIRA | WEST WARWICK (EUA)

Separados por 8 mil quilômetros, Rio Grande do Sul e Rhode Island enfrentaram, cada um a seu tempo, um trágico incêndio. Aos gaúchos, porém, existe a possibilidade de aprender com os erros e acertos dos americanos na condução das investigações e, mais tarde, na atribuição de responsabilidades por perdas irreparáveis. É do que trata a reportagem a seguir.

Uma triste prévia da tragédia de Santa Maria aconteceu 10 anos atrás, em uma fria noite de inverno no Estado de Rhode Island, nordeste americano.

Eram 23h7min de 20 de fevereiro de 2003 quando Daniel Biechele, integrante da banda de rock Great White, acendeu um sinalizador no palco da The Station, casa noturna montada em um prédio de madeira construído na década de 1940. Em questão de segundos, a espuma negra colada nas paredes para fins de isolamento acústico foi tomada pelo fogo, provocando fumaça e instaurando pânico entre os pelos menos 462 frequentadores.

Em 180 segundos, o prédio estava consumido pelas chamas. Após seis minutos, saía o último sobrevivente. Dez anos depois, em meio a sisudos prédios de tijolinho e ao laranja das paisagens rurais, Rhode Island ainda chora os cem mortos e mais de 200 feridos.

À semelhança do que apontam as investigações do incêndio na boate Kiss, o caso The Station originou-se de uma mistura de negligência e legislação permissiva. Localizada na pequena West Warwick, na Região Metropolitana de Providence, capital de Rhode Island, a boate passou por duas vistorias dos bombeiros meses antes da tragédia. A espuma tóxica – semelhante à usada na Kiss – acabou ignorada duas vezes pelo inspetor Denis Larocque. Ele notou nove pequenas irregularidades e constatou as correções – “All OK”, escreveu em laudo.

Sobre a espuma, nenhuma linha. Assim como o nome Larocque entre os indiciados. Só Biechele e os irmãos donos da The Station, Michael e Jeffrey Derderian, responderam pelas mortes. Graças a um acordo, Jeffrey escapou da prisão. Michael e Biechele passaram menos de três anos atrás das grades. Estão livres.

Às 329 pessoas, entre vítimas e familiares dos mortos, restou repartir – inclusive com os advogados – uma indenização de US$ 176 milhões, paga por 65 réus, sete anos após a tragédia. E o consolo de ver mudanças concretas na legislação estadual de prevenção de incêndios, transformada em referência mundial.

The Station, de fato, mudou para sempre Rhode Island.


O renascimento de Gina


As palavras suaves e o sorriso da americana Gina Russo, 45 anos, rosto redondo e cabelos escuros com mechas vermelhas, levam a uma pergunta inevitável.

Como é possível?

Porque Gina sobreviveu de forma bárbara ao fogo. Figurou entre as últimas vítimas a deixar a boate The Station, carregada e já sem consciência. Passou 11 semanas em coma e quatro meses e meio hospitalizada. Queimou 40% do corpo e prejudicou de maneira permanente os pulmões. De tão grave o quadro, acabou desacreditada pelos médicos. A ponto de um padre ir ao hospital, três dias após o incêndio, para a extrema-unção.

Mas Gina sobreviveu para contar a própria história, como fez em uma tarde de enregelar as mãos e congelar a tinta da caneta. Encontrou a reportagem de ZH no local onde ficava The Station, agora um gramado queimado pelo frio, do tamanho de uma quadra de futsal, circundado por dezenas de cruzes e objetos em homenagem às cem vítimas. Da antiga estrutura, só restaram a moldura de uma placa onde havia o logo da boate, à margem da pista da Cowesett Avenue, e um pouco de madeira apodrecida, usada nas cruzes.

Pois Gina, secretária em um hospital de Rhode Island, em nada se intimida com o cenário onde escapou da morte e perdeu o noivo, Alfred. Carrega no peito um broche vermelho, em formato de coração, com a inscrição “2003-2013”. Diz ser uma pessoa melhor.

– Nos primeiros cinco anos, foi muito difícil de entender o que aconteceu. É uma estrada bastante longa – constata.

Para superá-la, tomou o caminho da ajuda aos companheiros de tragédia. Gina escreveu um livro e preside uma fundação que pretende construir um memorial no terreno da boate, talvez nesta primavera americana, se o dinheiro assim o permitir. Também criou fortes laços com outros sobreviventes. Conforme o jornalista G. Wayne Miller, que cobriu a tragédia pelo The Providence Journal e acompanhou ZH em Rhode Island, ela virou amiga de Joe Kinan – outro exemplo de superação.

O fogo consumiu cabelos, orelhas, um dos olhos e a sensibilidade das mãos de Kinan. Confinou-o por 11 meses em um leito hospitar. Em 10 anos, submeteu-se a 123 cirurgias. Na última, em janeiro, foi a Boston receber uma nova mão de um adolescente chamado Troy Pappas, 18 anos, autodeclarado doador de órgãos. O procedimento correu bem: em 17 de fevereiro, três dias antes do 10º aniversário da tragédia, Kinan posou para a capa do The Providence Journal ao lado da noiva, Carrie Pratt. Ambos sorriam.

Gina também se casou, com Steve, há cinco anos. Ela cria os filhos Alex, 19 anos, e Nick, 16. E conta conhecer Paula e John Arpen, que marcaram o primeiro encontro na The Station, na noite do incêndio. Ela se feriu. Ele, não. Hoje estão juntos. Uma cerejeira plantada pelo casal agora ocupa o terreno.

Nem todos, porém, domaram traumas responsáveis por muitas noites mal-dormidas.

– A raiva pode tomar conta da sua vida. Muita gente ainda está revoltada – lembra Gina.

Sentimentos à parte, The Station virou local de peregrinação. Em duas horas por lá, ZH presenciou a chegada de seis pessoas – nenhum parente de vítima. Entre eles, estavam Gary Gebler e o sobrinho, Randy Jorgesen, ambos das redondezas. Randy, um músico com cabelos grisalhos presos em um rabo de cavalo, tocava com sua banda em outro estabelecimento na noite da tragédia. Ao voltar para casa, disse contabilizar mais de 30 ligações na secretária eletrônica.

– Um amigo teve o primo morto – afirma.

– Conheci gente que morreu. Duas ou três pessoas – esforça-se Gary, um homem franzino, de modos simples e sinceridade crua.

Ele comenta, sem piedade:

– Vocês (brasileiros) tiveram um incêndio também. Com a mesma espuma.


Só três acabaram presos

Se em Santa Maria já são 28 pessoas oficialmente responsabilizadas pela tragédia na boate Kiss, em Rhode Island ainda há revolta com o desfecho do caso The Station na esfera criminal. As cem mortes acabaram atribuídas a somente três pessoas: os irmãos Michael e Jeffrey Derderian, donos da casa noturna, e Daniel Biechele, integrante da banda Great White e responsável pelo início do incêndio. Nenhum deles passou mais de três anos na prisão.

As penas dos três foram definidas em 2006, três anos após o incêndio. Primeiro, Biechele. Ao aceitar acordo em troca da confissão de culpa por cem homicídios culposos, em maio, pegou quatro anos de prisão em regime fechado – dos quais cumpriria somente dois. Quatro meses depois, viria a definição do destino dos irmãos Derderian. Era setembro e a formação de um júri popular já se desenrolava quando surgiu um controverso acordo a portas fechadas.

O settlement impôs a Jeffrey três anos de liberdade condicional, mais 500 horas de serviços comunitários, e quatro anos em regime fechado a Michael. Nada de júri, para tristeza da sobrevivente Gina Russo:

– Foi perturbador saber que só três foram responsabilizados.

Corretor de seguros e consultor financeiro, Michel passou dois anos e nove meses na prisão. Hoje mora em Saunderstown, 31 quilômetros ao sul de West Warwick, com a nova mulher, ex-funcionária da The Station. Antes da tragédia, ganhava US$ 95 mil por ano e tinha barco, avião Cessna, Mercedes-Benz, BMW e uma casa de meio milhão de dólares. Ex-repórter de um canal local de TV, Jeffrey vive com a mesma mulher, na mesma casa. Abandonou o jornalismo e aceitou emprego em uma empresa de amigos.

Biechele está na Flórida, onde tenta recomeçar a vida. Nunca mais se envolveu com bandas de rock.

Menor valor pago ficou em US$ 16 mil

Exatos 2.702 dias se passaram entre o incêndio em Rhode Island e o início do pagamento das indenizações às vítimas e familiares dos mortos. Após sete anos de batalha judicial, chegou-se à soma de US$ 176.193.718, bancada por 65 réus e dividida entre 329 pessoas. Por meio de um intrincado sistema de cálculo (leia ao lado), cada envolvido na tragédia recebeu determinada quantia – a maior ficou em US$ 12,3 milhões, reduzida a US$ 7,7 milhões líquidos após dedução de custas de processo e honorários de advogados. Os representantes, aliás, dividiram US$ 58 milhões, ou 33,3% das indenizações.

O menor valor pago alcançou US$ 16,6 mil líquidos (pouco mais de R$ 33 mil) e contemplou quem escapou ileso da casa noturna. Estado e prefeitura de West Warwick arcaram com US$ 10 milhões, cada – o maior valor, US$ 30 milhões, coube à uma emissora local de TV. A Justiça decidiu que o trabalho de um repórter cinematográfico no momento da tragédia prejudicou a saída dos frequentadores.












Killer Show: The Station Nightclub Fire, America’s Deadliest Rock Concert, escrito por John Barylick, detalha a tragédia que marcou o show do Great White em West Warwick, Rhode Island. O evento, ocorrido em 20 de fevereiro de 2003, teve fim abrupto após um incêndio consumir o local. 100 pessoas morreram, entre elas o guitarrista da banda, Ty Longley. Outros 240 se feriram.

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