SANTA MARIA, 27/01/2013
O caminho para evitar novas tragédias como a que deixou 239 mortos na boate Kiss, em Santa Maria, tem obstáculos, mas pode ser percorrido. Autoridades, especialistas e pais de vítimas reunidos ontem pela manhã no primeiro Painel RBS de 2013 no Estado debateram quais lições o desastre deixou e o que ainda precisa ser aprendido para as cenas dramáticas testemunhadas pelo mundo no dia 27 de janeiro jamais se repetirem.
No programa dividido em três blocos, sob o tema Depois da tragédia de Santa Maria – O Que Mudou e o Que Deve Mudar?, os participantes fizeram um balanço do duro aprendizado resultante das circunstâncias do incêndio. Confira, a seguir, um resumo do debate que contou com a participação dos jornalistas Carolina Bahia, Nilson Vargas, Rosane Marchetti e Tulio Milman.
AS LIÇÕES
Necessidade de se unificar a legislação
Ao despertarem para a importância de reforçar as medidas de prevenção a incêndios em todo o país, autoridades depararam com uma dificuldade essencial: o emaranhado de leis municipais e estaduais que complica a fiscalização e sobrepõe competências.
Em diferentes manifestações no painel, os participantes reforçaram a importância de se unificar a legislação, uma discussão já iniciada em comissão criada na Câmara Federal e na Assembleia Legislativa.
Subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do Ministério Público, Marcelo Dornelles disse que o MP já encaminhou ao governo do Estado uma análise com sugestões para homogeneizar as normas e clarear competências:
– Há muitas lacunas na legislação. Os bombeiros podem ou não interditar? Se fica nessa insegurança. Em Porto Alegre, pode, em Santa Maria, não, porque as leis são diferentes. Precisamos definir com mais clareza.
Mobilização que garante agilidade
Entre tantas falhas que conduziram à tragédia em Santa Maria, a agilidade no atendimento aos sobreviventes virou um exemplo positivo de como a mobilização permanente pode fazer a diferença.
Superando o estereótipo de que o Sistema Único de Saúde é sinônimo de lentidão, a Força Nacional do SUS conseguiu prestar assistência rápida e efetiva aos pacientes do incêndio da boate Kiss.
Criada em 2011, por ocasião das enchentes que afetaram a região serrana do Rio de Janeiro, a estrutura capitaneada pelo Ministério da Saúde pôde garantir o atendimento imediato e de qualidade porque não diminuiu seu ritmo de trabalho nos períodos de calmaria. Foram realizadas simulações até no Carnaval.
– Estamos nos preparando não só para situações como essa, que não se repitam, mas para os grandes eventos no Brasil durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo – destacou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que transferiu o gabinete para o Estado nos primeiros dias após a tragédia.
Importância de monitorar vítimas
Não basta garantir o cuidado imediato aos sobreviventes. Para que reconstruam suas vidas, precisarão de cuidados a longo prazo.
No âmbito da saúde, isso será garantido por meio de um monitoramento ao longo de cinco anos, para verificar suas condições pulmonares.
Durante o painel, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, anunciou que o primeiro chamamento aos sobreviventes da Kiss será no dia 9 de março, no Hospital Universitário de Santa Maria. Todos receberão cartas convidando para comparecer ao ambulatório, em um trabalho articulado pela Secretaria Estadual da Saúde.
Reforço ampliado para a fiscalização
O poder público se mobiliza para reforçar a fiscalização preventiva. Antes do início das aulas, por exemplo, o Ministério Público chamou secretários municipais e estaduais de Educação e Obras para discutir o plano de prevenção a incêndio em escolas públicas, para monitorar a situação e garantir adequações.
A mudança de atitude para garantir a aplicação das leis foi destacada pelo argentino José Iglesias, representante da organização Que No Se Repita, de familiares de vítimas do incêndio na boate República Cromañón, de Buenos Aires:
– Existem coisas elementares que não requerem mudanças de leis. Em Buenos Aires tivemos poucas mudanças.
Uma das alterações foi justamente o aumento da frequência da fiscalização nas casas noturnas da capital argentina.
ONDE FALTA AVANÇAR
Imprudência e a cultura da negação
Não são apenas as autoridades que têm lições a aprender após a morte de 239 jovens e adultos na boate de Santa Maria. Uma das avaliações do painel é que cidadãos e empreendedores também precisam superar um traço nocivo da cultura brasileira que minimiza os riscos de comportamentos imprudentes.
– Falou-se aqui que temos uma cultura do risco. Na verdade, temos uma cultura da negação de risco. Surpreende que não haja mais acidentes – declarou o antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ruben Oliven.
Essa cultura se reflete no descompromisso das pessoas com regras de segurança em áreas tão diversas como a prevenção a incêndios ou a acidentes de trânsito. Para o especialista, o caminho para a mudança de mentalidade envolve a criação de regras claras e a responsabilização efetiva de quem descumpra as normas.
Aplicar e fiscalizar as leis já existentes
Desde 27 de janeiro, muito se falou sobre a complexidade e a falta de clareza da legislação anti-incêndio. Mas o desastre deixou outra constatação: o país tem dificuldade de aplicar as leis que já existem. Apesar de não serem as ideais, seriam capazes de evitar catástrofes se fossem respeitadas. No caso de Santa Maria, por exemplo, normas municipais impedem o uso de material inflamável em ambientes como o da Kiss.
– Há um emaranhado de legislação, isso é indiscutível. Mas se o emaranhado fosse cumprido, não haveria a tragédia de Santa Maria – declarou o consultor legislativo de Segurança Pública e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Fernando Wanderley Rocha.
O especialista afirmou que a legislação nacional sobre o tema está sendo revisada em Brasília, mas que há limites para a influência da União nessa área. Por isso, além de melhorar as leis, Estados e municípios ainda precisam aprender a aplicar melhor o que já existe.
Sociedade civil ainda frágil
A fragilidade da sociedade civil no Brasil, pouco afeita à organização para cobrar direitos e exigir a ação preventiva das autoridades nas mais variadas áreas, é outro desafio à espera de solução. Segundo o professor da UFRGS Ruben Oliven, a mobilização social é “fraca” no país.
Depois de tragédias semelhantes em casas noturnas, foram criadas associações de parentes de vítimas em Buenos Aires, onde queimou a boate República Cromañón, e em Santa Maria. O presidente da entidade gaúcha recém-criada, Adherbal Alves Ferreira, afirmou que jamais poderia imaginar que o poder público não estivesse fiscalizando adequadamente as casas noturnas.
– A partir de agora, estaremos irmanados. Temos de tomar providências – declarou Ferreira.
Articular diferentes órgãos autuadores
Iniciativas começam a ser tomadas, mas o Rio Grande do Sul e o Brasil ainda não contam com um sistema eficiente para compartilhar responsabilidades de fiscalização em áreas complexas como a prevenção de incêndio.
Cidades como Porto Alegre dispõem, por iniciativa própria, de uma legislação que atribui de maneira mais clara as responsabilidades entre Estado e prefeitura.
O desafio é fazer com que os diferentes órgãos de fiscalização, como secretarias municipais, Corpo de Bombeiros e outros se complementem, e não se sobreponham ou deixem lacunas.
– Nas repartições de competência que são estabelecidas constitucionalmente, há competências expressas da União e do município. O que não for deles, é dos Estados. Não há em lugar nenhum atribuições de competências específicas para legislar sobre incêndios – afirma Fernando Wanderley Rocha, consultor legislativo de Segurança Pública e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, que participou do painel desde Brasília.
Jogo de empurra envolvendo prefeitura e governo do Estado
Uma das constatações do encontro é que a negação de responsabilidade ainda é uma prática das autoridades gaúchas. Passado mais de um mês da tragédia, a prefeitura de Santa Maria e a Secretaria Estadual da Segurança Pública, responsável pelo Corpo de Bombeiros, mantiveram a disputa sobre qual nível de governo teve participação primordial nas falhas de fiscalização que permitiram o desastre. O mais recente capítulo do jogo de empurra ocorreu durante o primeiro bloco do Painel RBS.
– Nós examinamos a documentação e não há nada que indique que tenha havido alguma falha do ponto de vista da prefeitura – afirmou o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, já em sua manifestação inicial.
O secretário estadual da Segurança Pública, Airton Michels, foi convidado a falar em seguida sobre medidas de prevenção. Acabou analisando de forma crítica o papel do município:
– A prefeitura, quando autoriza que uma casa funcione, deve se certificar se o bombeiro fez o papel que a ele competia, se os instrumentos de incêndio foram realmente verificados. As prefeituras devem examinar com seus corpos de engenheiros se existem portas que permitem evacuação.
Schirmer lançou a responsabilidade de volta às mãos do secretário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário