SANTA MARIA, 27/01/2013
A tragédia segundo a Polícia
É hoje. Após milhares de litros de café, média de 15 horas por dia de trabalho, noites maldormidas e dias intermináveis, mais de 800 testemunhas ouvidas, 10 mil páginas de interrogatórios e perícias acumuladas, os policiais anunciarão às 14h30min quem eles consideram responsáveis pelo incêndio que matou 241 pessoas na boate Kiss. Pelo menos sete pessoas devem ser indiciadas por homicídio doloso eventual – assumiram o risco de matar, ao contribuírem para a falta de segurança na danceteria. Essas poderão enfrentar júri popular. O relatório da Polícia Civil também deverá indicar omissões – mesmo que as falhas não tenham sido criminosas. Entre os que serão citados, promotores de Justiça e o próprio prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer.
Num PowerPoint especialmente preparado para o anúncio da conclusão do inquérito, os policiais pretendem demonstrar de forma didática como uma cadeia de atos irresponsáveis abreviou o futuro de centenas de pessoas, a maioria jovens. O destaque ficará por conta dos alvarás de funcionamento vencidos – e da falta de rigor na sua fiscalização. Da superlotação de uma casa que tinha, na prática uma só saída. De bretes construídos para evitar a saída de clientes inadimplentes e que funcionaram como barreiras fatais para as vítimas. De extintores inoperantes. De vedações acústicas improvisadas e que exalaram um gás mortífero ao queimar. De séries de multas aplicadas pela ausência de licenciamento, sem que a boate fosse fechada. E, na culminância desse relato, os policiais citarão nomes dos que consideram culpados por essa situação.
O anúncio dos indiciados no inquérito atrairá atenção mundial. E não há exagero na palavra mundo. O incêndio, ocorrido em Santa Maria em 27 de janeiro, é um marco tenebroso na história do planeta. Tanto que, em menos de 24 horas, convergiram para a cidade do centro do Estado repórteres da Europa, de toda a América e até da China.
Como é usual em casos complicados – e estamos diante da maior investigação da Polícia Civil gaúcha – as dúvidas se acumularam na reta final do inquérito sobre o incêndio. Os cinco delegados que acompanham o caso passaram a manhã, tarde e parte da noite dos três últimos dias numa espécie de conclave, com participação do “papa” de todos eles, o chefe de Polícia Ranolfo Vieira Junior. Sequer telefonemas de familiares atendiam.
Os cinco delegados se dividiram. Luiza Souza tomou depoimentos, Sandro Meinerz tratou do contato permanente com o Instituto-geral de Perícias, Gabriela Zanella interrogou testemunhas e fez um esboço do relatório, Marcos Vianna fez toda a análise documental (de prefeitura e bombeiros, sobretudo) e Marcelo Arigony, o delegado regional, era o cérebro a pensar os rumos do inquérito. O trabalho de montagem do quebra-cabeças contou com apoio de 10 escrivães e inspetores. Em 50 dias, mais de 30 pessoas fizeram investigações e outras 20 prestaram assistência – entre elas, pessoal do serviço de assessoramento jurídico e da Comunicação Social da Polícia Civil.
Apelo no Facebook: “Desejem-nos força”
Ontem, os delegados não viram a luz do sol. O trabalho começou às 8h, passou pela supervisão de Ranolfo e se estendeu por mais de 15 horas. A expectativa era adentrar a madrugada escrevendo. Apesar do assédio da imprensa, os policiais evitaram dar entrevistas e desviaram das câmeras e dos microfones. Chegaram a brincar com os jornalistas, que se revezavam no saguão, mas não escondiam a tensão.
Em seu perfil no Facebook, Arigony pediu “compreensão e cooperação” na reta final. E avisou em sua página nas redes sociais:
“Em razão do número incontável de ligações telefônicas e mensagens que temos recebido, informo que estamos trabalhando incessantemente para concluir o procedimento”.
Com olheiras profundas, que o acompanham desde a data do incêndio, Arigony encerrou a mensagem com um apelo:
“Desejem-nos força!”
Os delegados planejam acordar cedo para acertar os últimos detalhes do material e preparar a apresentação à imprensa. Um desfecho aguardado com ansiedade pelos santa-marienses. Em uma hora, pelo menos 50 pessoas pararam em frente à boate Kiss na tarde de ontem, na Rua dos Andradas, no centro da cidade. Das três pistas daquela rua, uma delas, em frente à danceteria, permanece isolada para peregrinação das pessoas.
Nas outras duas faixas, os motoristas reduzem a velocidade em sinal de respeito e para ver como está o cenário das mortes. Ali aparecem curiosos, pessoas que perderam amigos e até familiares de vítimas. As mensagens, fixadas em cartazes colados aos tapumes em frente à fachada do prédio, convidam a uma reflexão sobre a vida – e também sobre as responsabilidades por essa que foi a maior tragédia do Rio Grande do Sul.
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