A dor é tanta, que não se compensa sequer
com o contraponto da mobilização solidária e rápida
FLÁVIO TAVARES*
Cada relato é mais pungente que o outro, cada cena mais comovente e perturbadora. A dor é profunda e se expande. O país e o mundo se emocionam com o horror, mas temos de confessar _ com vergonha e ira _ que todos nós temos parte neste horror!
O ponto brutal da tragédia de Santa Maria, ápice espantoso nesse assassinato coletivo, é a revelação pública de como a mentira nos envolve e domina. Assassinato? Por que dizer assim, se a nota dos donos da boate, escrita por advogados "a bem da verdade e diante dos inúmeros boatos" (sic), chama tudo de "fatalidade" e atribui a explicação só a Deus? Quem ousará pensar em crime ou culpas, se o comandante-geral do Corpo de Bombeiros frisou três vezes à TV que tudo na boate estava em ordem e que a lei nem sequer exige mais de uma porta de saída? Ou se o prefeito disse quase o mesmo?
Fatalidade? Acidente? A mentira supera a linguagem e vira estilo, como agora, e todos fogem às responsabilidades. Sim, pois a fatalidade e os acidentes não são algo autônomo, não têm corpo ou movimento. São invenções humanas para desculpar o injustificável. Tudo o que o descaso nunca procurou evitar ou corrigir, vira "fatalidade" ou "acidente".
***
Mais do que lugar de diversão, as boates são catedrais do aconchego e do amor. Ali os jovens exteriorizam devaneios e esperanças, trocam abraços e beijos. Morrer numa boate é ser executado pelas costas pelos próprios sonhos. E, agora, com o suspiro final envolto na nuvem da banda que, com a irresponsável pirotecnia, buscava o "clímax" num orgasmo de acordes e fagulhas.
O execrável é que esta tragédia não nasce, sequer, de erro técnico em algo sofisticado, mas de coisa corriqueira transformada em crime. Da cobiça de irresponsáveis que se dizem "empresários", da banda tentando sucesso pela extravagância infantil (não pela música) e de um poder público burocrático (ou corrompido) que só verifica papéis, não a realidade, incapaz de "licenciar" corretamente sequer a diversão.
***
Tanta dor não se compensa sequer com o contraponto da solidariedade do povo de Santa Maria: médicos, enfermeiras, motoristas e voluntários que se mobilizaram na madrugada, enquanto todos nós dormíamos. A presidente Dilma no Chile, o governador na Capital, o prefeito ali mesmo, sem adivinhar a tragédia a seus pés. Dormia também o comandante do Corpo de Bombeiros quando seus soldados chegaram à boate.
O Estado veio depois, e teria de ser assim. Não há Estado-vidente, que saiba tudo de antemão.
Mas por que o governador Tarso se calou quando o comandante do Corpo de Bombeiros insistiu em dizer à TV (para o país inteiro) que tudo estava em ordem na boate? Por que o santa-mariense coronel Guido Pedroso Melo passou por cima dos mortos e absolveu por antecipação? Tal disparate não merecia, pelo menos, uma advertência por assassinar o senso comum, a razão e as evidências? Por que o cuidado extremo do governador (ainda insepultos os corpos) ao dizer que, sem apuração, "falar em culpa de alguém é falta de respeito", quando o descaso fora evidente em todas as áreas? Falta de respeito a quem? Aos mortos? Pensariam exumar os corpos para saber o grau da asfixia?
Mais ainda: por que o prefeito Cezar Schirmer desconversou (e desviou o assunto) quando a TV Globo lhe indagou se era possível permitir apenas uma saída numa boate para mil pessoas? Por que se negou a mostrar o expediente da boate na prefeitura e só o fez no terceiro dia? E se alterassem os papéis para abrandar culpas?
Indago com veemência? Como não ser veemente à frente de duzentos e tantos jovens (o número cresce) mortos ao embalo do embuste e da mentira? Ou por nossa tolerância e omissão!
*Jornalista e escritor
FLÁVIO TAVARES*
Cada relato é mais pungente que o outro, cada cena mais comovente e perturbadora. A dor é profunda e se expande. O país e o mundo se emocionam com o horror, mas temos de confessar _ com vergonha e ira _ que todos nós temos parte neste horror!
O ponto brutal da tragédia de Santa Maria, ápice espantoso nesse assassinato coletivo, é a revelação pública de como a mentira nos envolve e domina. Assassinato? Por que dizer assim, se a nota dos donos da boate, escrita por advogados "a bem da verdade e diante dos inúmeros boatos" (sic), chama tudo de "fatalidade" e atribui a explicação só a Deus? Quem ousará pensar em crime ou culpas, se o comandante-geral do Corpo de Bombeiros frisou três vezes à TV que tudo na boate estava em ordem e que a lei nem sequer exige mais de uma porta de saída? Ou se o prefeito disse quase o mesmo?
Fatalidade? Acidente? A mentira supera a linguagem e vira estilo, como agora, e todos fogem às responsabilidades. Sim, pois a fatalidade e os acidentes não são algo autônomo, não têm corpo ou movimento. São invenções humanas para desculpar o injustificável. Tudo o que o descaso nunca procurou evitar ou corrigir, vira "fatalidade" ou "acidente".
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Mais do que lugar de diversão, as boates são catedrais do aconchego e do amor. Ali os jovens exteriorizam devaneios e esperanças, trocam abraços e beijos. Morrer numa boate é ser executado pelas costas pelos próprios sonhos. E, agora, com o suspiro final envolto na nuvem da banda que, com a irresponsável pirotecnia, buscava o "clímax" num orgasmo de acordes e fagulhas.
O execrável é que esta tragédia não nasce, sequer, de erro técnico em algo sofisticado, mas de coisa corriqueira transformada em crime. Da cobiça de irresponsáveis que se dizem "empresários", da banda tentando sucesso pela extravagância infantil (não pela música) e de um poder público burocrático (ou corrompido) que só verifica papéis, não a realidade, incapaz de "licenciar" corretamente sequer a diversão.
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Tanta dor não se compensa sequer com o contraponto da solidariedade do povo de Santa Maria: médicos, enfermeiras, motoristas e voluntários que se mobilizaram na madrugada, enquanto todos nós dormíamos. A presidente Dilma no Chile, o governador na Capital, o prefeito ali mesmo, sem adivinhar a tragédia a seus pés. Dormia também o comandante do Corpo de Bombeiros quando seus soldados chegaram à boate.
O Estado veio depois, e teria de ser assim. Não há Estado-vidente, que saiba tudo de antemão.
Mas por que o governador Tarso se calou quando o comandante do Corpo de Bombeiros insistiu em dizer à TV (para o país inteiro) que tudo estava em ordem na boate? Por que o santa-mariense coronel Guido Pedroso Melo passou por cima dos mortos e absolveu por antecipação? Tal disparate não merecia, pelo menos, uma advertência por assassinar o senso comum, a razão e as evidências? Por que o cuidado extremo do governador (ainda insepultos os corpos) ao dizer que, sem apuração, "falar em culpa de alguém é falta de respeito", quando o descaso fora evidente em todas as áreas? Falta de respeito a quem? Aos mortos? Pensariam exumar os corpos para saber o grau da asfixia?
Mais ainda: por que o prefeito Cezar Schirmer desconversou (e desviou o assunto) quando a TV Globo lhe indagou se era possível permitir apenas uma saída numa boate para mil pessoas? Por que se negou a mostrar o expediente da boate na prefeitura e só o fez no terceiro dia? E se alterassem os papéis para abrandar culpas?
Indago com veemência? Como não ser veemente à frente de duzentos e tantos jovens (o número cresce) mortos ao embalo do embuste e da mentira? Ou por nossa tolerância e omissão!
*Jornalista e escritor
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