A cidade que morreu com seus jovens busca uma razão para renascer nos sonhos dos que se foram e na luta dos heróis que evitaram um desastre ainda maior
Amauri Segalla, enviado especial a Santa Maria
Confira como as testemunhas do desastre registraram o caso:
O engenheiro agrônomo Sylvio Henrique Bidel Dornelles acordou sobressaltado na manhã do domingo 27. Seu apartamento foi invadido pelo som de motores e sirenes de ambulâncias e carros de polícia. E, de repente, viu-se em um macabro camarote. De sua varanda, ele assistia aos veículos parando ali defronte, onde fica o Centro Desportivo Municipal de Santa Maria. Deles, um a um, eram desembarcados jovens sem vida. Foram 234 ao longo do dia. A tragédia o alcançou logo cedo e foi se aproximando cada vez mais, devastando-o cada vez mais. Logo ele ficou sabendo que os corpos vinham da boate Kiss, que a filha Clarissa frequentava até que o pai a proibisse, depois que ela presenciou uma briga no local. Nos rostos desesperados de quem chegava em seguida, à procura de notícias dos estudantes que saíram de casa na noite anterior para ir a uma festa e não haviam voltado, enxergava figuras conhecidas. “Alguns pais não tiveram coragem de reconhecer os corpos e me chamaram para ir junto”, diz Dornelles na quarta-feira 30, enquanto aponta, da varanda do apartamento, os galpões antes cheios de caixões e agora vazios. Ele tem dificuldade para falar sobre isso. Enquanto conversa, o som da voz sai baixo, quase inaudível, e as frases são curtas. Professor do curso de agronomia da Universidade Federal de Santa Maria, ele convivia diariamente com 31 daqueles rapazes e moças mortos. Eram seus alunos. Dezoito, de uma mesma classe. Dornelles, como toda a Santa Maria, também tinha sido atingido. Também não dorme mais em paz. Também não consegue trabalhar. Também não sabe onde buscar forças para recomeçar. Sabe apenas que a cidade jamais será a mesma.
Segunda-feira 28: a população de Santa Maria faz manifestação
um dia após o incêndio que enlutou a cidade
“Você precisava ver, antes disso tudo Santa Maria transbordava alegria”, diz. Na tarde daquela quarta-feira, as alamedas arborizadas da Universidade Federal de Santa Maria deveriam estar movimentadas. Em um dia normal, os prédios que abrigam cursos concorridos de agronomia, farmácia e veterinária, além de muitos outros, deveriam ressoar aquela excitação típica de um ambiente estudantil. Em um dia comum, haveria vida pulsante ali. A Federal parece ter sido abandonada às pressas, como se mísseis inimigos fossem desabar sobre ela. Não se vê uma mínima fração de seus 27 mil estudantes. Os 1,8 mil professores sumiram de vista. Não há ninguém nos laboratórios. Nem nas bibliotecas. As lanchonetes estão às moscas. As luzes, apagadas. A Universidade Federal de Santa Maria está deserta por um motivo óbvio: luto. Até a sexta-feira 1º, 103 de seus alunos tinham morrido em decorrência do incêndio na boate Kiss. Pelo menos outros 30 continuavam internados. Como a festa na Kiss foi promovida por diretórios estudantis, é provável que mais de 500 pessoas ligadas de alguma forma à instituição estivessem na boate na noite da tragédia. As aulas foram suspensas por uma semana, mas é certo que a dor vai durar muito mais. E não apenas ali. Santa Maria tem sete universidades frequentadas por 40 mil alunos. No verão, às 9 horas da noite ainda tem sol e as pessoas ficam na rua até tarde. Os índices de violência são baixos, não falta trabalho nas áreas rurais e o universo estudantil atrai professores e pesquisadores, que fizeram surgir, nos últimos anos, uma nova classe média. O paraíso não existe mais.
Fábio José Cervinski, 26 anos, era um dos alunos do curso de agronomia da Universidade Federal de Santa Maria. Há três anos, o jovem estudante era só bom humor. Havia vencido a luta contra a leucemia, doença que o vitimou quando ele tinha apenas 17. Fábio passou seis anos doente, submeteu-se a tratamentos dolorosos, inúmeras sessões de quimioterapia, até, finalmente, receber o diagnóstico de cura. Desde então, não se cansava de festejar com a família. Durante a luta contra o câncer, o jovem disse aos parentes que, se morresse, gostaria de ser enterrado ao lado da sepultura do avô, na pequena cidade de Paim Filho, no interior do Rio Grande do Sul. Ninguém mais se lembrava disso. Afinal, o câncer era passado e Fábio tinha um futuro enorme pela frente. Mas o garoto que sobreviveu a uma luta de seis anos contra a leucemia não resistiu ao gás venenoso da Kiss.O incêndio trouxe o pedido de volta à memória dos pais e foi atendido. Fábio agora está ao lado do avô em Paim Filho.
Para fazer a foto desta reportagem, o professor Dornelles voltou à sala de aula da Federal de Santa Maria. Ele veste camiseta preta e tem nas mãos as provas que os alunos fizeram na manhã da sexta-feira 25. Pouco tempo depois, na madrugada de sábado para domingo, quatro desses estudantes morreram no incêndio da boate Kiss. Dornelles mal consegue olhar para os papéis. Ele os entrega ao repórter, depois pega de volta com cuidado e acaba por colocar tudo sobre a mesa. Então, motivado provavelmente por um instinto de proteção, abraça com força o material. “Vou ligar para os pais, porque agora isso pertence a eles”, diz. Uma das provas foi feita em papel rosa enfeitado com desenhos de borboletas coloridas. É da estudante do primeiro semestre de agronomia Rhaíssa Gross Curia, uma das vítimas fatais da Kiss. O professor Dornelles não consegue parar de pensar nela e em todos os outros. “Eu paguei R$ 15 pelo convite da festa na Kiss”, diz ele. “Fiz isso para ajudar os alunos. A menina que me vendeu o convite morreu.”
A Kiss dilacerou muitas famílias e foi ainda mais cruel com a dona de casa Elaine Gonçalves. Aos 63 anos, ela enfrentou há dois anos a morte do marido e agora se depara com o desaparecimento dos dois filhos, Deivis e Gustavo Marques Gonçalves. Depois da perda do companheiro, os jovens eram a alegria de dona Elaine, os únicos capazes de preencher seus dias. “Eles saíram de casa juntos, bonitos e faceiros, para nunca mais voltar”, diz a mãe. O mais velho, Deivis, 33 anos, morreu na própria boate e foi enterrado na segunda-feira 28. O irmão, Gustavo, 21, passou três dias internado, mas não resistiu. Na terça-feira 29, Elaine recebeu a notícia da morte do segundo filho. “Deus estipulou um tempo certo para eles, então o que me resta é aceitar”, diz. Inconsolável, a dona de casa sabe que agora terá de enfrentar uma nova realidade. “Meu Deus, é um pesadelo, mas eu sei que é sem eu acordar. E agora minha casa vai ficar vazia.” Apesar da prostração causada pelas perdas irreparáveis, dona Elaine não está conformada. “Quero justiça”, afirma, enquanto mantém os punhos fechados.
A morte inesperada é chocante sob todos os aspectos, mas ainda mais dramática para os pais. Nos cemitérios de Santa Maria, muitos deles não abandonaram o túmulo de seus filhos, mesmo dois ou três dias depois dos enterros. Na quarta-feira 30, Veleda Ames e João Carlos da Silva permaneceram um bom tempo imóveis, abraçados diante da sepultura do filho, Alexandre Ames Prado, 18 anos, estudante de jornalismo que tinha sido sepultado dois dias antes. “Não tenho mais objetivo na vida”, diz Veleda. A menos de 50 metros dali, aconchegados em um banco de cimento, estavam Sandra e Carlos Favarin, pais de Kell e Aline Favarin, estudante de direito que morreu aos 22 anos e que também havia sido enterrada na segunda-feira. “A médica disse que ela não sofreu”, afirma Sandra, tentando, de alguma forma, encontrar conforto, se é que é possível numa situação como essa. Nos cemitérios de Santa Maria , flores frescas estavam por toda parte e dava para ver até os coveiros, habituados à rotina da morte, com lágrimas nos olhos.
Depois de sepultar os filhos, muitos pais preferem enterrar também a tragédia e postergar a longa despedida que vem pela frente – o desvencilhamento das roupas, dos objetos pessoais e das lembranças. Três dias depois da morte da filha Mirela, 21 anos, Helena Rosa da Cruz ainda não teve coragem de jogar a metade do lanche que a jovem havia deixado na geladeira de casa antes de ir à boate Kiss. Ela e o marido, Delçon, também resolveram fechar o quarto da jovem, e do filho, José Manuel, 18, que também perderam na tragédia. “Decidimos fingir que eles estão viajando. E vai ficar assim até termos coragem”, diz Helena, que foi dormir na madrugada do dia 27 tranquila, pois o casal de filhos cuidaria um do outro na balada, como sempre. Perto das 4h, tocou o telefone na casa de Helena. Era uma amiga dos irmãos avisando sobre o fogo na Kiss. O casal correu para o cenário da tragédia e logo percebeu que não encontraria seus filhos lá. Dividiu-se e começou a busca por hospitais. Era começo da tarde do domingo e Delçon e sua esposa, depois de ir e vir de todos os centros de saúde, ainda não haviam encontrado Mirela e José Manuel – os nomes não apareciam em nenhuma lista de feridos. Às 13 horas, o casal se encaminhou para o ginásio Farrezão, onde estavam as centenas de corpos. Os policiais chamavam de dez em dez nomes. Amparada em uma amiga, totalmente desorientada, Helena ouviu, apenas na quinta chamada, o nome de José Manuel. Ele era o corpo 62. Inerte diante do filho, a mãe se deparou com o de Mirela, ao longe. A partir daí, o casal enfrentou, assim como todas as famílias que lá estavam, dilaceradas com as perdas de seus jovens, uma série de filas: para a certidão de óbito e para conseguir caixões nas funerárias, entre outras. Até que Helena pôde ir para casa separar a roupa de seus meninos. Para José Manuel, que fazia parte de um grupo de danças típicas, bombachas, camisa branca, guaiaca, lenço vermelho, botas e boina. Já sua Mirela, vaidosa como ela só, rainha de Carnaval do clube e miss Santa Maria aos 10 anos, um vestido branco com brilhante na gola e um sapato de salto altíssimo. No enterro, todos choraram com e por Helena, que diante dos corpos dos filhos agradeceu a presença dos amigos e acrescentou: “Se eles foram pessoas tão maravilhosas, e se eu estou aqui agora, é porque vocês nos encheram de amor.”
Janaína Portela, 19 anos, não era estudante universitária, nem estava na boate Kiss para se divertir. Moradora da periferia de Santa Maria, do bairro de Chácara das Flores, a jovem estava no epicentro de uma das maiores tragédias da história do País porque se ofereceu para substituir a mãe, Natalícia Moraes da Silva, que estava se sentindo mal, na função de lavar copos durante a festa. Não era a primeira vez que Janaína substituía Natalícia, empregada da boate. A jovem chegou a escapar do incêndio, mas entrou mais duas vezes na Kiss para auxiliar nos resgates de quem ainda sofria lá dentro. Na terceira vez, não conseguiu sair. Esforçada, queria ser veterinária, e era muito querida. Da Chácara das Flores, saíram vans, carros e um ônibus cheio de vizinhos para o enterro, na segunda-feira 28.
É difícil encontrar alguém na cidade que não tenha sentido a tragédia de perto. O recepcionista do hotel diz que o melhor amigo está internado. Você está no restaurante e o dono pede uma salva de palmas para o sobrinho, que saiu ileso da danceteria. Os shoppings e as lojas de ruas colocaram fitas de luto em suas fachadas. Nos carros dos taxistas, uma faixa preta homenageia os mortos. Uma casa colocou um cartaz que pede justiça. No ônibus que faz o trajeto Porto Alegre-Santa Maria, as pessoas relatam o sofrimento de seus entes. Em choque, a cidade ficou paralisada. Na semana passada, o fórum permaneceu fechado. Médicos e dentistas cancelaram consultas. Supermercados não abriram. Santa Maria pareceu viver o delírio da música “O Dia em Que a Terra Parou”, de Raul Seixas.
No meio desse cenário de luto permanente e dessa atmosfera de dor insepulta, brotam as histórias dos heróis anônimos da tragédia de Santa Maria. Se não fossem eles, garantem as pessoas que estavam presentes na angustiante madrugada do domingo 27, muito mais vidas teriam sido perdidas. E a imagem símbolo desses heróis, que correu o mundo, é a do estudante de educação física da UFSM Ezequiel Lovato Corte Real, 23 anos, carregando um homem nos braços pelas ruas de Santa Maria. O jovem acredita ter tirado pelo menos 30 pessoas da boate Kiss, só não sabe se todas elas estavam vivas. Ele estava muito perto do palco, com duas amigas, quando viu o vocalista da banda pegar o sinalizador e apontar para o alto. Viu, também, alguém, que ele não sabe quem, tentar usar o extintor, que não alcançou o forro e, em questão de segundos, o fogo alastrar-se pela espuma do teto. “Formou-se uma manta por cima de nós”, diz. Ezequiel conseguiu manter a calma e conduziu as duas amigas por um caminho alternativo até a porta de saída. No caminho, viu dezenas de pessoas serem pisoteadas e gotas grossas de espuma derretida cair sobre os frequentadores, que gritavam, desesperados. Com as colegas em segurança, Ezequiel, um ex-fisiculturista, não teve dúvida: tirou a camisa, protegeu seu rosto e voltou para o inferno de que havia acabado de escapar. Entrou e saiu da Kiss incontáveis vezes, ao lado dos bombeiros, mas não conseguia avançar mais do que cinco metros, por causa da fumaça espessa. Durante o resgate, a pele descolava do seu corpo. “Puxava os corpos pela parte que conseguia tocar, sem ver. Enquanto puxava um, sentia alguém me segurando. Tentei dar as mãos para dois ao mesmo tempo. Como iria escolher só um?” O estudante só parou sua busca quando constatou que não havia mais ninguém com vida lá dentro. Foi para casa, tomou um banho, descansou por cerca de uma hora e seguiu para o hospital, pois sentia o pulmão roncando. Desde o dia da tragédia, recebe agradecimentos pelo ato heroico. No peito, um sentimento de frustração por não ter conseguido salvar mais gente. “Não me lembro de nenhum rosto das pessoas que salvei. Só lembro o rosto de quem não salvei.”
Como a tragédia afetou todo mundo, uma onda de solidariedade varreu a cidade. E ela começou com as próprias vítimas da tragédia. Muita gente foi salva pelo estudante de educação física Vinícius Rosardo, 26 anos. Tão bravo quanto Ezequiel, ele foi um dos primeiros a sair da Kiss, mas resolveu voltar à boate para ajudar no socorro às vítimas. Segundo relatos de pessoas que o viram em ação, Vinícius, de quase dois metros de altura e 130 quilos, tirou pelo menos 14 pessoas com vida que estavam presas no interior da Kiss, muitas vezes levando uma em cada braço. Não foi seu primeiro incêndio. Quando tinha 12 anos, ajudou o pai a debelar o fogo de uma casa vizinha, carregando baldes. “Se não fossem ele e muitos outros jovens que voltaram para ajudar, essa tragédia teria 500 mortos”, diz o pai do estudante, o gerente de eventos Ogier Rosardo, 51 anos. Em 2012, Vinícius havia se tornado voluntário da Apae e tinha começado a dar aula de dança a idosos. Com formatura prevista para este ano, Vinícius pretendia se mudar para São Paulo, onde queria se tornar lutador de MMA. Parentes contam que ele adorava festas, mas cancelava qualquer compromisso para ajudar um amigo. “Era um rapaz muito humilde. Nunca vi ninguém falar que não gostava dele”, diz o pai. “Brincava que ele era como uma baleia: grande, forte e doce.” Ele salvou muitas vidas, menos a sua. Foi encontrado desacordado dentro da boate e morreu a caminho do hospital.
A solidariedade era vista em todos os lugares. Moradores doaram água e comida, empresários ofereceram veículos para o transporte dos feridos, profissionais especializados se dispuseram a trabalhar voluntariamente. Na tarde da terça-feira 29, a estudante de terapia ocupacional Kássia Flores, 19 anos, corria de um lado a outro dos corredores do Hospital Caridade, onde dezenas de feridos se recuperam. De luvas nas mãos, ela servia lanches e bebidas para os familiares das vítimas. Por que fez isso? Foram duas as razões. “Depois do que aconteceu, eu não podia ficar de braços cruzados”, diz Kássia. Mas havia outro motivo. “Meu primo-irmão morreu no incêndio e eu não consigo ficar em casa.” Os corredores e recepções de hospitais de Santa Maria pareciam, até quase uma semana depois do incêndio, verdadeiros centros universitários. Estavam repletos de jovens que pretendiam visitar irmãos, amigos, primos e namorados.
Passeata no centro de Santa Maria, na noite da
segunda-feira 28, em memória das vítimas da tragédia
A operadora de caixa das Lojas Americanas Alessandra Mattos, 23 anos, não para de pensar nos cinco amigos que perdeu no incêndio da boate Kiss. Mas o que também não sai da cabeça de Alessandra é que ela foi salva pelo ciúme de seu marido. “Eu estava com o convite comprado, mas ele não me deixou ir”, diz. Foi por ciúme e pelo fato de o casal ter um filho de três anos. “Ele disse que era para eu ficar em casa e cuidar do guri. Fiquei com raiva, ameacei, mas não fui.”A corriqueira briga de casal que tanto a irritou, livrou a comerciária do horror daquela madrugada. Todos os seus colegas, com quem ela certamente estaria na casa noturna, morreram na tragédia. Alessandra perdeu os amigos Neiva Carina de Oliveira Marin, Odomar Gonzaga Noronha, Paula Rodrigues Costa e Sandra Victorino Goulart, além de Evelin Costa Lopes, que trabalhava em outra loja. “Tive uma dor no peito horrível quando soube, fui parar no hospital. Fico aliviada por estar viva, mas triste de não tê-los mais por perto”, diz a jovem, que viu seus amigos pela última vez no sábado 26, antes de sair do trabalho. “Eles me abraçaram, me beijaram. Ainda bem.”
Algumas pessoas tiveram o círculo de amizades praticamente destruído. A vendedora Luciane Seger, 27 anos, por exemplo, descobriu na segunda-feira 28 que 23 colegas tinham morrido no incêndio. Era a turma que trabalhava no principal shopping da cidade e que saía junto todo fim de semana. Luciane certamente estaria na festa do sábado 27 na Kiss, ao lado de seus amigos de todas as horas. Mas, no dia da tragédia, a vendedora não pôde ir à Kiss porque estava muito ocupada com os preparativos para um churrasco em família no domingo 27. Por causa disso, desistiu da balada, pois precisaria acordar muito cedo no dia seguinte. Não teria problema, o grupo estaria junto na segunda-feira 28, reunidos trabalhando no shopping, e nos próximos fins de semana, pensou ela, antes de ser assolada com as notícias.“É desesperador pensar no número de pessoas próximas que morreram”, diz Luciane.
A tragédia terá um impacto na teia social de Santa Maria. Novos vínculos afetivos terão que ser criados. Em cidades de pequeno e médio porte, isso é mais difícil. Não aparece tanta gente nova assim, a não ser no início dos anos letivos das universidades, quando levas de calouros chegam para preencher as vagas.
Além das universidades, as Forças Armadas também atraem para Santa Maria pessoas de lugares distantes. O primeiro-tenente do Exército Leonardo Machado Lacerda, 28 anos, foi transferido do Rio de Janeiro apenas 15 dias antes da tragédia. Na madrugada de sábado para domingo, ele quis ir à Kiss com seus colegas para comemorar sua transferência para o Sul. Ele estava muito feliz e animado com as novas perspectivas de carreira. Militar treinado, com físico ágil, Leonardo conseguiu sair com rapidez da boate no momento do incêndio. Mas, como tantos outros, num primeiro momento ele saiu ileso da fumaça que consumiu o teto da boate, mas resolveu voltar para tirar pessoas lá de dentro. Conseguiu salvar um oficial do batalhão em que servia. Com o colega a salvo, retornou para a casa tomada pela fumaça tóxica para tentar buscar duas amigas. Não conseguiu. Tornou-se outro herói e sua página na rede social Facebook está repleta de bonitas mensagens de condolências que lembram seu ato gigantesco.
Toda tragédia é triste, mas a de Santa Maria mexeu com as emoções mais profundas de brasileiros e estrangeiros porque suas vítimas são muito jovens. Até a quinta-feira 31, o número de mortos era de 236. Desses 176 tinham entre 18 e 26 anos. A faixa etária com mais óbitos é a de 18 anos, com 37 perdas, seguida pela de 20 anos (31 mortos) e 19 anos (28 mortos). Santa Maria sofreu ainda mais porque os desaparecimentos se deram no grupo que torna a cidade realmente especial, o de universitários. Os moradores garantem que não há, no Brasil, nenhum lugar que se equipare a Santa Maria na relação entre estudantes de nível superior e a população total.
Eram 3h20 da manhã, apenas um minuto depois de o Corpo de Bombeiros da cidade receber a primeira ligação alertando sobre o incêndio na boate Kiss, quando os amigos da protética Michele Cardoso, 20 anos, receberam a mensagem no Facebook: “Incêndio na Kiss socorro.” Minutos depois, começaram as perguntas: “Tu está bem?” Outro texto questionava: “Como assim? Explica isso”; ou, então: “Sério, Miii?” Um outro parecia gritar: “Miiiiiiii.” Em vão. Michele, que já havia trabalhado na Kiss, foi encontrada morta na boate. Ela estava acompanhada da irmã, Clarissa Lima Teixeira, e do namorado, João Paulo Pozzobon, 20 anos, que também sucumbiram ao incêndio. João Paulo morreu porque, já fora da boate, e contrariando o apelo dos amigos, retornou à Kiss para tentar salvar Michelle, que havia pedido socorro pela rede. O casal havia se conhecido na casa noturna seis meses antes. Foi a primeira grande tragédia brasileira testemunhada e comentada em tempo real pelas redes sociais, principalmente pelos jovens, que se identificaram com as vítimas. O pedido de Michele permaneceu online. Assim como milhões de tuítes e posts relacionados à tragédia de Santa Maria, de todas as partes do mundo, de anônimos e famosos, que se multiplicaram durante a semana.
A faixa etária que frequentava a Kiss era tão baixa que a boate ganhou na cidade o apelido de “Kids.” Era comum ver menores de idade dançando nas pistas e consumindo bebidas alcoólicas. A Kiss também ganhou fama pela virulência com que os seguranças tratavam os frequentadores. Vários jovens disseram para a polícia que já tinham visto cenas de espancamentos motivadas por perda de comandas. Em 2011, a Kiss foi obrigada a pagar ao estudante Renato Michelon R$ 5 mil por agredi-lo na hora do pagamento da conta. “O Renato pagou R$ 100 em dinheiro, mas faltavam R$ 20”, diz a advogada Patrícia Michelon, irmã de Renato e responsável pelo caso. “Como o cartão dele não passou, os seguranças partiram para a agressão.” Renato levou um soco na boca e uma cotovelada no peito – tudo devidamente registrado por testemunhas.
Apesar dos problemas, a Kiss lotava sempre e era a casa preferida dos jovens da cidade. Foi lá que Brady Adrian Gonçalves Rodrigues decidiu comemorar seu aniversário. Lotado na 13ª Companhia do Exército, em Santa Maria, ele fazia planos de retomar o último ano do curso de educação física e, quem sabe, seguir uma nova carreira. O incêndio destruiu suas ambições. Ele morreu ao lado da namorada, Ana Caroline Rodrigues, 19 anos, uma estudante do curso de tecnologia de alimentos da Universidade Federal. Ele tinha acabado de fazer 21 anos.
É manhã de sexta-feira e as alamedas arborizadas da Universidade Federal continuam vazias. Santa Maria, rogai por eles!
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