Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

ENTRE OS VIVOS

ZERO HORA 03 de fevereiro de 2013


O 27 de Janeiro é um buraco na História.
Continuará a sê-lo se não pudermos dar-lhe um significado.


LUIZ ANTÔNIO ARAUJO

Existe pelo menos uma pergunta sobre Santa Maria para a qual jamais encontraremos resposta. Nenhum inquérito policial, nenhuma expiação coletiva, nenhuma elaboração filosófica poderá elucidar o que a Morte, essa miserável, estava fazendo àquela hora na subida da Rua dos Andradas. Em certa medida, essa é a única pergunta que realmente importa para aqueles cujos entes queridos não conseguiram chegar à calçada ou o fizeram apenas para perecer mais tarde em leitos de hospital. Mas não é preciso ter parentes, amigos ou simples conhecidos entre as vítimas e seus familiares para se fazer essa interrogação. O mundo, de repente, coube inteiro em Santa Maria. A Morte pode ser comedida ou desmesurada; naquela madrugada, na ladeira da Andradas, foi desmesurada. Não pode nunca ser transparente. Diante da Morte, nosso escrutínio é sempre pueril. Ela nos abandona a nossa dor e nossas perguntas.

As vítimas tampouco podem ser mobilizadas pela nossa angústia. Nada do que dissermos ou fizermos a propósito de seu desaparecimento poderá movê-las de seu silêncio. Nossa jurisdição, de fato, é bastante modesta: estamos circunscritos ao mundo que, até domingo, era também o dos mais de 200 frequentadores da boate Kiss e do qual se retiraram às pressas. Eles tinham, para aqueles entre nós que os conheciam, o mais elevado dos significados. Agora, estão fora do alcance de nossas lágrimas, palavras e costumes.
A dor da perda, porém, não encerra o problema do que ocorreu no domingo. Esse é também um assunto entre os vivos. Entre os que se inscrevem nessa categoria, não há notícia de algum que tenha o dom de ressuscitar os que se foram. Mas a legislação brasileira, por mais falha que seja, sugere que há, sim, coisas que os vivos podem e não podem fazer. Qualquer cidadão que se dedique a atividades comerciais e de entretenimento, e aí se inclui o ramo de casas noturnas, sabe o quanto o setor é regulamentado, muitas vezes alvo da atenção de distintos órgãos públicos. Um inquérito a cargo da Polícia Civil de Santa Maria deverá apontar em breve se a legislação pertinente foi observada. Outros braços do Estado _ o governo, o Ministério Público, a prefeitura, a Câmara de Vereadores, a Assembleia, os representantes gaúchos no Congresso _ também podem e devem investigar e tomar providências por conta própria.

Alguns temem que, dada a comoção causada pelo episódio, Santa Maria esteja a ponto de se tornar palco de uma caça às bruxas. Os acusados de bruxaria, porém, exerciam suas atividades entre quatro paredes, nas clareiras das florestas ou nas margens de rios, e muitas vezes bastava o testemunho de um vizinho para levá-los à fogueira. As mortes de domingo não foram resultado de uma conjuração. Ocorreram em local público e submetido a uma ampla gama de regulamentos, cujo cumprimento tem de ser verificado, com amplo direito de defesa. Não se sabe de bruxa com CNPJ, feiticeiro optante pelo Simples, mago concursado ou duende com plano de carreira. Nenhuma apuração que não tenha por intuito apurar responsabilidades com base na lei terá guarida. Santa Maria não é Salem.

Desde domingo, a solidariedade com os familiares das vítimas uniu o planeta, da presidente da República a Ronaldo Fenômeno, do Papa a Lady Gaga. Há nisso um indício da extensão do horror despertado pela notícia da morte de tantos jovens, ainda que não se saiba que se chamavam Bibiana, Matheus, Allana, Maicon e muitos outros. O 27 de Janeiro é um buraco na história de Santa Maria e do Rio Grande. Continuará a sê-lo se nós, vivos, não pudermos dar-lhe um significado. Que esse significado seja o da prevenção, da segurança, do respeito à lei e à juventude.

*Jornalista

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