SANTA MARIA, 27/01/2013
Um documento genérico, sem assinatura de responsável técnico, deu início há quatro anos a uma série desastrosa de falhas e omissões que resultaram na tragédia da boate Kiss, em Santa Maria.
A cadeia de irresponsabilidades, escorada em leis ineficientes, inclui os donos da casa noturna, músicos e agentes públicos que deveriam garantir a segurança dos 238 jovens mortos desde a madrugada de 27 de janeiro.
O estopim da catástrofe foi aceso em 26 de junho de 2009. Naquela data, o Corpo de Bombeiros aceitou um apanhado de recomendações simplificadas como se fosse o Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) da danceteria. O documento afiançou o primeiro aval da corporação ao estabelecimento, o que, segundo o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-RS), nunca poderia ter acontecido. Assinado pelo então major Daniel da Silva Adriano, hoje coronel da reserva, o alvará atestando a segurança do local foi emitido em agosto daquele ano.
Oito meses depois, em abril de 2010, a Kiss começou a funcionar com licença do município. O chefe da Equipe de Fiscalização da Secretaria Municipal de Finanças na época, Marcus Vinicius Biermann, deu a chancela para a operação com base na legislação vigente – que não obriga a prefeitura a checar as decisões tomadas pelos bombeiros.
Em mais um capítulo da série de equívocos, o alvará dos bombeiros foi renovado pelo capitão Alex da Rocha Camillo em agosto de 2011 e expirou um ano depois. Passaram-se seis meses sem que a situação fosse regularizada. Mesmo assim, a danceteria manteve as portas abertas aos clientes e ao perigo. Os bombeiros não pediram a interdição. A prefeitura, apesar da documentação vencida, também não. Seus fiscais chegaram a alertar para o fim do prazo, mas não acompanharam a situação.
Como a legislação anti-incêndio é complexa e deixa margem para interpretações, as autoridades escolheram o caminho mais cômodo e se eximiram do encargo. Com base na Lei 10.987, que rege a questão no âmbito estadual, a prefeitura atribui aos bombeiros a responsabilidade. Agora, a Polícia Civil procura esclarecer quem deveria ter agido.
– O inquérito apura o fato. Em decorrência disso, como reflexo, virão as responsabilidades de cada um com os indiciamentos – diz o delegado Marcelo Arigony, responsável pelas investigações.
O último ato da tragédia começou a ganhar forma quando, devido a reclamações sobre barulho, o Ministério Público exigiu dos proprietários a execução de obras para a redução do ruído. As alterações foram feitas em janeiro de 2012, mas Kiko Spohr e Mauro Hoffmann, donos da boate, decidiram acrescentar modificações. Entre elas, a espuma acústica apontada pela polícia como principal causa das mortes por ser altamente inflamável e tóxica.
Até agora, não está claro quem escolheu o material e de quem era a obrigação de fiscalizar especificamente o revestimento. As leis são omissas nesse ponto. Combinada à inércia das autoridades, a omissão tornou-se fatal. O comando dos bombeiros argumenta que esse item não faz parte dos elementos obrigatoriamente analisados nas vistorias. A prefeitura também rejeita o encargo. O MP encaminhou à Casa Civil um anteprojeto sugerindo melhorias na legislação, que está sob análise.
O comportamento evasivo, segundo o professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano, é uma característica de autoridades brasileiras. Não deveria ser assim.
– As autoridades tinham de assumir a responsabilidade pelo ocorrido e responder à população, à Justiça e às instâncias legislativas por sua atuação – afirma Romano.
* Colaborou Lizie Antonello
JULIANA BUBLITZ E MARCELO GONZATTO*
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