O Brasil não pode mais conviver com a rotina de pequenas irregularidades que viram grandes tragédias
Daniela Mendes
Domingo 27 de janeiro. No Centro Desportivo Municipal de Santa Maria, o mais cruel dos dramas, o de um pai a reconhecer o corpo de seu filho, foi encenado 234 vezes.
Domingo 27 de janeiro. No Centro Desportivo Municipal de Santa Maria, o mais cruel dos dramas, o de um pai a reconhecer o corpo de seu filho, foi encenado 234 vezes.
A maior das solidões era sentida coletivamente. Na dimensão do desastre, não havia na cidade flores suficientes para as últimas homenagens a tantas vítimas. No necrotério improvisado, o calor castigava ainda mais os que já estavam sofrendo por suas perdas. Só foi minimizado quando a presidenta Dilma Rousseff, ao chegar ao local, teve a sensibilidade de mandar instalar tendas com refrigeradores de ar para acolher os pais à espera de sua trágica missão
As cenas ainda estão vivas na memória de quem viu a lona do Gran Circo Norte-Americano sumir sob as chamas e matar 503 pessoas em Niterói, 70% delas crianças, em 1961. Da mesma forma, o incêndio que interrompeu a vida de 236 jovens em Santa Maria não terá sido esquecido daqui a 50 anos por quem testemunhou as cenas de horror na boate Kiss. A fumaça escura e espessa que tomou conta do ambiente. Os corpos inertes empilhados pela casa noturna. Os celulares das vítimas que tocavam sem parar, traduzindo a ansiedade de familiares por notícias. Um único aparelho recebeu 104 ligações. O visor mostrava o autor das chamadas: mãe. Nada disso terá desaparecido da memória. A perplexidade e a tristeza permearam todas as conversas na semana passada. O Brasil se emocionou com a dor de cada pai e mãe que enterrou um, às vezes, dois filhos. Um dos sentimentos mais fortes, porém, foi o de indignação. De tão evitável, essa tragédia parece sem sentido, pois ela é resultado da soma de todos os erros, os mais banais e inaceitáveis. É a prova de que as pequenas irregularidades viram grandes tragédias. Por mais chocante, absurdo e intolerável, o holocausto gaúcho tem de ser transformador. As vítimas da Kiss devem ser cultuadas como mártires de um novo país, o da tolerância zero.
O Brasil precisa deixar de ser o país do jeitinho, do improviso, dos pequenos delitos. Não se pode mais aceitar a rotina de contravenções – maiores ou menores – que se repetem como sina. A propina para o guarda de trânsito, o fiscal corrupto e, como pano de fundo, a certeza da impunidade. Na Kiss houve um conjunto de falhas gritantes: existia apenas uma porta que servia como entrada e saída de emergência e ainda com obstáculos que afunilaram o fluxo de pessoas. Não havia sinalização de rota de fuga, o que levou dezenas de jovens a correr para os banheiros onde morreram asfixiados. O extintor não funcionou quando tentaram debelar o fogo que começou após a banda Gurizada Fandangueira disparar fogos de artifício na boate, a espuma que revestia a casa era inflamável e o local não contava com brigada de incêndio. Os seguranças, mal treinados e despreparados, impediram a saída das pessoas em desespero até perceberem do que se tratava. Foram segundos fatais. Os alvarás da prefeitura e o do Corpo de Bombeiros estavam vencidos; mesmo assim a Kiss estava de portas abertas. Em uma década, é o terceiro acidente com a mesma combinação: boate, banda e fogos. Isso levou a mudanças em outros países (leia quadro à pág. 44).
Os jovens de Santa Maria ficaram presos numa verdadeira câmara da morte. A combustão dos materiais usados no revestimento acústico da boate gaúcha intoxicou as vítimas de gás cianeto, o mesmo usado nas câmaras de gás nazistas. Agora, descobriu-se que há milhares de alçapões como a Kiss funcionando em todo o País, alguns com autorização, boa parte sem. São estabelecimentos que abrem suas portas todos os dias sem alvará de funcionamento e desrespeitam regras básicas de segurança. Em São Paulo, existem 600 casas noturnas sem alvará da prefeitura. Mais grave: 70% das boates, salões de clube, bufês e locais de show foram vetados pelos bombeiros nos últimos dois anos, mas não fecharam. De 636 pedidos de vistoria sobre segurança contra incêndio recebidos, apenas 194 foram aprovados. Os outros foram negados por apresentar falhas no projeto ou permanecem em análise para processo de revalidação. Mas, no país da tolerância, continuam funcionando.
As mortes de Santa Maria acordaram as autoridades para a gravidade da situação. De norte a sul, prefeituras e bombeiros saíram em mutirão para fiscalizar as boates. Centenas foram fechadas preventivamente. Manaus lacrou 66 das 98 registradas na cidade. Em Fortaleza, casas de show tiveram de suspender suas atividades por não oferecer sequer 30% das condições de segurança exigidas. No Estado do Rio, 127 estabelecimentos sofreram interdição. Boates famosas como a Nuth e 021 foram lacradas e terão de realizar obras para funcionar. Na capital paulista, os principais empresários da noite se anteciparam e decidiram não abrir na semana passada alegando “luto” pelas mortes em Santa Maria. Agora, correm contra o tempo para regularizar seus estabelecimentos e, assim, proporcionar diversão sem risco.
A banda Gurizada Fandangueira disparou fogos de artifício na boate. O sanfoneiro Danilo Jaques morreu no incêndio. À dir., Mauro Hoffmann, um dos sócios da casa, que foi preso na segunda-feira 28
A presidenta Dilma Rousseff, em encontro com prefeitos, pediu mais fiscalização. “Temos o dever de assumir o compromisso de evitar que coisa semelhante jamais venha a se repetir”, afirmou. É preciso ser intolerante com as irregularidades em casas noturnas, a exemplo da nova lei seca que começou a vigorar na semana passada e fecha o cerco a quem for flagrado dirigindo depois de beber. O infrator não pode mais se esconder no preceito constitucional de não produzir prova contra si mesmo, recusar o bafômetro e sair incólume. Testemunhos, testes clínicos e depoimentos de policiais podem agora comprovar a embriaguez do motorista. Só medidas assim podem acabar com nossas tragédias cotidianas, imensas, como a de Santa Maria, ou não. Faz um ano que uma reforma irregular provocou a queda de três prédios no centro do Rio, matando 17 pessoas (cinco permanecem desaparecidas), mas obras sem autorização continuam ocorrendo. A cada temporada de chuvas, sabemos que vamos ver corpos sendo encontrados sob os escombros de casas que haviam sido erguidas irregularmente em áreas de risco. A cada fim de semana um motorista alcoolizado ceifará uma vida. Eles precisam ser parados.
O incêndio da Kiss comprova que a segurança do público precisa ser a prioridade número 1 dos donos de boates e os frequentadores de baladas devem estar atentos e denunciar quando há problemas. No Estado do Rio, a reação da população já pode ser mensurada. Em apenas quatro dias, até a sexta-feira 1º, o Disque-Denúncia recebeu 441 ligações alertando para supostas irregularidades nas normas de segurança de casas noturnas, barzinhos e espaços de eventos. Para efeito de comparação, em todo o mês de janeiro do ano passado foram apenas 134 chamadas. As redes sociais também são uma poderosa arma para cobrar providências dos empresários. Nenhum vai querer que seu estabelecimento seja “descurtido”.
Há regras básicas para tornar as baladas mais seguras:
As cenas ainda estão vivas na memória de quem viu a lona do Gran Circo Norte-Americano sumir sob as chamas e matar 503 pessoas em Niterói, 70% delas crianças, em 1961. Da mesma forma, o incêndio que interrompeu a vida de 236 jovens em Santa Maria não terá sido esquecido daqui a 50 anos por quem testemunhou as cenas de horror na boate Kiss. A fumaça escura e espessa que tomou conta do ambiente. Os corpos inertes empilhados pela casa noturna. Os celulares das vítimas que tocavam sem parar, traduzindo a ansiedade de familiares por notícias. Um único aparelho recebeu 104 ligações. O visor mostrava o autor das chamadas: mãe. Nada disso terá desaparecido da memória. A perplexidade e a tristeza permearam todas as conversas na semana passada. O Brasil se emocionou com a dor de cada pai e mãe que enterrou um, às vezes, dois filhos. Um dos sentimentos mais fortes, porém, foi o de indignação. De tão evitável, essa tragédia parece sem sentido, pois ela é resultado da soma de todos os erros, os mais banais e inaceitáveis. É a prova de que as pequenas irregularidades viram grandes tragédias. Por mais chocante, absurdo e intolerável, o holocausto gaúcho tem de ser transformador. As vítimas da Kiss devem ser cultuadas como mártires de um novo país, o da tolerância zero.
O Brasil precisa deixar de ser o país do jeitinho, do improviso, dos pequenos delitos. Não se pode mais aceitar a rotina de contravenções – maiores ou menores – que se repetem como sina. A propina para o guarda de trânsito, o fiscal corrupto e, como pano de fundo, a certeza da impunidade. Na Kiss houve um conjunto de falhas gritantes: existia apenas uma porta que servia como entrada e saída de emergência e ainda com obstáculos que afunilaram o fluxo de pessoas. Não havia sinalização de rota de fuga, o que levou dezenas de jovens a correr para os banheiros onde morreram asfixiados. O extintor não funcionou quando tentaram debelar o fogo que começou após a banda Gurizada Fandangueira disparar fogos de artifício na boate, a espuma que revestia a casa era inflamável e o local não contava com brigada de incêndio. Os seguranças, mal treinados e despreparados, impediram a saída das pessoas em desespero até perceberem do que se tratava. Foram segundos fatais. Os alvarás da prefeitura e o do Corpo de Bombeiros estavam vencidos; mesmo assim a Kiss estava de portas abertas. Em uma década, é o terceiro acidente com a mesma combinação: boate, banda e fogos. Isso levou a mudanças em outros países (leia quadro à pág. 44).
Os jovens de Santa Maria ficaram presos numa verdadeira câmara da morte. A combustão dos materiais usados no revestimento acústico da boate gaúcha intoxicou as vítimas de gás cianeto, o mesmo usado nas câmaras de gás nazistas. Agora, descobriu-se que há milhares de alçapões como a Kiss funcionando em todo o País, alguns com autorização, boa parte sem. São estabelecimentos que abrem suas portas todos os dias sem alvará de funcionamento e desrespeitam regras básicas de segurança. Em São Paulo, existem 600 casas noturnas sem alvará da prefeitura. Mais grave: 70% das boates, salões de clube, bufês e locais de show foram vetados pelos bombeiros nos últimos dois anos, mas não fecharam. De 636 pedidos de vistoria sobre segurança contra incêndio recebidos, apenas 194 foram aprovados. Os outros foram negados por apresentar falhas no projeto ou permanecem em análise para processo de revalidação. Mas, no país da tolerância, continuam funcionando.
As mortes de Santa Maria acordaram as autoridades para a gravidade da situação. De norte a sul, prefeituras e bombeiros saíram em mutirão para fiscalizar as boates. Centenas foram fechadas preventivamente. Manaus lacrou 66 das 98 registradas na cidade. Em Fortaleza, casas de show tiveram de suspender suas atividades por não oferecer sequer 30% das condições de segurança exigidas. No Estado do Rio, 127 estabelecimentos sofreram interdição. Boates famosas como a Nuth e 021 foram lacradas e terão de realizar obras para funcionar. Na capital paulista, os principais empresários da noite se anteciparam e decidiram não abrir na semana passada alegando “luto” pelas mortes em Santa Maria. Agora, correm contra o tempo para regularizar seus estabelecimentos e, assim, proporcionar diversão sem risco.
A banda Gurizada Fandangueira disparou fogos de artifício na boate. O sanfoneiro Danilo Jaques morreu no incêndio. À dir., Mauro Hoffmann, um dos sócios da casa, que foi preso na segunda-feira 28
A presidenta Dilma Rousseff, em encontro com prefeitos, pediu mais fiscalização. “Temos o dever de assumir o compromisso de evitar que coisa semelhante jamais venha a se repetir”, afirmou. É preciso ser intolerante com as irregularidades em casas noturnas, a exemplo da nova lei seca que começou a vigorar na semana passada e fecha o cerco a quem for flagrado dirigindo depois de beber. O infrator não pode mais se esconder no preceito constitucional de não produzir prova contra si mesmo, recusar o bafômetro e sair incólume. Testemunhos, testes clínicos e depoimentos de policiais podem agora comprovar a embriaguez do motorista. Só medidas assim podem acabar com nossas tragédias cotidianas, imensas, como a de Santa Maria, ou não. Faz um ano que uma reforma irregular provocou a queda de três prédios no centro do Rio, matando 17 pessoas (cinco permanecem desaparecidas), mas obras sem autorização continuam ocorrendo. A cada temporada de chuvas, sabemos que vamos ver corpos sendo encontrados sob os escombros de casas que haviam sido erguidas irregularmente em áreas de risco. A cada fim de semana um motorista alcoolizado ceifará uma vida. Eles precisam ser parados.
O incêndio da Kiss comprova que a segurança do público precisa ser a prioridade número 1 dos donos de boates e os frequentadores de baladas devem estar atentos e denunciar quando há problemas. No Estado do Rio, a reação da população já pode ser mensurada. Em apenas quatro dias, até a sexta-feira 1º, o Disque-Denúncia recebeu 441 ligações alertando para supostas irregularidades nas normas de segurança de casas noturnas, barzinhos e espaços de eventos. Para efeito de comparação, em todo o mês de janeiro do ano passado foram apenas 134 chamadas. As redes sociais também são uma poderosa arma para cobrar providências dos empresários. Nenhum vai querer que seu estabelecimento seja “descurtido”.
Há regras básicas para tornar as baladas mais seguras:
Respeitar a capacidade máxima: ambientes superlotados causam tumultos e agravam momentos de crise.
Brigada de incêndio treinada: numa emergência, é preciso ter equipe apta a agir rapidamente.
Regras de funcionamento: os revestimentos utilizados não podem ser inflamáveis, artefatos pirotécnicos são inadequados para locais fechados, reformas têm de ser informadas e autorizadas pelos órgãos competentes.
Portas: locais de grande aglomeração devem ter mais de uma rota de fuga, sinalizada e desobstruída, como nos cinemas.
Equipamento: extintores visíveis e funcionando e luzes de emergência que orientem a saída do público são essenciais.
Pagamento: é preciso extinguir a comanda, essa excrescência brasileira. É bom para o empresário, pois a pessoa tende a consumir sem se dar conta exatamente da fatura e agiliza o atendimento. Mas é algo desastroso em situações de pânico. Segundos preciosos foram perdidos porque os seguranças da boate Kiss barraram a saída, pois acreditavam que o corre-corre se devia a uma briga e o público daria o calote. Cada um tem de pagar à medida que consumir. Quem acha inconveniente ir ao caixa toda hora, que compre vários tíquetes de uma vez.
Fiscalização: prefeituras e bombeiros têm de fiscalizar continuamente esses locais de grandes aglomerações. Se houver irregularidades, a casa deve ser lacrada até sanar o problema.
Não há uma lei federal que estabeleça as regras de prevenção e proteção contra incêndio. Há um emaranhado de normas, leis estaduais, decretos municipais que regulam o funcionamento de bares, boates e casas de show. Se os itens de segurança são os mesmos em qualquer lugar do mundo, não há motivo para essa balbúrdia legal. Vários projetos acerca desse tema estão parados há anos no Congresso Nacional e os parlamentares devem aproveitar esse momento de comoção para aprovar um código nacional que discipline as regras para o funcionamento de casas de entretenimento. Mesmo que as propostas não avancem no Parlamento, a sociedade tem parâmetros muito claros que podem ser seguidos por qualquer empresário cioso de seu negócio e preocupado com seus clientes. Os critérios são conhecidos. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) é um fórum nacional normalizador, que reúne o conhecimento técnico mais avançado na área de construção civil e segurança contra incêndio. É dela a determinação para a existência de pelo menos duas saídas em locais de grandes aglomerações, como boates. O órgão também estabelece os tipos de materiais a serem usados em revestimentos; equipamentos necessários, como o número de extintores; e a existência de brigadas de incêndio, entre outros itens. “Uma tragédia dessas proporções não teria acontecido se as normas tivessem sido seguidas”, diz José Carlos Tomina, superintendente do Comitê Brasileiro de Segurança contra Incêndio da ABNT e pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas.
Seguir rigorosamente essas normas numa edificação equivale a ter uma espécie de selo de qualidade de segurança. Quem sai para se divertir ficaria muito mais tranquilo se soubesse que a casa noturna onde frequenta foi construída e funciona seguindo as regras da ABNT. Mas, por questões econômicas, os empresários da noite costumam negligenciar esses padrões de excelência – ou simplesmente descumprem mesmo a legislação, como ocorreu em Santa Maria. Um decreto de 1998, válido em todo o Rio Grande do Sul, afirma que a resolução da ABNT sobre saídas de emergência deve ser cumprida. Ou seja, casas noturnas devem ter ao menos duas rotas de fuga. Como, então, a Kiss foi autorizada pela prefeitura e pelo Corpo de Bombeiros a funcionar? A investigação policial precisa ser minuciosa para apontar as falhas. Na semana passada, foram presos provisoriamente dois sócios da boate, Elissandro Calegaro Spohr e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda. Os responsáveis pela tragédia precisam ser exemplarmente punidos para que a dor e o luto compartilhados pelo Brasil nos últimos dias não seja em vão.
Fotos: Felipe Dana/AP Photo; Adriano Vizoni/Folhapress; Fernando Borges/Terra; AP Photo/Ag. RBS; JULIANO MENDES/FUTURA PRESS; Germano Roratto/Ag. RBS/Folhapress; Félix Zucco/Ag. RBS/Folhapress/Folhapress; Lauro Alves/Ag. RBS; Emerson Souza/Ag.RBS; HERNAN ESPANA/AFP PHOTO; AP Photo; Stew Miline/AP Photo; Gerry Wolter/ The Enquirer/AP Photo
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