SANTA MARIA, 27/01/2013
JULIANA BUBLITZ E MARCELO GONZATTO
A sequência de acontecimentos que originou a tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, será reproduzida em laboratório para esclarecer como a casa noturna se transformou em uma espécie de câmara de gás letal.
O Instituto-geral de Perícias quer saber qual foi a velocidade de propagação do fogo e o nível de liberação de elementos tóxicos desencadeados com a queima da espuma acústica apontada pela Polícia Civil como a principal causa do desastre.
Feito de poliuretano, o material de baixa qualidade presente no teto da Kiss é considerado altamente inflamável e teria liberado gás cianídrico em contato com o fogo – o mesmo utilizado pelos nazistas para exterminar judeus na II Guerra Mundial. A disseminação desse produto, 67 anos após o fim do conflito, agora deixa em situação de desespero pais, familiares e amigos de 236 mortos e 119 feridos em hospitais, que padecem pela inalação da substância incolor e inodora, mas mortífera.
A espuma, segundo o delegado responsável pelas investigações, Marcelo Arigony, potencializou o que poderia ter sido apenas um incidente:
– Isto foi a causa da morte. Onde não tinha espuma, quase não queimou.
Peritos coletaram retalhos do revestimento, conforme o delegado Sandro Meinerz, integrante da equipe de Arigony, a fim de submetê-los às mesmas condições que teriam deflagrado o drama.
Para isso, providenciaram ainda o mesmo tipo de artefato pirotécnico indicado como a origem do fogo – chamado de sputnik. O produto, aceso, será erguido a uma distância similar à que teria ficado no momento em que as chamas começaram a se propagar.
A partir desse momento, os técnicos vão cronometrar o ritmo de expansão das labaredas e medir a quantidade e o tipo de gás tóxico decorrente da queima. O resultado vai embasar com rigor científico a tese dos policiais de que o poliuretano empregado no sistema de tratamento acústico da Kiss é peça-chave para explicar o elevado número de vítimas.
A sucessão de falhas que levou ao desastre inclui outros fatores sob investigação como a superlotação no local, deficiências na sinalização e nas saídas de emergência.
Vídeos de celulares serão analisados
A reprodução vai determinar também o nível de resistência da espuma ao fogo. Revestimentos que contam com um aditivo destinado a retardar a propagação, mais caros, são mais seguros do que outros sem esse tipo de proteção. O engenheiro civil Gilmar Roth, especializado em projetos acústicos, considera, no entanto, que nenhum deles é completamente confiável.
– Não recomendo esse tipo de produto. Não é 100% seguro porque mesmo aquelas espumas chamadas antichama desprendem alguma quantidade de gás tóxico em contato com o fogo – sustenta.
Roth faz ainda um outro alerta:
– Se um tipo de adesivo não recomendado pelo fabricante for utilizado, o risco de incêndio se torna maior ainda.
O preço do metro quadrado dos melhores modelos de poliuretano com 50 milímetros de espessura e adesivo resistente ao fogo costuma chegar a até R$ 75, aproximadamente. Materiais sem as mesmas garantias podem ter custo a partir de R$ 45.
Integrante da comissão encarregada de periciar as condições de segurança no local da catástrofe, Marcelo Saldanha, membro do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), afirma que foram identificados no local três níveis de materiais destinados a abafar o som. Acima do forro de gesso, havia uma camada de lã de vidro que evita a difusão do som para a vizinhança. Abaixo do gesso, colado a ele, estava a espuma.
– Inicialmente, havia o gesso e a lã de vidro. Mas, para evitar o eco que se formava no local, os proprietários decidiram acrescentar a espuma – revelou Saldanha.
A reconstituição prevista pela Polícia Civil terá ainda um outro elemento: os mais de 60 celulares das vítimas. Vídeos e fotos que tenham sido feitos no início do incêndio poderão contribuir para a reconstrução ainda mais fiel dos fatos.
– Alguém deve ter gravado as cenas, e a gente vai descobrir. É só uma questão de tempo – diz Meinerz.
ENTREVISTA - Um veneno de ação rápida
Miguel Dabdoub - Doutor em química orgânica e forense
Cientista e professor da Universidade de São Paulo, Miguel Dabdoub é doutor em química orgânica e forense, formado em Química Industrial pela Universidade Federal de Santa Maria. Dabdoub fala sobre o efeito do gás inalado por quem estava na boate Kiss e suas consequências.
Zero Hora – Por que os nazistas usavam esse tipo de gás?
Miguel Dabdoub – O poliuretano é produzido por dois elementos químicos: isocianato e poliol. Quando há reação dos dois, forma-se a espuma, até então inofensiva. Quando são queimados ou aquecidos, voltam a formar isocianato, o gás responsável pela tragédia de Bophal, na Índia, que matou mais de 8 mil pessoas em 1984. Em contato com a água, o veneno provoca o ataque químico. Ele reage com a água da nossa boca e do pulmão, causando danos respiratórios. Ao penetrar nos pulmões, ele entope os alvéolos, impedindo a passagem do oxigênio para a corrente sanguínea. Em Bophal, as pessoas morreram com a sensação de asfixia. O mesmo pode ter ocorrido em Santa Maria. O ácido cianídrico é o veneno de ação mais rápida que se conhece. Seu efeito é tão rápido que pode matar em um a dois minutos.
ZH – O material não deveria ser proibido?
Dabdoub – Tem que controlar seu uso. Os poliuretanos são largamente usados, em objetos como colchão, esponja, entre outros. É preciso evitar que se trate esses materiais como arma química. A questão da proibição deve ser discutida, pois tem que ser feita uma análise dos materiais construtivos. No caso dos isolantes acústicos, recomendamos o revestimento de óxido de alumínio ou compostos de fósforo.
ZH – Que efeitos tem o gás cianídrico no organismo?
Dabdoub – As pessoas que estavam na Kiss devem ter morrido a partir dos dois minutos após inalarem o gás. As pessoas que caíram na porta já chegaram em grave estado de inconsciência. Quem estava no local pode ter morrido no primeiro minuto. Pode ter sido o caso do banheiro, com a concentração de gás mais intensa. É importante dizer que o isocianato e o ácido cianídrico não irão matar as pessoas que estão internadas, pois a ação deles ocorre no momento do incêndio. Mas o isocianato se grudou em algumas partes do corpo, formando substâncias que ficam nos pulmões. Isso pode levar a problemas de médio e longo prazo.
ZH – Qual a concentração necessária no corpo humano para ser letal ?
Dabdoub – Para a pessoa que aspirou não morrer, a quantidade tem que ser muito baixa, pois a dose letal é muito pequena. Para o monóxido de carbono, o valor limite de tolerância para o corpo é em torno de 39 ppm (partes por milhão). No isocianato, entre 200 e 500 ppb (partes por bilhão). No caso do cianeto, precisa de 1mg por 1kg. Se for o gás ácido cianídrico, dois minutos são suficientes para mata quem respirar 0,3mg por litro de ar. O grau de letalidade é muito alto.
ENTREVISTA - “Não era uma fumaça comum”
Shelen Rossi - Estudante
A estudante Shelen Rossi, 19 anos, teria alta na quinta do Hospital de Caridade. O quadro de saúde evoluiu bastante, mas os médicos decidiram deixá-la mais tempo em observação. Ontem, ela contou o que sentiu ao respirar o ar com fumaça tóxica.
Diário de Santa Maria – Como você conseguiu sair da boate?
Shelen Rossi – A gente estava bem na frente, só que estava muito cheio e a gente resolveu ficar mais perto da porta para respirar melhor. Quando vi o fogo, já estava bem no finalzinho. Vi, mesmo, aquela nuvem de fumaça. Aí veio o pavor. Os seguranças fecharam as portas e começou aquele empurra-empurra. Caí no chão e alguém me arrastou para fora pelos cabelos.
Diário de Santa Maria –Após inalar a fumaça, você teve alguma sensação instantânea?
Shelen – Não era uma fumaça comum. Me fechou a garganta na hora. Tentei trancar a respiração ao máximo, porque logo vi que aquilo ali era muito forte. Acho que se eu respirasse mais um pouco não tinha resistido. O cheiro era muito, muito forte. Depois, quando eu comecei a tossir, a secreção parecia cinza de cigarro. Assustador.
BIANCA BACKES
Antídoto contra gás chega hoje
Chega hoje ao Brasil um medicamento injetável que pode reduzir os efeitos da fumaça tóxica no organismo dos pacientes internados nos hospitais gaúchos.
Vinda dos Estados Unidos, a hidroxicobalamina serve como um antídoto para o cianeto, elemento químico venenoso depositado no corpo dos jovens que aspiraram a fumaça tóxica contendo ácido cianídrico.
Pouco disponível no país, o material foi recomendado por médicos americanos durante teleconferência realizada ontem, reunindo médicos gaúchos, brasileiros e estrangeiros pelo serviço Telessaúde, do Ministério da Saúde.
Segundo Hugo Goulart de Oliveira, professor da Faculdade de Medicina e chefe da unidade de endoscopia respiratória do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a substância age mais no início do problema, mas deverá ajudar no caso dos feridos de Santa Maria:
– O remédio ajuda a minimizar o efeito do cianeto no corpo. Mas como identificamos pacientes com níveis bastante elevados de cianeto, não se sabe se o efeito é imediato.
O antídoto injetável para tratar as vítimas de Santa Maria chega ao Brasil hoje cedo. O voo é o 243 da American Airlines, previsto para pousar às 9h50min no Aeroporto Internacional de Brasília. A Força Aérea Brasileira prepara uma operação para encaminhar imediatamente esses medicamentos para o Estado. Parte dele vai para a Capital e outra a Santa Maria.
LARA ELY
BUSCA DE RESPOSTAS - Investigadores compõem o quebra-cabeças que irá explicar como a tragédia aconteceu:
Quem é o fabricante da espuma usada para isolamento acústico na boate Kiss?
Por enquanto, não há informação oficial sobre isso.
Quem é o fornecedor da espuma?
Está em investigação pela Polícia Civil, que diz não saber ainda. O advogado Jader Marques, que defende Kiko Spohr, um dos proprietários da casa noturna, diz que Kiko contratou um engenheiro, que teria indicado “onde comprar”, mas não revela detalhes.
Quem instalou a espuma?
Segundo a Polícia Civil, o responsável pela instalação foi um barman da boate, cuja identidade é preservada. O delegado regional Marcelo Arigony afirma já ter ouvido o responsável, mas o depoimento é mantido em sigilo.
A espuma usada era mais barata?
Isso está sendo analisado pela perícia. Especialistas dizem que no mercado há modelos com aditivo de controle de chamas, que podem chegar a até R$ 75 o metro quadrado (50mm de espessura). Os modelos mais simples, sem esse detalhe, custam a partir de R$ 45 em média.
Se o sputnik usado fosse específico para ambientes internos, o resultado seria diferente?
Sim, já que esse equipamento é produzido para não provocar a combustão de produtos inflamáveis.
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