Se obscurecermos o óbvio pelo
temor à simplicidade, entraremos na
fila de suas próximas vítimas
JAYME EDUARDO MACHADO*
Há uma óbvia identidade entre as tragédias na boate de Santa Maria e no estádio de futebol da Bolívia: o fogo como brinquedo. Até seria possível afirmar _ embora sem qualquer possibilidade de prova _ que dentre os três chamados elementos naturais, nem o ar nem a água contabilizam mais tragédias do que ele. Exatamente porque é com ele que o homem mais gosta de brincar. Desde que o suposto primata das gravuras que nossos professores nos mostraram na escola acocorou-se para friccionar aqueles pauzinhos aquecendo-os até a incandescência. A continuação daquela imagem mítica _ que seria o nosso ancestral instintivamente atirando a água do riacho ao lado para apagar o incêndio e resfriar a queimadura nos dedos _ nunca foi mostrada talvez por pertencer ao mundo das obviedades. Que geralmente não são mostradas para não ferirem a inteligência de quem não as percebe (?).
Uma delas é que as grandes tragédias, por produzirem muitas vítimas, exigem custosas investigações. Também para que o rigor que faltou na prevenção, apareça na fase persecutória e repressiva, recuperando, em parte, um pouco da imagem das autoridades responsáveis. E, no modelo da característica contemporânea de vida que o escritor Mario Vargas Llosa rotulou de "civilização do espetáculo" _ tomando-se todo o cuidado para não ser autuado pelos fiscais do politicamente correto _ do inocente espetáculo de jovens festejando a vida que o fogo queimou, estamos vivenciando o que nos é proporcionado pelos que diligenciam nas apurações. O último ato _ quem sabe ainda haverá outros _ é o do promotor do norte que veio auxiliar os promotores e os policiais do sul com palestras sobre sua experiência americana(?).
Não há negar a utilidade dessa presença, se de alguma forma ela nos puder iluminar _ improbabilidade bastante provável _ da mesma forma como não há como deixar de lamentar sua inutilidade se perdermos o foco, obscurecendo o óbvio que dispensa sua visita.
É preciso aceitar que _ sem diminuir a importância de todas as apurações e de todas as questões em torno da prevenção para locais públicos fechados ou abertos, o que inclui extintores, número de saídas de emergência, bretes para apresentar a comanda, materiais isolantes, combustíveis, alvarás, projetos, malfeitos, e tantos outros aspectos e circunstâncias _ tudo será inútil se o fogo puder entrar.
Pense-se em tudo, menos em que não foi a presença do "sputnik" na boate e a do sinalizador no estádio boliviano, aliada à inconsequência de ativar o seu fogo no meio da multidão, o início e o fim de tudo. Isso é o principal, tudo o mais lhe é acessório. Por isso, ainda que a proibição dessa entrada fosse a única percepção de nossas autoridades, teriam por cumprida sua missão e, quem sabe, dispensado o americano. Mesmo não sendo a única, é a mais eficaz e a mais simples de todas as medidas, justamente por ser a mais óbvia.
Por mais que a complexidade de nossa civilização se caracterize pela necessidade do espetáculo, se obscurecermos o óbvio pelo temor à simplicidade, entraremos na fila de suas próximas vítimas.
* Jornalista ex-subprocurador-geral da República
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