Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

SEM CARNAVAL

ZERO HORA 10 de fevereiro de 2013


Os alienados são ainda mais perigosos
que os loucos, pois aparentam inocência

FLÁVIO TAVARES*

O pranto está ainda muito longe de secar. Faz agora duas semanas e a dor se aprofunda, dilacera as entranhas, entristece cada gesto e soterra qualquer alegria. Quem pode pensar em Carnaval, quando dentro de nós só há luto e a emoção da dor? Os saracoteios e a música dessa folia imposta pela convenção do calendário podem, por acaso, calar os gritos e a asfixia das vítimas ou enxugar nossas lágrimas? Uma tola marchinha carnavalesca pode apagar a indignação que habita nosso íntimo?

E, mesmo que já não houvesse lágrimas e o luto já se dissipasse, restaria a lembrança daquelas moças e rapazes a nos dizer que tinham "a vida pela frente". Por isto, festejavam com colegas de escola ou com amigos, sem saber que viviam a última madrugada. Dançavam na alegre inocência, sem saber que estavam numa ratoeira, numa câmara de gás onde seriam asfixiados.

Sim, asfixiados, como nos campos de extermínio nazistas, onde mandavam as mulheres despir-se para "um banho coletivo". Havia centenas de chuveiros no teto, mas deles saia gás. Não água. Era o assassinato deliberado, executado por gente enlouquecida pela ideologia.

Na tragédia de Santa Maria, nada foi deliberado, mas tudo foi feito para a consumação do crime pelas mãos de irresponsáveis alienados, em todas as áreas.

**

Os alienados são ainda mais perigosos que os loucos, pois aparentam inocência, dão a impressão de cordura e de que estão a servir. Os loucos são facilmente identificáveis. Os alienados são simuladores natos. Costumam ser irresponsavelmente simpáticos, maravilhosos no trato, até finos e educados. Mas não se importam com ninguém, a não ser com as pequenezes próprias, seja cobiça, orgulho, prazer ou o que for. Fingem grandeza para disfarçar o egoísmo.

Outra característica dessa gente alheia ao mundo ao redor é a amnésia. Nunca recordam o que fizeram e fingem nisto também. Entregaram a vida à fantasia e mentem fantasiando que esqueceram.

Em tempos de tragédia, a amnésia cresce, como em Santa Maria, onde os diretamente implicados esqueceram-se do passado recente. Dos donos da boate ao prefeito Schirmer, dos fiscais da Prefeitura aos inspetores bombeiros, todos recorrem à infantil tramoia do "não me lembro" para fugir às responsabilidade. 

Um dos donos da boate esqueceu-se até de que é dono e alegou ser "apenas sócio financeiro"...
Como se fosse epidemia, a amnésia se propaga por um vírus subitamente desconhecido: o vírus da culpa que escondem!

***

Para impedir que a amnésia se alastre e assassine também o nosso íntimo, em Santa Maria o povo saiu à rua, em passeata primeiro, logo em oração, pedindo forças para resistir à mentira. Em Porto Alegre, a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes nunca juntou tanta gente como agora: mais de 160 mil, unidos na dor. Em dezenas de outras cidades, o mesmo gesto. Afinal, podemos dizer numa frase simples e profunda: nem tudo está perdido!

Brutal, no entanto, é que para fazer brotar outra vez a nossa dignidade tenha sido necessário o sacrifício de duzentos e tantos jovens. São eles que guiam, agora, a nossa indignação em busca de justiça.

Querer a condenação dos responsáveis pelo assassinato coletivo não significa ódio nem vingança. A grande condenação já ocorreu, é inexorável e sem solução _ os mortos não voltarão jamais. O crime de dois domingos atrás já deixou centenas de condenados _ mães, pais, familiares, professores e amigos, sentenciados à dor da perda definitiva daquilo que mais amavam.

Só nos resta aprofundar a indignação, para que o embuste não continue a nos comandar e para que, noutros anos, haja Carnaval.

* Jornalista e escritor

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