ARTIGOS
Derocy Giacomo Cirilo da Silva*
O trágico episódio ocorrido em Santa Maria impõe a retomada de uma questão recorrente: se há responsabilidade pessoal dos administradores públicos pelos fatos ou se isto deve ser levado a crédito do caso fortuito ou força maior, por sua absoluta imprevisibilidade. E, de certa forma, é emblemática a declaração do governador Tarso Genro, quando manifestou que, se alguém resolve acionar um sinalizador em uma boate, isto não está ao alcance da fiscalização das estruturas de Estado e que tal deveria ser proibido em um recinto fechado, sem que se possa exigir da fiscalização de boates um representante em cada um desses locais. Lembrei, então, de cena do filme Rede de Intrigas (Network, 1976) em que o apresentador de telejornal, Howard Beale, incitava cada qual “a se levantar, ir à janela, abri-la, pôr a cabeça para fora e gritar: estou fulo da vida, chega!”.
Esta indignação fica reforçada quando – e a mídia tem insistido nisto – há toda uma formulação técnica para que as boates, no país, possam funcionar. E, para a sua efetiva implantação, vale o bom senso, que, muitas vezes, não é observado nas diversas legislações que incidem sobre a fiscalização de tais estabelecimentos. A rigor, estes estabelecimentos, como tantos outros, desde a sua concepção até o seu funcionamento, deveriam observar o que há de mais moderno em termos de segurança para as pessoas. Neste caso, não deve haver exigências mínimas, porque se trata da saúde, da vida e da dignidade humana. A cada momento, alteram-se parâmetros e isto deveria ser observado a cada renovação de alvará de funcionamento, cujo prazo de validade não poderia exceder a um ano. Mais, deveria ser implantado um disque-denúncia, nas ouvidorias públicas e nos conselhos profissionais das áreas de engenharia e arquitetura, que, além das providências próprias a adotar, deveriam levar ao conhecimento, de imediato e em tempo real, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e ao Corpo de Bombeiros. É uma forma de difundir e comprometer as autoridades com a incolumidade física das pessoas que acorrem àqueles espaços, além de ser uma prerrogativa e um dever do cidadão.
Por certo, há uma política pública para enfrentamento de casos como o de Santa Maria. Acredito que toda a mobilização das autoridades municipais, estaduais e federais obedece a uma estratégia predeterminada, além de existirem normas administrativas preventivas de funcionamento de boates. Isto gera, em contrapartida, a responsabilidade, ou pela ausência, ou pela indiferença, ou desacerto de tal política se dela decorrerem danos pessoais ou patrimoniais. Portanto, há responsabilidade, sim, das autoridades públicas encarregadas de fiscalizar a atividade, ainda mais porque, segundo o delegado de polícia que preside o inquérito, no mínimo, existiriam cinco irregularidades que inviabilizariam a autorização para funcionamento da indigitada boate. E tais irregularidades afetam as instâncias municipais, estaduais e, até, no limite, os órgãos de fiscalização profissional. Se isto for efetivamente constatado, no âmbito do Direito Penal, as mortes e as lesões corporais configuram democídio, expressão cunhada para caracterizar crime contra o povo, decorrente de políticas, ações e omissões do poder público. Trata-se, aqui, de um concurso material de homicídios ou de lesões corporais ou, em uma versão mitigada, continuidade delitiva, perfeitamente enquadrável no nosso sistema penal em vigor, seja na modalidade culposa seja na modalidade dolosa. Não precisamos de mais leis. As que aí estão permitem apurar, processar e julgar os responsáveis pelo ocorrido, inaugurando, quiçá, uma nova fase nas relações gestor público-cidadão.
*PROCURADOR DA REPÚBLICA APOSENTADO
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