Augusto Nunes - Direto ao Ponto
A lição de Buenos Aires ensina como interromper a contagem regressiva para outro massacre disfarçado de acidente
O governador Tarso Genro reagiu à tragédia na boate Kiss acionando o trabuco que dispara só palavrórios: “Quero garantir que o inquérito seja exemplar, que dele possam decorrer, a partir de iniciativas do Ministério Público, modificações legislativas nos planos federal, municipal e estadual, para que isso nunca mais aconteça”. Tradução: vem aí mais um “rigoroso inquérito”. Toda investigação assim adjetivada nasce com cara de brava. Mas é mansa. Arrasta-se preguiçosamente por alguns meses e morre de inanição.
Foi sempre assim no Brasil. E assim será desta vez ─ a menos que Santa Maria se mire no exemplo de Buenos Aires e trate de ensinar ao país que lágrimas não bastam. A Argentina começou a descobrir essa verdade na noite de 30 de dezembro de 2004, quando um incêndio de características similares ao da boate Kiss destruiu a discoteca Cromagnon, em Buenos Aires, matou 194 pessoas, quase todas por asfixia, e feriu outras 1.432. Os sepultamentos coletivos exumaram a indignação represada. E os cortejos fúnebres logo se desdobraram em manifestações de rua.
Convocados por parentes das vítimas aglutinados na organização Nâo se Repita, engrossados por multidões de buenairenses, os atos de protesto impediram que o drama terrível fosse esquecido e os responsáveis pelo homicídio culposo em massa escapassem de puniçõers. O prefeito Aníbal Ibarra, por exemplo, sonhava com a Casa Rosada quando a Cromagnon começou a arder. A omissão, a cumplicidade e o descaso dos órgãos fiscalizadores foram debitados na conta do aspirante à presidência da República. Alvejado por um processo de impeachment, acabou destituído dois anos mais tarde e hoje é apenas mais um deputado estadual.
Ibarra amarga a obscuridade no mesmo limbo que hospeda Omar Chabán, um dos reis da noite argentina até aquele dia 30 de dezembro. As investigações constataram que o dono da discoteca havia autorizado a venda de um volume de ingressos três vezes maior superior ao limite permitido pelo espaço. Também por ordem do dono, as portas de emergência foram fechadas “para evitar a entrada de penetras”. Condenado a 20 anos de prisão, conseguiu reduzir a pena para 10 anos e nove meses.
Quando sair da cadeia, vai surpreender-se com as mudanças na paisagem. Sob intensa fiscalização municipal, dezenas de discotecas desapareceram. As casas noturnas que sobreviveram tiveram de dobrar-se a rígidas normas de prevenção de incêndios. Campeões da ganância desembolsaram fortunas na compra de requintados equipamentos exigidos pela legislação modernizada. As vítimas da Cromagnon ao menos não morreram em vão.
Que se faça por aqui o que foi feito em Buenos Aires. O resto é conversa fiada. Se o Brasil não assimilar a lição dos argentinos, nada interromperá a contagem regressiva para a próxima chacina disfarçada de acidente.
Buenos Aires, Argentina, em 31 de dezembro de 2004. Após incêndio na casa noturna, 194 pessoas morreram e 375 ficaram feridas. Cerca de 2.000 assistiam a um show de rock no momento do acidente, que foi causado por fogos de artifícios lançados da plateia
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