Tragédia da boate “Kiss” é fruto da omissão e cumplicidade das autoridades de segurança e fiscais
Pedro Porfírio
“O nosso problema ali não foi um problema de legislação, porque a legislação do município de Santa Maria era uma legislação muito forte, muito dura. Nós temos problemas de fiscalização, de cumprimento da legislação por parte dos donos da danceteria. Há um problema de fiscalização que precisará ser analisado no próximo período”. Marcos Maia, deputado gaúcho, presidente da Câmara Federal
A prisão do dono da boate é uma resposta rápida, mas não é tudo
Precisava do sacrifício de 231 jovens para constatar o óbvio? Ou ainda vão querer ceifar mais vidas até tomarem uma decisão decente no controle das arapucas que se espalham pela noite povoada de incautos?
O que aconteceu em Santa Maria é o que o lugar comum convencionou chamar de tragédia anunciada. Não seria a primeira por conta da negligência, da irresponsabilidade, da tolerância corrupta e do abuso das máfias tão poderosas que operam 90% das nossas casas noturnas sem alvará,segundo depoimento de Antônio Ramalho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil de São Paulo.
E, infelizmente, pode não ser a última. Mesmo diante do torpor e da comoção que transformou o dia de ontem no domingo mais traumático de nossa história, são poucas as administrações municipais e estaduais que sinalizam providências para evitar o repeteco do morticínio.
Isso não teria acontecido se não houvesse cumplicidade
Nenhuma casa noturna funcionaria em condições tão afrontosas à segurança dos seus frequentadores se não rolasse um suspeita tolerância entre os vários órgãos fiscais, inclusive, entre os bombeiros, que insistem em falar que estava tudo nos conformes. Nesse caso, desde julho estava vencido o alvará de segurança e, mesmo assim, a casa funcionou a mil, ante os olhares cúmplices e canalhas de quem tinha por obrigação interditá-la. Qualquer pessoa com o mínimo de sanidade sabe, aliás, que aquela casa com o sugestivo nome de "Kiss" jamais poderia ter funcionado um só dia.
A tendência, aliás, é persistir o quadro temerário, com algumas medidas inevitáveis, como a suspensão de espetáculos de pirotecnia em ambientes fechados. Isso, porém, não quer dizer nada: no incêndio na boate República Cromagnon, de Buenos Aires, em 2004, que custou 194 vidas, foram jovens da platéia que dispararam morteiros para o alto.
Por que se as autoridades agirem com seriedade, sobrarão muito poucas casas noturnas no país em condições de funcionamento. E aí vai ter muita gente de rabo preso, muito mafioso ameaçando jogar seus “gibis” no ventilador.
Na noite, é tênue e quase imperceptível a fronteira entre o mundo das casas legais e o submundo dos inferninhos e da indústria do jeitinho e da irresponsabilidade. O ponto comum entre ambos é a baixa qualidade do pessoal de segurança, contratado sem qualquer treinamento e a salvo do controle da polícia. Estimativas sugerem que cerca de 80% desses seguranças não se submetem aos cursos de 160 horas da Polícia Federal e não são filiados ao sindicato da categoria, o que supõe o devido preparo.
Tudo isso faz parte de um patético ambiente de tolerância comprada e corrupção institucionalizada. Para os agentes públicos corruptos, a noite é o filé mignon do propinoduto mundial. É nela que transitam, impávidos, os elementos mais inescrupulosos da escória, onde o dinheiro corre fácil, e onde se mercadejam as prendas mais degeneradas que seduzem o instinto humano.
Leis omissas e projetos congelados
Leis há, projetos também. Desde 2007 dormita no gaveteiro da Câmara Federal o Projeto de Lei 2020-B, da deputada paraense Elcione Barbalho. Não é uma obra prima, mais já atualiza a legislação com exigências óbvias, mas omitidas nas legislações municipais.
Já tem parecer do relator Artur Maia, no entanto, não sai do lugar. Por que? Teria a deputada recuado em função de algum “lobbie” desses que têm o poder irrecusável de mudar as posturas dos nossos parlamentares? Ou seria a obstrução da turma da pecúnia que domina a Câmara Federal?
Das autoridades, espera-se mais do que lágrimas
A presidenta e o governador têm de agir exemplarmente
Nisso tudo há um componente cultural cada vez mais saliente: a alienação alimenta a desinformação e cristaliza a miopia. As pessoas estão viciadas em só tratarem daquilo que lhe diz respeito de perto, diretamente, ao palmo do nariz. Não estão nem aí para o que acomete os outros, mesmos nas adjacências, fiel a primado de que cada qual cuide de si, como se a elas não pudesse acontecer o mesmo.
Essa alienação acovarda e acomoda. Muitas vezes você vê a coisa errada, mas evita “arranjar problema”. No caso das casas noturnas, quantas vezes vemos a falta de segurança e o mais que fazemos é decidir não mais voltar a tal arapuca?
A tragédia de Santa Maria da Boca do Mato tem componentes muito graves e muito comuns a outras cidades para ser encarada apenas com um banho de lágrimas. Lágrima, aliás, não é o que se espera apenas de uma chefa de Estado. Decretação de luto é muito fácil, não afeta interesses poderosos e violentos. Impõe-se, sim, ações concretas, exemplares.
Responsabilizar quem tem responsabilidade
Não adianta prender os guris fandangueiros e os donos da boate. É preciso ir fundo e apontar com coragem a omissão e a cumplicidade das autoridades da área. Se elas tivessem cumprido seu dever, talvez não estivéssemos diante desse luto nacional.
Além disso, a perda de tantas vidas na flor da idade é um safanão em toda a sociedade e não apenas nas autoridades. Causou sofrimentos profundos e permanentes aos seus parentes queridos, seus pais, irmãos e amigos. Mas também vai deixar uma ferida aberta na alma de todos os que tiverem o mínimo de humanidade em seus corações.
Por muito tempo, um longo e tempestuoso tempo, os brasileiros vão conservar em suas lembranças as imagens trágicas da fornalha tóxica em que se converteu uma casa de show pelo uso irresponsável de sinalizador pirotécnico, pela existência de uma danceteria sem saídas alternativas de emergência, pela falta de treinamento dos seus seguranças e, o que é mais grave, pela cumplicidade comprada das autoridades.
A morte desses gauchinhos bonitos e cheios de futuro é como se fosse a morte dos nossos próprios filhos. . Quem não tem esse sentimento, não tem grandeza, não se libertou dos grilhões mesquinhos da vida ensimesmada.
Com os filhos caçulas na faixa de idade desses jovens imolados, quando a vida verte caudalosa por todas as veias, declaro minha mais profunda indignação. E minha vontade pétrea de contribuir com minha palavra e minhas denúncias para que tragédias tão dolorosas não se repitam jamais.
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