PÁGINA 10 | ROSANE DE OLIVEIRA
Desde domingo, o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, vem repetindo que a tragédia da boate Kiss se enquadra na categoria fatalidade. Que o fato de o plano de prevenção de incêndios estar vencido desde agosto não teve peso determinante para o desastre. Que o problema foi o vocalista da banda Gurizada Fandangueira ter disparado um sinalizador que produziu faísca e, em contato com o isolante acústico altamente inflamável, provocou o incêndio.
Com todo o respeito à dor do prefeito, que está sob violento estresse desde a madrugada de domingo, o que aconteceu em Santa Maria não pode ser chamado de fatalidade. Seria fatalidade se um meteorito caísse sobre o prédio do antigo depósito de bebidas transformado em boate, matando mais de duas centenas de jovens universitários que se divertiam numa noite de verão.
A cada novo elemento que surge na reconstituição dos fatos, a morte de pelo menos 230 jovens ganha contornos de homicídio culposo. O que a polícia, a perícia e o Ministério Público estão fazendo é apurar as responsabilidades.
A prisão temporária dos sócios da Kiss e de dois integrantes da banda, incluindo o vocalista que teria soltado o sinalizador, tem pouca relevância. O objetivo da prisão temporária é impedir que os suspeitos de um crime fujam, apaguem provas ou pressionem testemunhas. Na esfera criminal, o que importa é o inquérito definitivo, o processo, o julgamento e o cumprimento das penas em caso de condenação. Na cível, serão inevitáveis as ações de indenização, que não aplacam a dor das famílias mas funcionam como pena adicional a quem foi negligente.
Há pelo menos 10 fatos que desqualificam a tese da fatalidade. São eles:
1. A Kiss, com 615 metros quadrados de área, tinha apenas uma porta de saída, mal sinalizada e difícil de ser encontrada na escuridão.
2. A planta confirma os relatos das testemunhas: a saída era um labirinto. Não havia rotas de fuga para o caso de uma emergência.
3. A casa noturna tinha capacidade para mil pessoas. Os bombeiros estimam que 1,5 mil estavam na trágica festa.
4. Não havia janelas (as dos banheiros, para onde dezenas de vítimas correram, eram fechadas com tábuas) e a boate se transformou numa câmara de gás.
5. No primeiro momento, segundo relatos de sobreviventes, os seguranças tentaram impedir a saída dos jovens que escapavam do fogo e da fumaça tóxica.
6. Efeitos pirotécnicos foram utilizados em um ambiente fechado, com isolamento acústico feito de material inflamável.
7. O extintor acionado por um dos integrantes da banda e depois por um segurança, não funcionou.
8. Se havia outros extintores, os funcionários não os acionaram.
9. Não se usou o sistema de som para avisar os jovens de que estava ocorrendo um incêndio e sugerir que procurassem a saída.
10. Não havia luzes de emergência para ajudar a encontrar o caminho da única saída.E, se não foi fatalidade, é preciso identificar e punir os culpados.
EXPLICAÇÕES DEVIDAS
Ao lado da cúpula da área de Segurança Pública e do procurador-geral de Justiça, Eduardo de Lima Veiga, o governador Tarso Genro apresentou ontem, em Santa Maria, o que cada órgão está fazendo para elucidar o incêndio na boate Kiss. Reafirmou que a polícia fará um trabalho exemplar de investigação.
O Corpo de Bombeiros, que fez um trabalho notável no salvamento das vítimas e no rescaldo do incêndio da boate, terá agora de convencer a população do Rio Grande do Sul de que não foi negligente ao conceder a licença de funcionamento da Kiss. A prefeitura tem se defendido das cobranças com o argumento de que não concede nenhum alvará sem o aval dos bombeiros.
O comandante da Brigada Militar, coronel Sérgio Abreu, reafirmou que a casa podia continuar operando mesmo com o plano de prevenção de incêndios vencido em agosto, já que os proprietários apresentaram um novo plano, que estava sob avaliação.
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Mesmo que as imagens das câmeras tenham sido apagadas, quem esteve na boate Kiss poderá ajudar a polícia a contabilizar qual era a lotação da casa na noite da tragédia.
Fiscalização e vistoria
Presidente da Câmara da Indústria e Comércio de Santa Maria, o engenheiro civil Luiz Pacheco ficou intrigado com as declarações do comandante do Corpo de Bombeiros de que a Kiss apresentava as condições mínimas de segurança.
Pacheco lembra que há uma diferença entre vistoria e fiscalização. A vistoria é agendada, o que permite a preparação do local para atender às exigências dos bombeiros.
A fiscalização é feita sem aviso prévio, exatamente para conferir se as condições estão sendo cumpridas.
Pelotas revê segurança
A prefeita em exercício de Pelotas, Paula Mascarenhas, convocou para hoje à tarde uma reunião com o Corpo de Bombeiros para debater o estado das casas de espetáculo da cidade, o esquema de prevenção de incêndios e a segurança que elas oferecem aos usuários.
Paula diz que é preciso tirar lições da tragédia de Santa Maria.
A indicação do coronel Fábio Duarte Fernandes para o comando da Brigada Militar, confirmada ontem pelo governo, enfrenta resistências no interior da corporação.
ALIÁS
Pelas normas internacionais, uma casa noturna do tamanho da Kiss deveria ter, além da entrada, pelo menos duas saídas de emergência, devidamente sinalizadas.
Perguntas sem resposta
Identificadas as fragilidades que cercam a licença de funcionamento da boate Kiss, reafirmam-se as perguntas que ainda não foram respondidas:
1. Como foi possível os bombeiros e a prefeitura concederem as primeiras licenças de funcionamento da casa?
2. Quem vistoriou os equipamentos que, segundo o Corpo de Bombeiros, estavam adequados na última verificação?
3. Por que a casa continuou funcionando a partir de agosto, quando venceu o plano de prevenção de incêndios?
4. O que prevê o plano de prevenção?
5. Quem deveria fiscalizar a lotação da casa noturna?
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