HUMBERTO TREZZI
*Santa Maria
Escorada no ombro de familiares, a mulher com vestido azul e calça branca sai da parte menor do ginásio, tenta sentar em uma cadeira de plástico e desaba, indo ao chão com estrondo.
– Médico, médico! – gritam, desesperados, os parentes da senhora, que acaba de reconhecer o filho de 20 anos como um dos mais de 200 mortos na tragédia da danceteria Kiss.
Um grupo de enfermeiras e psicólogas, com esparadrapos identificatórios no lugar de improvisados crachás, acode a mãe, que não para de gritar:
– Meu filho, meu filho! Eu quero meu filho, tragam meu filho de volta!
Mas ele não volta.
Assim como não voltarão dezenas de jovens cujos parentes tinham, desde o final da manhã da ontem, a missão de identificar as vítimas do incêndio, o maior desastre já ocorrido no país desde a década de 1960.
Zero Hora acompanhou, de dentro do Centro Desportivo Municipal, o Farrezão (homenagem ao ex-prefeito santa-mariense e atual vice, José Farret), a dor de quem perdeu o familiar na flor da idade. Tia e madrinha do rapaz cuja mãe se desesperava, uma comerciária de 48 anos mal conseguia falar. Ela e o marido reconheceram o jovem em meio à montanha de corpos que se formou inicialmente em uma das alas do ginásio. Inconfundível, porque estava pilchado, “gaudério” como sempre foi. Tanto que tinha ido à boate, como sempre fazia, para curtir um grupo de fandango. Morreu pisoteado e asfixiado, como a maioria.
– Estou tão nervosa que voltei a fumar – desabafou ela, acendendo um cigarro no outro.
O ginásio parecia um formigueiro, tomado por centenas de voluntários que acorreram ao chamado de ajuda feito por meio das rádios. Além de médicos e psicólogos, compareceram assistentes sociais, enfermeiros, soldados e policiais. Muitos em chinelos de dedo e bermuda, que emergência não combina com etiqueta. Um jovem de branco, cabelo despenteado, comentou com colegas:
– O Exército me convocou. Eu não estava de plantão, mas tinha de ajudar. Conheço gente que estava na boate.
Adeus na Sala do Desespero
A maioria dos voluntários nem conhecia vítimas e, mesmo assim, se dispôs a sair do conforto caseiro para o cenário de guerra em que se transformou o centro de Santa Maria na madrugada de domingo. A confusão era tanta que mesmo quem queria ajudar tinha de ter crachá para passar por uma sólida barreira formada por PMs do Batalhão de Operações Especiais de Santa Maria. Assim que ingressava, o voluntário recebia uma etiqueta para colar na roupa, com nome e profissão anotados. Aí, era designado, pelo Comitê de Crise, para consolar parentes, ministrar medicamentos ou examinar os corpos.
Foi por volta do meio-dia de ontem, sob um calor sufocante, que os familiares, em fila, começaram a entrar na Sala do Desespero. Assim foi apelidado o local onde os corpos eram depositados, um ginásio menor do que o Farrezão, mas também situado no CDM. Gritos, lágrimas e desmaios se sucediam, em sequência. Um vaivém desesperado que incluía o uivo da sirene de ambulâncias, a gritaria de policiais e o entra e sai de agentes funerários, trazendo mais cadáveres. Todos jovens que a tragédia ceifou.
Policiais militares, profissionais da saúde e voluntários prestaram atendimento a familiares que foram reconhecer as vítimas no Centro Municipal de Desportos
Cenas de consternação e dor...
...marcaram a fila de familiares e amigos das vítimas...
...que se formou junto ao ginásio de esportes
A fila do calvário
O perito da Secretaria da Segurança Pública pegou um microfone e avisou, voz límpida a ecoar pelo ginásio:
– Entendo a dor de vocês. Podem acreditar, entendo, porque faz parte do nosso cotidiano. A gente não gostaria de ter de chamar vocês, mas é preciso. Agora vou ler uma lista de nomes, e quem for familiar de alguém com essas credenciais se aproxime. Vai ser difícil, vai ser demorado.
Aqueles que tinham familiares desaparecidos na boate ou que não conseguiam contatar os parentes ao celular chegaram ao ginásio Farrezão, lentamente, agarrados a um fio de esperança. Foram colocados em cadeiras de plástico, próximos a médicos e enfermeiros, prontos para atender crises. Os familiares checavam na rádio a lista de feridos – esta, sim, anunciada aos quatro ventos – na ânsia de ouvir o nome do amado. Logo, ao descobrir que o destino do parente continuava ignorado, as lágrimas escorriam rosto afora. Sem medo de chorar em frente a estranhos.
Alguns crispavam o rosto, com ódio. A maioria soluçava, quase em silêncio. Um senhor de cerca de 70 anos, cabelos grisalhos, desfaleceu no pátio de cimento em frente ao ginásio, ao ouvir no microfone o nome do neto de 18 anos.
Em grupos de 10, as pessoas que reconheciam o nome de um familiar eram conduzidas em fila para um ginásio menor. Ali os corpos estavam colocados sobre lonas pretas, no chão, do jeito como foram encontrados. Telefones celulares e relógios sobre o peito – tudo que pudesse ajudar na identificação.
Mães passavam demoradamente a mão no rosto dos filhos, num derradeiro e infinito adeus. Um pai que perdeu duas filhas no incêndio – elas tinham 20 e 25 anos e trabalhavam na boate –, gritava, inconformado:
– A Kiss matou minhas filhas. Isso não vai ficar assim!
Depois de identificada, a vítima era colocada em um caixão, com nome e sobrenome pintado em cartolina. A maioria saiu direto para dentro de um carro funerário – já que grande parte das vítimas não é de Santa Maria e teria de enfrentar a última viagem até sua cidade de origem. Outros apenas mudaram de prédio, foram para o ginásio maior. Lá, dezenas de cavaletes, mesas e classes escolares foram improvisadas para receber os caixões. Ao todo, foram 143 ataúdes para atender à demanda de vítimas santa-marienses. Um deles, o de Lucas de Oliveira, foi envolto com a bandeira do Rio Grande do Sul e encimado por um chapéu de gaúcho. Um adeus a caráter.
Os corpos das vítimas foram levados de caminhão para o ginásio...
...onde foi feito o reconhecimento
Nenhum comentário:
Postar um comentário