Este Blog retratará o descaso com a Defesa Civil no Brasil; a falta de políticas específicas; o sucateamento dos Corpos de Bombeiros; os salários baixos; a legislação ambiental benevolente; a negligência na fiscalização; os desvios de donativos e recursos; os saques; a corrupção; a improbidade; o crime organizado e a inoperância dos instrumentos de prevenção, controle e contenção. Resta o sofrimento das comunidades atingidas, a solidariedade consciente e o heroísmo daqueles que arriscam a vida e suportam salários miseráveis e péssimas condições de trabalho no enfrentamento das calamidades e sinistros que assolam o povo brasileiro.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O BEIJO DA MORTE E A CULPA


ZERO HORA 29 de janeiro de 2013 | N° 17327. ARTIGOS

Denise Lahutte*



Uma boate ironicamente chamada Kiss encarregou-se de levar o beijo da morte para centenas de jovens no auge da vida. O beijo, que poderia ter sido dado com paixão, por empolgação ou por amor, não houve. Se houve, foi o último. O beijo que certamente houve foi o não desejado, o beijo contra a vontade, o beijo que trouxe o sofrimento indizível, o beijo da morte. Amigos, namorados, irmãos, netos e filhos amados morreram. E, quando morre o ser amado, a dor costuma vir acompanhada pela culpa. A culpa pelas frases duras que porventura trocamos, a culpa pelo abraço e pelo beijo de amor que não demos, a culpa por não termos dito “eu te amo e tu és muito importante pra mim” todas as vezes que poderíamos, a culpa por não termos adivinhado que só teríamos um último beijo e o termos dado de forma meio desleixada, a culpa pelos momentos que não passamos junto à pessoa amada, ocupados que estávamos com outras coisas e acreditando, ingenuamente, que nosso amado ainda teria muito tempo conosco.

Culpa. Companheira da dor, a culpa também dilacera e aniquila. E nos vemos no torturante exercício do “e se”. E se eu tivesse pedido pro meu filho não sair naquela noite? E se eu pudesse estar com ele? E se ele tivesse ido para outro lugar, como chegou a pensar? E se eu tivesse ensinado mais formas de se defender diante dos muitos perigos da vida, como eu fazia quando ele era pequeno? E se, ao invés do amigo, fosse o meu filho um dos sobreviventes? E se eu tivesse sido mais atento aos lugares que ele frequenta? E se eu tivesse dificultado sua saída? Comunicando gestos e intenções mais ou menos nobres, os “e se” nos torturam a consciência e martelam os pensamentos. São exercícios duros conosco mesmos, mas até certo ponto previsíveis e manifestações do sentimento de quem ama demais e se sente responsável pelo amado que morreu. A culpa costuma vir embutida no pranto soluçado que acompanha a dor. É o sentimento de quem se percebe onipotente nos cuidados com o amado, tal como fazia quando seu objeto de amor era um pequeno e indefeso bebê.

A despeito dos fatos que fazem parte da vida, a culpa pode anunciar-se implacável e surda aos apelos da realidade. Para o nosso coração, falhamos. E a culpa que acompanha a dor está presente para nos lembrar.

A culpa costuma vir com a dor do luto e é subjetiva porque comunica um afeto, um estado de espírito, um jeito de sentir e pensar. Ela não costuma comunicar realidade.

A dor do luto e a dor da culpa parecem inseparáveis, mas no caso das pessoas que perderam a vida na boate Kiss a culpa não é apenas um sentimento – é uma realidade. Existe uma culpa que comunica realidade e pode ser substituída pela palavra responsabilidade. “Quem são os responsáveis pelo que aconteceu?”– é a pergunta a ser feita. E a resposta segue seu curso natural pós-investigações. Não foi uma tragédia do destino, como alguns anunciam num tom quase profético. Por catástrofe ou tragédia, entendem-se causas climáticas e da natureza. Onde há o dedo do homem, fala-se sempre em “responsabilidade”. Que ela seja rapidamente apurada, que os responsáveis paguem sua dívida. Para a dor da perda de quem se ama não há atenuante. Para os causadores das mortes menos ainda deve haver.

A dor não tem um nome. A culpa – a responsabilidade pelas mortes – tem. Possivelmente tenha vários. Que se possa nomeá-los para aliviar um pouco a dor de quem sobrevive ao ser amado. O tempo – apenas ele – vai fazer doer menos, mas esta é uma dor que vai durar para sempre. Que ao luto se siga a justiça. Pelo menos, justiça.

*PSICÓLOGA CLÍNICA DE ADULTOS, CASAIS E FAMÍLIAS

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