SANTA MARIA, 27/01/2013
Uma imagem, quatro dramas
LETÍCIA COSTA, MARCELO MARTINS E NILSON MARIANO
A tragédia que enlutou os gaúchos e comoveu o mundo produziu uma cena que uniu os destinos de quatro homens, na madrugada de domingo, em Santa Maria. Em meio à fumaça venenosa que tomava a Rua dos Andradas, o personal trainer Ezequiel Corte Real carregou o universitário Bruno Kräulich nos braços, correndo lomba acima (a imagem foi publicada por ZH na segunda-feira, reprodução ao lado). Na tentativa de salvamento, foi auxiliado pelos soldados Thiago dos Santos Flores e Luciano Antunes. Tanta coragem foi em vão: Bruno morreu.
Preste atenção à cena que irrompe no meio da fotografia ao lado, num dos testemunhos estremecedores da tragédia que causou pelo menos 235 mortes em Santa Maria, na madrugada de domingo.
É Ezequiel Corte Real, 23 anos, que corre lomba acima, escapando do fumo pestilento e das labaredas que consomem a boate Kiss. Rosto contraído pelo esforço, músculos das pernas retesados, transporta nos braços o universitário Bruno Kräulich, 28 anos, já desfalecido.
A imagem foi capturada pelo fotógrafo Germano Rorato, do Diário de Santa Maria (DSM), um pouco antes das 4h, durante a cobertura do incêndio. A foto circulou pelo mundo, estampou a primeira página do The New York Times, o mais influente jornal do planeta. Expôs o desespero dos que tentavam salvar, a agonia dos feridos por sobreviver.
O santa-mariense Ezequiel estava ali por acaso. Não pretendia entrar na Kiss, as pernas lhe doíam em função dos repetidos exercícios que fizera no sábado como personal trainer. Não tinha disposição para dançar. Acabara de jantar com amigos num restaurante que oferece uma mescla de churrasco e pizza. Depois de saborear carnes e saladas, rumou para a boate apenas para encontrar a galera. Queria conversar um pouco, iria para casa dormir.
Mas Ezequiel acabou ingressando no alçapão convertido em braseiro – pouco depois da meia-noite de sábado, não lembra exatamente o horário. Foi então que seu destino se cruzou ao de Bruno Kräulich, que também não costumava se demorar e havia prometido assar o churrasco de domingo para a mãe, a irmã e a sobrinha, com quem morava.
– Ele era como um pai para a minha filha de sete anos – contaria Leyla, 32 anos, irmã de Bruno, na terça-feira.
Quando surgiu o fogo que se alastrou pelas paredes de espuma da boate, e a fumaça tóxica começou a matar por sufocamento, Ezequiel tratou de escapulir. Misturado ao turbilhão de jovens embretados no corredor da saída, sem enxergar na escuridão, deu-se conta de que, no afã de safar-se, derrubara duas moças. Mortificou-se, pensou em recuar, mas também era impelido pelo efeito dominó dos corpos em desequilíbrio.
Sem camisa – improvisou-a como máscara –, Ezequiel voltou atrás das duas mulheres que tombaram no movimento de boiada. Passou a recolher corpos estirados, puxando-os pelas pernas ou pelos braços, até o meio da rua, onde ficariam livres das emanações da combustão. Foram um, dois, três, 10, 15 corpos...
– Não via rostos, nada. Acho que arrastei umas 30 pessoas para fora da boate – narraria ele mais tarde.
Movido pela adrenalina e pelo pavor, esquecera o desconforto nas pernas. Ao encontrar um rapaz desacordado – o único que não lhe erguera as mãos –, concluiu que não bastaria depositá-lo na rua. Era Bruno, mestrando de Agronomia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Com 1m80cm de altura e 92 quilos, o personal trainer ergueu Bruno – até então um estranho – pelos braços e iniciou a corrida rumo à ambulância mais próxima. Intuiu que carregava quase cem quilos – a sensação de peso agravada pela posição inerte do corpo da vítima.
– Ele não dava sinal nenhum. Estava mole, mole – lembraria Ezequiel.
Foram 40, 50 metros de subida pelo asfalto ardente da Rua dos Andradas, sem parada de descanso. O personal não olhou para o rosto de Bruno. Não olhou para nenhum dos rostos que socorreu. Só ouvia outras pessoas gritando, ao seu redor, para desobstruir a pista:
– Sai da frente, sai da frente!
Ao se aproximar da ambulância, ela partiu acelerada, lotada de feridos. Então, Ezequiel acomodou Bruno numa viatura da Brigada Militar e retornou para a maratona de salvamentos.
– Não sei quem era. Não faço ideia do que aconteceu com ele depois – disse.
Bruno morreu. No velório, realizado em Tuparendi (Região Noroeste), Leyla soube por amigos que o irmão teria retirado duas pessoas de dentro da boate, antes de perder a consciência. Ela acreditou, era próprio de Bruno – descrito como quieto e prestativo – amparar os outros.
Leyla ignorava que Bruno estava na boate Kiss. Ele havia comentado apenas que ia sair e dispunha de mais de uma alternativa para se divertir. Deve ter se decidido com os colegas perto da meia-noite. Na tarde de sábado, ao tomar chimarrão na companhia da mãe e da irmã, combinara o churrasco dominical. Com a morte do pai em um acidente de trânsito, em 2007, desvelou-se ainda mais pela família.
Ele se transferiu para Santa Maria após ter concluído o Ensino Médio, em Tuparendi. Fez cursinho pré-vestibular, morou em pensão de estudantes. Para manter a família unida, pais e irmã foram depois. Apaixonado pela agricultura, trabalhou em lavouras dos Estados Unidos e também fazia pesquisas sobre soja.
Ao deixar Bruno na viatura de socorro, Ezequiel retornou para buscar mais vítimas. Só deparou com a face da morte quando arrombaram as paredes da Kiss. O facho da lanterna, cedida por um policial, iluminou um rosto convulsionado pelos esgares do pânico, de alguém que não achou a saída para a rua.
Ezequiel parou quando seus braços adormecidos não tinham mais a quem carregar. Visitou um amigo no hospital, depois foi para casa. Antes de ser nocauteado pela exaustão, desculpou-se no Facebook por não ter conseguido resgatar mais vítimas da boate Kiss.
- l l
Agora repare nos outros protagonistas que compõem a imagem na Rua dos Andradas. Ao pressentir que Ezequiel se cansaria na corrida para salvar Bruno, o soldado Thiago dos Santos Flores, 27 anos, disparou na frente para abrir alas. Para encurtar o caminho de Ezequiel, gritava para o motorista da Patrulha Tático Móvel (Patamo) dar marcha à ré.
– Altamir, traz a viatura! A viatura! – pedia Thiago, a sola dura da botina percutindo no asfalto.
Altamir manobrou rápido. Acomodou o corpo de Bruno e rumou para o hospital. Não havia tempo de esperar o regresso de uma ambulância. Motoristas particulares e taxistas também apareceram para auxiliar no transporte das vítimas.
Houve um momento em que o soldado Thiago asfixiou-se com os rolos de fumo expelidos da boate. Na urgência de socorrer, esqueceu-se de colocar a máscara antigás. Afastou-se da Kiss, tentou aspirar um pouco de ar fresco, depois voltou à tarefa.
– Só queria ajudar, ajudar e ajudar – recordaria depois.
Thiago penou para dormir na noite seguinte – os corpos semidesnudos de jovens mortos assaltaram-lhe o sono. Evangélico, conseguiu se acalmar depois de ir à igreja rezar.
– Foi um trauma muito forte – comentou.
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No instante em que o soldado Thiago corria à frente de Ezequiel, o PM Luciano Antunes, do 2º Batalhão de Operações Especiais (BOE), estava ao lado do carro de bombeiros. Caminhava em sentido contrário, em direção à viatura, para conduzir mais vítimas no banco traseiro da Blazer.
– Só cabia dois ou três. Alguns já estavam desmaiados – relataria Antunes, 35 anos.
O PM fazia a patrulha noturna, com mais três colegas do BOE, quando ouviu o alerta de incêndio pelo rádio. Abalaram-se para a boate Kiss, sirene aberta, na intenção de organizar o trânsito. Logo, mãos de tenazes, de pais e amigos das vítimas, se agarraram ao colete de Antunes.
– Tira o meu amigo de lá – implorava uma jovem.
– A minha irmã tá lá dentro – berrava, desesperado, outro familiar.
Antunes desdobrou-se, mas se viu impotente. Não sabia se os jovens que arrastava para a viatura ainda viviam.
– Foi o inferno – descreveria na segunda-feira.
Preste atenção à cena que irrompe no meio da fotografia ao lado, num dos testemunhos estremecedores da tragédia que causou pelo menos 235 mortes em Santa Maria, na madrugada de domingo.
É Ezequiel Corte Real, 23 anos, que corre lomba acima, escapando do fumo pestilento e das labaredas que consomem a boate Kiss. Rosto contraído pelo esforço, músculos das pernas retesados, transporta nos braços o universitário Bruno Kräulich, 28 anos, já desfalecido.
A imagem foi capturada pelo fotógrafo Germano Rorato, do Diário de Santa Maria (DSM), um pouco antes das 4h, durante a cobertura do incêndio. A foto circulou pelo mundo, estampou a primeira página do The New York Times, o mais influente jornal do planeta. Expôs o desespero dos que tentavam salvar, a agonia dos feridos por sobreviver.
O santa-mariense Ezequiel estava ali por acaso. Não pretendia entrar na Kiss, as pernas lhe doíam em função dos repetidos exercícios que fizera no sábado como personal trainer. Não tinha disposição para dançar. Acabara de jantar com amigos num restaurante que oferece uma mescla de churrasco e pizza. Depois de saborear carnes e saladas, rumou para a boate apenas para encontrar a galera. Queria conversar um pouco, iria para casa dormir.
Mas Ezequiel acabou ingressando no alçapão convertido em braseiro – pouco depois da meia-noite de sábado, não lembra exatamente o horário. Foi então que seu destino se cruzou ao de Bruno Kräulich, que também não costumava se demorar e havia prometido assar o churrasco de domingo para a mãe, a irmã e a sobrinha, com quem morava.
– Ele era como um pai para a minha filha de sete anos – contaria Leyla, 32 anos, irmã de Bruno, na terça-feira.
Quando surgiu o fogo que se alastrou pelas paredes de espuma da boate, e a fumaça tóxica começou a matar por sufocamento, Ezequiel tratou de escapulir. Misturado ao turbilhão de jovens embretados no corredor da saída, sem enxergar na escuridão, deu-se conta de que, no afã de safar-se, derrubara duas moças. Mortificou-se, pensou em recuar, mas também era impelido pelo efeito dominó dos corpos em desequilíbrio.
Sem camisa – improvisou-a como máscara –, Ezequiel voltou atrás das duas mulheres que tombaram no movimento de boiada. Passou a recolher corpos estirados, puxando-os pelas pernas ou pelos braços, até o meio da rua, onde ficariam livres das emanações da combustão. Foram um, dois, três, 10, 15 corpos...
– Não via rostos, nada. Acho que arrastei umas 30 pessoas para fora da boate – narraria ele mais tarde.
Movido pela adrenalina e pelo pavor, esquecera o desconforto nas pernas. Ao encontrar um rapaz desacordado – o único que não lhe erguera as mãos –, concluiu que não bastaria depositá-lo na rua. Era Bruno, mestrando de Agronomia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Com 1m80cm de altura e 92 quilos, o personal trainer ergueu Bruno – até então um estranho – pelos braços e iniciou a corrida rumo à ambulância mais próxima. Intuiu que carregava quase cem quilos – a sensação de peso agravada pela posição inerte do corpo da vítima.
– Ele não dava sinal nenhum. Estava mole, mole – lembraria Ezequiel.
Foram 40, 50 metros de subida pelo asfalto ardente da Rua dos Andradas, sem parada de descanso. O personal não olhou para o rosto de Bruno. Não olhou para nenhum dos rostos que socorreu. Só ouvia outras pessoas gritando, ao seu redor, para desobstruir a pista:
– Sai da frente, sai da frente!
Ao se aproximar da ambulância, ela partiu acelerada, lotada de feridos. Então, Ezequiel acomodou Bruno numa viatura da Brigada Militar e retornou para a maratona de salvamentos.
– Não sei quem era. Não faço ideia do que aconteceu com ele depois – disse.
Bruno morreu. No velório, realizado em Tuparendi (Região Noroeste), Leyla soube por amigos que o irmão teria retirado duas pessoas de dentro da boate, antes de perder a consciência. Ela acreditou, era próprio de Bruno – descrito como quieto e prestativo – amparar os outros.
Leyla ignorava que Bruno estava na boate Kiss. Ele havia comentado apenas que ia sair e dispunha de mais de uma alternativa para se divertir. Deve ter se decidido com os colegas perto da meia-noite. Na tarde de sábado, ao tomar chimarrão na companhia da mãe e da irmã, combinara o churrasco dominical. Com a morte do pai em um acidente de trânsito, em 2007, desvelou-se ainda mais pela família.
Ele se transferiu para Santa Maria após ter concluído o Ensino Médio, em Tuparendi. Fez cursinho pré-vestibular, morou em pensão de estudantes. Para manter a família unida, pais e irmã foram depois. Apaixonado pela agricultura, trabalhou em lavouras dos Estados Unidos e também fazia pesquisas sobre soja.
Ao deixar Bruno na viatura de socorro, Ezequiel retornou para buscar mais vítimas. Só deparou com a face da morte quando arrombaram as paredes da Kiss. O facho da lanterna, cedida por um policial, iluminou um rosto convulsionado pelos esgares do pânico, de alguém que não achou a saída para a rua.
Ezequiel parou quando seus braços adormecidos não tinham mais a quem carregar. Visitou um amigo no hospital, depois foi para casa. Antes de ser nocauteado pela exaustão, desculpou-se no Facebook por não ter conseguido resgatar mais vítimas da boate Kiss.
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Agora repare nos outros protagonistas que compõem a imagem na Rua dos Andradas. Ao pressentir que Ezequiel se cansaria na corrida para salvar Bruno, o soldado Thiago dos Santos Flores, 27 anos, disparou na frente para abrir alas. Para encurtar o caminho de Ezequiel, gritava para o motorista da Patrulha Tático Móvel (Patamo) dar marcha à ré.
– Altamir, traz a viatura! A viatura! – pedia Thiago, a sola dura da botina percutindo no asfalto.
Altamir manobrou rápido. Acomodou o corpo de Bruno e rumou para o hospital. Não havia tempo de esperar o regresso de uma ambulância. Motoristas particulares e taxistas também apareceram para auxiliar no transporte das vítimas.
Houve um momento em que o soldado Thiago asfixiou-se com os rolos de fumo expelidos da boate. Na urgência de socorrer, esqueceu-se de colocar a máscara antigás. Afastou-se da Kiss, tentou aspirar um pouco de ar fresco, depois voltou à tarefa.
– Só queria ajudar, ajudar e ajudar – recordaria depois.
Thiago penou para dormir na noite seguinte – os corpos semidesnudos de jovens mortos assaltaram-lhe o sono. Evangélico, conseguiu se acalmar depois de ir à igreja rezar.
– Foi um trauma muito forte – comentou.
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No instante em que o soldado Thiago corria à frente de Ezequiel, o PM Luciano Antunes, do 2º Batalhão de Operações Especiais (BOE), estava ao lado do carro de bombeiros. Caminhava em sentido contrário, em direção à viatura, para conduzir mais vítimas no banco traseiro da Blazer.
– Só cabia dois ou três. Alguns já estavam desmaiados – relataria Antunes, 35 anos.
O PM fazia a patrulha noturna, com mais três colegas do BOE, quando ouviu o alerta de incêndio pelo rádio. Abalaram-se para a boate Kiss, sirene aberta, na intenção de organizar o trânsito. Logo, mãos de tenazes, de pais e amigos das vítimas, se agarraram ao colete de Antunes.
– Tira o meu amigo de lá – implorava uma jovem.
– A minha irmã tá lá dentro – berrava, desesperado, outro familiar.
Antunes desdobrou-se, mas se viu impotente. Não sabia se os jovens que arrastava para a viatura ainda viviam.
– Foi o inferno – descreveria na segunda-feira.
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